Artigo da colunista Carla Tortato, sobre o júri como efetiva garantia ao acusado e não como mera regra de competência, vale a leitura! ''O Tribunal do Júri brasileiro possui um modelo de conselho de sentença “puro”, composto por sete cidadãos que são obrigados por lei[2] a participar. Não lhe é permitido a comunicabilidade. Por essas razões, o principal argumento verificado na doutrina predominante, é que o júri é o melhor arquétipo de democracia brasileira. Talvez aí resida a grande parte da “culpa” da mentalidade de o júri ser um direito do povo de julgar o seu “semelhante”: uma falsa sensação de que o júri é principal instrumento da democracia brasileira''. Por Carla Tortato O presente artigo busca analisar o Tribunal do Júri como uma garantia fundamental do acusado, conforme dispõe o texto constitucional. Observa-se que ir a júri popular, no Brasil, significa dizer que está a se exercer um direito da sociedade de julgar o acusado – vulgarmente chamado de “réu”.
É essa a mentalidade que se deve mudar: a cultura de acharmos que o júri é um direito da sociedade de julgar por uma simples regra de competência. É justamente o contrário que deveria ser entendido, ou seja, ser julgado pelo júri popular deveria ser sinônimo de direito subjetivo do acusado de ser julgado por seus “pares[1]”. A soberania popular desempenha com autonomia um poder que é lhe conferida pela Constituição da República em seu artigo 5º, inciso XXXVIII, o qual está contido dentro do rol Dos Direitos e Garantias Fundamentais, na forma que segue: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida; A cultura popular de que o júri é um direito da sociedade de julgar àqueles que supostamente infringem a lei é uma cultura ultrapassada em alguns países, principalmente, nos Estados Unidos e Portugal. Neste momento vale lembrarmos que essa ideia “do direito social de julgar” nos remete a ideia do modelo inquisitório de julgamento, ou seja, julgar o individuo pelo que ele é, e não pelas suas supostas condutas ou fatos. Destaca-se que em Portugal o acusado pode escolher ir a júri ou ser julgado pelo juiz togado. É um julgamento pelo Tribunal do Júri facultativo, uma vez que ele só ocorrerá se for requerido pelas partes (advogados, acusados, representantes do Ministério Público, e assistentes). Ademais, é competente para julgar os crimes circunscritos num rol que está relacionado a gravidade do delito, e a pena máxima aplicada pela legislação portuguesa. Explicamos: o Tribunal do Júri Português possui competência para julgar os crimes com pena máxima superior a 8 (oito) anos ou crimes de tortura, discriminação racial, religiosa ou sexual, crimes contra a segurança do Estado, e crimes referentes a violações do direito internacional humanitário, por exemplo, o crime de genocídio. No entanto, não possui competência para julgar os crimes de terrorismo. Importante também destacarmos que o júri português é o modelo de júri escabinado, ou seja, é composto por três juízes, por quatro jurados efetivos e quatro jurados suplentes. Os suplentes também devem assistir todo o trâmite processual. Além de existir a comunicabilidade entre os jurados efetivos. Uma característica interessante do júri português é que só pode ser jurado se o cidadão possuir mais de 25 anos, cuja idade é a idade mínima portuguesa para se ingressar na magistratura. Já no Brasil, a idade mínima para ser jurado é de 18 anos. Diante das diferenças entre o júri brasileiro e o júri português, é interessante salientarmos que desde 1822 o júri português sofreu mudanças consideráveis, ao contrário do que ocorreu com o modelo de júri brasileiro, cuja estabilidade é passiva de inúmeras criticas. Para finalizarmos a exposição sobre o júri português, observa-se que lá os juris não se dão de forma diária como aqui no Brasil, uma vez que ele é facultado ao acusado. Já aqui no Brasil, o julgamento popular ocorre, praticamente, de forma diária. O Tribunal do Júri brasileiro possui um modelo de conselho de sentença “puro”, composto por sete cidadãos que são obrigados por lei[2] a participar. Não lhe é permitido a comunicabilidade. Por essas razões, o principal argumento verificado na doutrina predominante, é que o júri é o melhor arquétipo de democracia brasileira. Talvez aí resida a grande parte da “culpa” da mentalidade de o júri ser um direito do povo de julgar o seu “semelhante”: uma falsa sensação de que o júri é principal instrumento da democracia brasileira. Neste ponto, importante ressaltar que o pilar da democracia é o voto, e não o Tribunal do Júri. Entender o júri como melhor instrumento democrático implica numa “visão romantizada” do modelo de julgado. É notório que quando se acredita com intensidade em determinada coisa - num ponto de vista “humano”-, tem-se um “ponto cego” para aquele ponto antagônico daquela mesma coisa, justamente por se considerar aquele segundo ponto indubitavelmente infactível. Com a intenção de dar ênfase ao suposto julgamento pelos “seus pares” no júri, numa visão de que é direito da sociedade de julgar o acusado, e não um direito do acusado de ser julgado por ela registram-se três exemplos[3]: Caso “a”: numa cidade pertencente ao interior de um estado nacional, um homem de nome X vai a júri popular pelo homicídio cometido contra outro homem que era usuário de drogas. O local do crime foi numa comunidade que é controlada pelo tráfico de drogas. A motivação do homicídio se deu por dívidas de drogas, e o autor do crime é um traficante temido na região. Neste caso, a chance de o acusado ser absolvido é grande por receio dos jurados de represálias, pois numa cidade pequena é sabido que quase todos se conhecem, bem como que os rostos dos jurados ficam expostos perante toda comunidade enquanto juízes no júri, portanto, a possibilidade de terem uma predisposição em absolver o acusado por medo é colossal. Assim, antes de qualquer prova apresentada, os jurados já estão propensos a decidir por uma futura absolvição com o intuito de resguardarem suas vidas e de seus familiares. Portanto, qual resultado que vocês acham que será o mais provável neste caso? Será a absolvição[4]. Caso “b”: numa cidade capital de um estado nacional um homem de apelido X, usuário de drogas, morador de rua, com antecedentes criminais, inclusive de homicídio, vai a júri popular pelo homicídio de outro homem também usuário de drogas em razão de dívida de drogas, sendo que ambos residem em uma comunidade controlada pelo tráfico de drogas. O júri será realizado na capital, com jurados em sua maioria pertencentes a classes sociais com condições econômicas melhores que a do acusado, os quais estão enfastiados com a “criminalidade” na cidade. Neste cenário em hipótese não temos pessoas que se conhecem devido ao grande número de habitantes. É um processo duvidoso, sem provas e com apenas indícios produzidos na fase investigativa que apontam ser ele o autor do crime, mas nada judicializado perante o juiz togado na segunda fase. Qual resultado que vocês acham que será o mais provável neste caso? Será a condenação[5]. Caso “c”: uma mãe que é acusada de aborto no oitavo mês de gestação. Essa mãe foi vítima de abuso sexual, porém não tem nada que comprove isso aos jurados, salvo a sua palavra. Ela é ateia, conforme se conta dos autos, e será julgada por um conselho de sentença composto por cidadãos seguidores convictos e fervorosamente religiosos da Igreja Y (predominantes na região). Assim, antes de qualquer prova apresentada, os jurados, provavelmente, já estarão propensos a decidir por uma futura condenação da mulher ateia. Qual é a probabilidade de ser julgada culpada pelo crime de aborto? Muito alta. Nesses exemplos mencionados, vocês acham que o acusado preferiria ser julgado pelo juiz togado ou pelos jurados? FORTI[6] E KANT DE LIMA denunciam que no Brasil o Júri não é tratado como direito subjetivo, ou seja, facultado ao acusado, mas sim como instituição judiciária obrigatória: é uma mera regra de competência. “Embora a literatura jurídica brasileira usualmente registre equivalências entre o procedimento judicial do Tribunal do Júri brasileiro e o da tradição anglo-americana, existem diferenças abissais entre ambos. Para começar, o nosso julgamento por júri não é uma opção do acusado, como ocorre no trial by jury, aplicado apenas aos que se declaram não culpados. Além disso, aqui esse julgamento é a culminância de vários procedimentos em que o acusado foi progressiva e sistematicamente indiciado na polícia e sucessivamente denunciado e indiciado no