Há algumas semanas, fiz um júri peculiar em virtude do depoimento do cidadão que estava sendo julgado; vamos dar um nome ficcional a este réu de “Zé do Infeliz”. Esse cliente respondia a 3 (três) processos criminais, sendo dois por homicídio, e um por tráfico. Todos os fatos criminosos datavam de mais de 10 (dez) anos. Isso porque o réu tem hoje 37 (trinte e sete) anos, mas está preso desde os 25 (vinte e cinco). A vida é um caminho nebuloso cuja certeza é apenas a morte. É igualmente certo que ninguém nessa caminhada pode se achar acima do bem ou do mal. Pois bem, vamos voltar à história do infeliz sobre a qual eu estava falando. Ainda com vinte e poucos anos, “Zé do Infeliz”, foi convidado por um cunhado para armazenar drogas em sua residência. Contudo, à época, detinha um trabalho fixo e lícito, por isso, de pronto recusou o convite. Depois de pouco mais de 2 (anos) anos desse convite, ficou desempregado e sua esposa (irmã do traficante do bairro) estava esperando seu primeiro filho. Não posso afirmar se foi por necessidade, ganância, oportunidade ou safadeza. O fato é que “Zé do Infeliz” aceitou ser o fiel depositário da droga do seu cunhado. Ganhando, para tanto, a importância de R$ 2.000,00 (dois mil reais) por mês. A referida ocupação ilícita durou pouco mais de 6 (seis) meses, até que a polícia realizou sua prisão em flagrante com 1 (uma) tonelada de droga armazenada em casa. Para fins jurídico-processuais, é indiscutível ser o “Zé do infeliz” membro da organização de tráfico da mesma forma que seu cunhado. É evidente que ele não detinha o poder de gestão, controle e percepção de lucros com a venda dos entorpecentes. Mas era sim traficante para fins processuais e penais. Curiosamente após a prisão, a polícia concluiu dois inquéritos sobre homicídios antes sem indícios de autoria no mesmo bairro onde ocorreu a prisão. As investigações foram concluídas apontando ser o “Zé do Infeliz” o responsável pelas mortes. Os inquéritos foram depois transformados em processo por meio de recebimento da denúncia. Em um desses processos de homicídio, eu fui advogado de defesa de “Zé do Infeliz”. Estudei os autos do processo com total e completa exaustão. Não havia sequer um “ouvi dizer”. Não existiam indícios, provas, induções ou deduções. Nada! Foi então que percebi que a polícia havia jogado as mortes para o “Zé do Infeliz” por não ter ninguém a quem indiciar e responsabilizar pelas mortes. Fui para o Tribunal do Júri de peito aberto, convicto sobre absolvição do meu cliente. Ora, se não existiam provas ou elementos dificilmente “Zé do Infeliz” seria condenado, pensava eu antes do plenário do Júri. Porém o jogo mudou drasticamente quando o magistrado questionou se o réu já havia sido preso ou processado antes. Ato contínuo, “Zé do Infeliz” declarou em plenário na frente dos jurados que havia sido preso com uma tonelada de droga armazenada em casa. Pensei comigo mesmo: “perdi o Júri agora. Fim da linha. O réu será condenado”. Quando comecei a explanação da defesa, não toquei no processo. Não falei sobre provas, fatos ou testemunhos. Deixei essas questões técnicas para o fim. Falei sobre estigmas, preconceitos e percepções humanas. Expus, sobretudo, que não poderíamos julgar aquele semelhante por ser um funcionário do tráfico em situação completamente distinta daquele julgamento que era só de homicídio. Fiz de tudo, mas nada fazia os jurados esquecerem aquela fala. No último suspiro da defesa, pedi que o Tribunal do Júri outorgasse clemência ao réu, “Zé do Infeliz”. Isso porque ele já tinha uma pena de mais de 40 (quarenta) anos para cumprir relativa ao processo de tráfico. Sendo certo que só sairia do cárcere aos 45 (quarenta e cinco) anos de idade. Desse modo, se fosse somada uma nova condenação de, em média, 25 (vinte e cinco) anos ao tempo que lhe restava a cumprir. Na verdade, aquilo implicaria em uma pena de morte. Isso porque ele, em tese, só sairia do presídio em regime semiaberto aos 60 (sessenta) anos. O Tribunal do Júri terminou, era hora de apresentar os quesitos para julgamento. No último quesito sobre a tese de clemência, três cédulas de votação foram reveladas declarando “não”, ou seja, dizendo que não iriam acolher a tese da defesa e, portanto, iriam condenar o réu. Nesta oportunidade, se outro voto, dos quatro que faltavam, fosse “não”, realmente o réu morreria no cárcere. Por obra de Deus, os 4 (quatro) votos que se seguiram foram todos “sim” pela absolvição por clemência. E assim, nós conseguimos absolver “Zé do Infeliz”. E assim, foi minha defesa no júri de uma tonelada de droga. Lucas Bonfim Advogado Criminal Professor universitário Parecerista jurídico Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |