A obra O inimigo no Direito Penal, por Eugenio Raúl Zaffaroni, enseja inúmeras discussões sobre as últimas tendências mundiais do poder punitivo, relacionadas ao Estado de direito e o poder de polícia, analisando sob vários aspectos a revolução mercantil, revolução industrial, o autoritarismo do século XX e século XXI na América Latina, demonstrando o tratamento punitivo estatal aos indivíduos privados da condição de pessoas[1].
Primordialmente, Zaffaroni enfatiza que o poder punitivo sempre discriminou os seres humanos conferindo tratamentos diferenciados a um grupo de indivíduos considerados como inimigos perante a sociedade. Esses indivíduos considerados inimigos não possuem portanto garantias fundamentais e sanções tuteladas dentro dos limites de um estado democrático de direito em consonância com os direitos humanos estabelecidos universalmente[2]. Nesse sentido, aduz que: ‘’ na teoria política, o tratamento diferenciado de seres humanos privados do caráter de pessoas (inimigos da sociedade) é próprio do Estado absoluto, que, por sua essência, não admite gradações e, portanto, torna-se incompatível com a teoria política do Estado de direito’’[3]. Desse modo, observa-se que o ser humano considerado inimigo da sociedade não é um indivíduo com autonomia, incompatível portanto com um estado democrático sendo característico de um Estado absoluto. A globalização e o contexto mundial atual denotam os problemas existentes relativos a concentração de renda, tecnologia, condições climáticas, sendo necessário uma reação política diante dessas situações. O autor denota a relação entre decisões políticas atingindo e relacionando-se com o direito penal e questões político criminais. Nesse sentido, aduz: ‘’ a história ensina que os conflitos que não terminaram em genocídio se solucionaram pela negociação, que pertence ao campo da política. Porém, a globalização, ao debilitar o poder de decisão dos Estados Nacionais, empobreceu a política até reduzi-la à sua expressão mínima’’[4]. O indivíduo considerado inimigo perante a sociedade não merece o tratamento de pessoa, ou seja, a atribuição de inimigo nega sua condição de pessoa sendo incompatível portanto com o estado de direito. Assim, desde o século XX, na medida em que foram teorizados que alguns indivíduos eram considerados perigosos, deveriam nesse sentido ser segregados do convívio social deixando de considerá-los pessoas e coisificando-os como objetos sem abordar expressamente[5]. Os problemas oriundos dessas questões são complexos e conforme Zaffaroni ‘’ certamente o Estado pode privá-lo de sua cidadania, porém isso não implica que esteja autorizado a privá-lo da condição de pessoa, ou seja, de sua qualidade de portador de todos os direitos que assiste, a um ser humano pelo simples fato de sê-lo’’[6]. Tratar e rotular os indivíduos como perigosos possui essa privação, seja oculto ou expressamente. A essência do inimigo subsiste na negação jurídica da condição de pessoa no qual lhe é dado um tratamento penal diferenciado em decorrência dessas questões. Observa-se a discussão da doutrina penal e a admissibilidade do conceito de inimigo no Estado de direito, considerando a punição de determinados indivíduos em razão da condição de ser perigoso a sociedade em sua totalidade e por isso privado de seus direitos sem garantias fundamentais ou reconhecimento de quaisquer direitos[7]. O autor analisa o exercício do poder punitivo na revolução mercantil, revolução inquisitorial, revolução industrial e posteriormente analisando essas questões na atualidade. No que tange ao poder punitivo na revolução mercantil, observa-se que: ‘’ o ser humano não é concebível fora de relações interativas (de cooperação ou conflito) que vão criando estruturas de poder inicialmente em sociedades pequenas (tribos, clãs), depois em outras mais amplas (nacionais) e, por fim, estendem-se para abarcar o planeta. O poder da Europa foi se ampliando para os outros continentes a partir do século XV, sob a forma de colonialismo, em seguida (desde o século XVIII) como neocolonialismo e a partir do século XX se combina com outras potências desenvolvidas e se exerce como globalização’’[8]. Sendo assim, o exercício do poder necessitou de grupos dominantes para sua efetiva organização, como observa-se nas sociedades europeias na qual possuíam uma organização econômica e militar ampla fundamentais à época na colonização e conquistas territoriais. O discurso utilizado para expansão do poder apresentava o genocídio colonialista como uma empresa benéfica aos interesses de todos, no qual a partir desse discurso matavam os colonizados rebeldes, as denominadas mulheres desordeiras, justificando guerras e individualizando pessoas como inimigos para alcançar os interesses almejados[9]. Referente a origem histórica nota-se conforme o autor que: ‘’ desde sua própria origem, o poder punitivo mostrou uma formidável capacidade de perversão, montada como sempre sobre um preconceito que impõe medo, neste caso sobre a velha crença vulgar europeia na maleficia das bruxas, admitida e ratificada abertamente pelos acadêmicos de seu tempo’’[10]. Na denominada revolução inquisitorial, o poder punitivo mostrou-se claro entre os séculos XII e XIII, sendo os conflitos resolvidos por lutas, ordálias ou na presença direta de Deus. A ordália era então a forma de expressão divina para expressar suas decisões e as partes lutavam para que um de seus representantes fosse o portador da verdade[11]. Posteriormente a luta, a verdade foi estabelecida pelo interrogatório, no qual o inquisidor almeja obter a verdade do interrogado. Em caso de respostas insatisfatórias ou com ausência de veracidade e clareza, o interrogado é violentado mediante tortura para prestar todas as informações que possua conhecimento. Nesse sentido ‘’ a necessidade ou apetite de verdade do dominus (sujeito cognoscente) legitimava a violência contra o objeto de conhecimento, sem que este fosse culpável)’’[12]. Na Revolução industrial com o surgimento e desenvolvimento de uma nova classe social, a classe dos industriais e comerciantes bem como a nobreza e o clero, foram buscadas novas formas de delimitações de poder. Embora a aplicação de penas mais severas como a pena de morte tenham se aplicado a crimes mais graves como para os assassinos e dissidentes, vislumbra-se que as manifestações a esses indivíduos caracterizados como indesejáveis aumentou gradativamente com a concentração urbana[13]. Não era possível continuar matando esses indivíduos como o faziam a época em praças, sendo encontrado portanto o encarceramento como mecanismo de controle. Um dos fatores primordiais da transformação do poder punitivo foi a concentração urbana, aumentando o número dos denominados indivíduos indesejáveis e dificultando os mecanismos de controle social em meados do século XIX[14]. Posteriormente, referente a periferia neocolonizada, observa-se que a sociedade à época utilizara demasiadamente o poder punitivo e repressor nas sociedades colonizadas, caracterizando os nativos como indivíduos biologicamente inferiores consolidando-se essa repressão nos países colonizados por muitas décadas nas quais boa parte das repúblicas oligárquicas se mantiveram em condições análogas à escravidão[15]. Na atualidade, analisando o autoritarismo e poder punitivo no século XXI, constata-se conforme Zaffaroni que ‘’ sempre se reprimiu e controlou de modo diferente os iguais e os estranhos, os amigos e os inimigos. A discriminação no exercício do poder punitivo é uma constante derivada de sua seletividade estrutural’’[16]. A história demonstra que há graus de seletividade punitiva sendo utilizados tratamentos autoritários e repressivos aqueles considerados inimigos e estranhos aos interesses de um determinado grupo dominante. Os problemas oriundos dessas constatações ensejam inúmeras discussões observados as questões de poder, repressão e política envolvidas. Dessa forma no tocante ao autoritarismo contemporâneo, cumpre salientar que ‘’ a história do exercício real do poder punitivo demonstra que aqueles que exerceram o poder foram os que sempre individualizaram o inimigo, fazendo isso da forma que melhor conviesse ou fosse mais funcional, ou acreditaram que era conforme seus interesses em cada caso, e aplicaram esta etiqueta a quem os enfrentava ou incomodava, real, imaginária ou potencialmente’’[17]. A utilização do tratamento diferenciado aplicado a esses indivíduos intitulados estranhos ou inimigos de determinados grupos sociais sempre dependeram e estavam relacionados a questões políticas e econômicas, sendo em algumas vezes equilibrado e em outras efetivamente brutal, demonstrando a complexidade histórica, política e social das questões suscitadas. Por fim, ressalta Zaffaroni demonstrando a importância do respeito aos direitos inerentes a todos os indivíduos e a contensão da repressão penal que ‘’ a melhor garantia de eficácia do direito penal, até onde ela pode ser exigida, é o respeito aos direitos fundamentais. Sua violação obscurece qualquer intervenção penal, desacredita-a, uma vez que cria dúvidas sobre sua correção, com o agravante de que essas dúvidas podem facilmente descambar em impunidade, pela via de inconstitucionalidades, nulidades e revisões extraordinárias’’[18]. Paula Yurie Abiko Graduanda Centro Universitário Franciscano do Paraná – FAE Estagiária do Ministério Público Federal Membro do grupo de pesquisa O mal estar no Direito Modernas Tendências do Sistema Criminal Trial by Jury e Literatura Shakesperiana Membro do International Center for Criminal Studies e da Comissão de Criminologia Crítica do Canal Ciências Criminais Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM REFERÊNCIAS BIBLOGRÁFICAS ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. Instituto Carioca de Criminologia. evan, Rio de Janeiro, 2007, 2ª edição. Tradução Sérgio Lamarão. [1] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. Instituto Carioca de Criminologia. Revan, Rio de Janeiro, 2007, 2ª edição. Tradução Sérgio Lamarão, p. 9. [2] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. Instituto Carioca de Criminologia. Revan, Rio de Janeiro, 2007, 2ª edição. Tradução Sérgio Lamarão, p. 11. [3] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. Instituto Carioca de Criminologia. Revan, Rio de Janeiro, 2007, 2ª edição. Tradução Sérgio Lamarão, p. 11. [4] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. Instituto Carioca de Criminologia. Revan, Rio de Janeiro, 2007, 2ª edição. Tradução Sérgio Lamarão, p. 17. [5] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. Instituto Carioca de Criminologia. Revan, Rio de Janeiro, 2007, 2ª edição. Tradução Sérgio Lamarão, p. 18. [6] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. Instituto Carioca de Criminologia. Revan, Rio de Janeiro, 2007, 2ª edição. Tradução Sérgio Lamarão, p. 19. [7] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. Instituto Carioca de Criminologia. Revan, Rio de Janeiro, 2007, 2ª edição. Tradução Sérgio Lamarão, p. 25. [8] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. Instituto Carioca de Criminologia. Revan, Rio de Janeiro, 2007, 2ª edição. Tradução Sérgio Lamarão, p. 29. [9] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. Instituto Carioca de Criminologia. Revan, Rio de Janeiro, 2007, 2ª edição. Tradução Sérgio Lamarão, p. 33. [10] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. Instituto Carioca de Criminologia. Revan, Rio de Janeiro, 2007, 2ª edição. Tradução Sérgio Lamarão, p. 34. [11] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. Instituto Carioca de Criminologia. Revan, Rio de Janeiro, 2007, 2ª edição. Tradução Sérgio Lamarão, p. 38. [12] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. Instituto Carioca de Criminologia. Revan, Rio de Janeiro, 2007, 2ª edição. Tradução Sérgio Lamarão, p. 39. [13] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. Instituto Carioca de Criminologia. Revan, Rio de Janeiro, 2007, 2ª edição. Tradução Sérgio Lamarão, p. 44. [14] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. Instituto Carioca de Criminologia. Revan, Rio de Janeiro, 2007, 2ª edição. Tradução Sérgio Lamarão, p. 45. [15] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. Instituto Carioca de Criminologia. Revan, Rio de Janeiro, 2007, 2ª edição. Tradução Sérgio Lamarão, p. 47. [16] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. Instituto Carioca de Criminologia. Revan, Rio de Janeiro, 2007, 2ª edição. Tradução Sérgio Lamarão, p. 81. [17] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. Instituto Carioca de Criminologia. Revan, Rio de Janeiro, 2007, 2ª edição. Tradução Sérgio Lamarão, p. 82. [18] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. Instituto Carioca de Criminologia. Revan, Rio de Janeiro, 2007, 2ª edição. Tradução Sérgio Lamarão, p. 187. Comments are closed.
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