processo judicial, decidindo-se, finalmente, "pronunciá-lo" e inscrever seu nome no "rol dos culpados". A presunção oficiosa, portanto, é de culpa, não de inocência, o oposto do que ocorre no trial by jury americano. Note-se, também, que nos EUA o due process of law é um procedimento constitucional universalmente disponível aos cidadãos, um direito público subjetivo, para ser aplicado de acordo com leis locais, que devem ser igualmente aplicadas a todos os do lugar. O princípio da universalidade depende, portanto, da definição do universo e do espaço público, coletivo, sempre limitado, ao qual se aplica, em todos casos, o procedimento judicial que é devido pelo Estado. No caso brasileiro, o Tribunal do Júri não constitui um direito subjetivo, mas sim uma instituição judiciária obrigatória apenas para crimes intencionais contra a vida humana. [7] É preciso reconhecermos que o acusado deve ir a júri popular por escolha própria, ou seja, por realmente ambicionar ser julgado pelo seu povo, afinal o julgamento popular está dentro do rol das garantias fundamentais ao individuo do art. 5º da Constituição da República. Infelizmente, é notório, quando um acusado vai a júri, popular ele e a sua defesa entram no plenário “condenados”, uma vez que é predominante o estigma da culpabilidade do “réu” já que ele foi pronunciado pelo magistrado. Isso implica dizer – senso comum - que se o juiz pronuncia é porque entendeu, subjetivamente, que as chances de o acusado ser culpado são muito maior do que ele ser inocente, pois se o acusado fosse inocente o juiz já o teria absolvido. Simples assim, isso para os jurados e para o devido processo legal é um grave problema. O exposto no presente texto é fruto do júri ser tratado como regra de competência e maior exemplo de democracia brasileira, e não como direito subjetivo do acusado. Atualmente, pouco se discute sobre essa celeuma, que de fato, precisa de mais atenção por parte dos profissionais do direito no Brasil. Por fim, conclui-se que adiantar a cogente alteração de mentalidade de se entender o Júri como uma efetiva garantia ao acusado, e não como uma mera regra de competência ou suposta democracia representativa, apenas enfraquece e retarda a construção de um sistema acusatório processual penal (real). Carla Tortato Mestre em Teoria e História da Jurisdição (UNINTER). Especialista em Direito Penal e Processual Penal (ABDCONST). Advogada e Professora. REFERÊNCIAS: FORTI, Iorio Siqueira D’Alessandri. O TRIBUNAL DO JÚRI COMO GARANTIA FUNDAMENTAL, E NÃO COMO MERA REGRA DE COMPETÊNCIA: UMA PROPOSTA DE REINTERPRETAÇÃO DO ART. 5º, XXXVIII, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/redp/article/viewFile/22172/16021 Acesso em 05 de agosto de 2020. KANT DE LIMA, Roberto. Direitos civis e Direitos Humanos: uma tradição judiciária pré-republicana? Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-88392004000100007&script=sci_arttext&tlng=en Acesso em 05 de agosto de 2020. NOTAS: [1] Se é que podemos falar em “julgamento pelos seus pares”. [2] A recusa ao serviço do júri, em tese, é inadmissível, pois o júri é um serviço obrigatório. Contudo a recusa é legítima quando lastreada pela escusa de consciência decorrente de convicções políticas, filosóficas, religiosas, embasadas na Constituição da República, art. 5, inciso VIII, e Código de Processo Penal, art. 438. [3] Exemplos “a” e “b” observados em casos reais de “julgamentos do povo para o povo”. [4] No caso real o acusado foi absolvido e morto por traficantes da região 1 (um) mês depois de sua absolvição. [5] No caso real o acusado foi condenado com apenas indícios de autoria e retórica punitivista apresentada em plenário. [6] FORTI, Iorio Siqueira D’Alessandri. O TRIBUNAL DO JÚRI COMO GARANTIA FUNDAMENTAL, E NÃO COMO MERA REGRA DE COMPETÊNCIA: UMA PROPOSTA DE REINTERPRETAÇÃO DO ART. 5º, XXXVIII, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/redp/article/viewFile/22172/16021 Acesso em 05 de agosto de 2020. [7]KANT DE LIMA, Roberto. Direitos civis e Direitos Humanos: uma tradição judiciária pré-republicana? Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-88392004000100007&script=sci_arttext&tlng=en Acesso em 05 de agosto de 2020.
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