O que leva uma pessoa a praticar um crime? Ou melhor: o que leva uma pessoa à prática de atos violentos e/ou cruéis? Neste artigo, André Pontarolli se vale das contribuições literárias de Rubem Fonseca e Sérgio Sant'Anna - dois dos grandes nomes da literatura brasileira - para fazer algumas divagações sobre esta pergunta irrespondível. Aproveitamos para registrar a nossa homenagem a estes dois gigantes da literatura que faleceram recentemente. Por André Pontarolli O que leva uma pessoa a praticar um crime? Na verdade, prefiro reformular a pergunta: o que leva uma pessoa à prática de atos violentos e/ou cruéis? Faço a reformulação porque crime é conceito complexo e multifacetado, dependente de discursos e tensões sócio-políticas. Se olharmos com atenção para as leis, vamos perceber que crime pode ser qualquer coisa, tudo e nada ao mesmo tempo. Destarte, não dá para pensar em crime, sem antes pensar no “processo” de criminalização, o que torna o problema ainda maior. Ademais, se existem incontáveis razões envolvidas na escolha daquilo que é definido como crime, outras incontáveis razões podem ser encontradas no ânimo daqueles que resolvem realizar comportamentos criminalizados. Enfim, as possibilidades são tantas e as teorias (incluindo as que se autointitulam científicas) tão variáveis, que a primeira pergunta soa absolutamente imprecisa e pretenciosa. O leitor deve estar se perguntando: - E a segunda pergunta não é ainda mais pretenciosa? É sim, com toda certeza! Contudo, não tenho a intenção de apresentar qualquer tipo de resposta. O que quero é divagar livremente sobre a questão, sem qualquer amarra teórica; quero me valer da genialidade literária de Rubem Fonseca e Sérgio Sant’Anna para cogitar – apenas cogitar – que esta é uma pergunta sem resposta. É imperativo registrar que Rubem Fonseca faleceu em abril e Sérgio Sant’Anna em maio de 2020. Duas perdas recentes de autores que farão muita falta na literatura brasileira. Vários pontos em comum entre eles poderiam ser destacados, mas não quero ficar traçando paralelos. Em destaque, ressalto apenas que Fonseca e Sant’Anna foram mestres na narrativa da realidade nua e crua (nem um pouco digerível); jamais maquiaram a violência em seus respectivos textos. “Feliz Ano Novo” de Fonseca é de uma crueldade tão viva e chocante que tira o sono do leitor mais suscetível. “O Monstro” de Sant’Anna mergulha nas profundezas da psiquê humana e descortina a maldade latente que pode ser despertada pela comunhão de elementos aleatórios. Quero me valer destes dois contos para retomar a divagação sobre a pergunta proposta no início: o que leva uma pessoa à prática de atos violentos e/ou cruéis? No “Feliz [que nada tem de feliz] Ano Novo” de Fonseca nos deparamos com a saga de três miseráveis, sem eira nem beira, que, na virada de ano, sem ter o que comer e o que fazer, resolvem – de maneira um tanto quanto inconsequente – praticar um assalto em uma residência de classe alta do Rio de Janeiro. Durante o assalto, o trio se contagia pelo poder da violência e leva a cabo atos de extrema crueldade. Em determinado momento, eles se divertem com o “experimento” de grudar as vítimas na parede com disparos de “Doze”: Atirei bem no meio do peito dele, esvaziando os dois canos, aquele tremendo trovão. O impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele foi escorregando lentamente e ficou sentado no chão. No peito dele tinha um buraco que dava para colocar um panetone. Viu, não grudou o cara na parede, porra nenhuma. Tem que ser na madeira, numa porta. Parede não dá, Zequinha disse. Os caras deitados no chão estavam de olhos fechados, nem se mexiam. Não se ouvia nada, a não ser os arrotos do Pereba. Você aí, levante-se, disse Zequinha. O sacana tinha escolhido um cara magrinho, de cabelos compridos. Por favor, o sujeito disse, bem baixinho. Fica de costas para a parede, disse Zequinha. Carreguei os dois canos da doze. Atira você, o coice dela machucou o meu ombro. Apóia bem a culatra senão ela te quebra a clavícula. Vê como esse vai grudar. Zequinha atirou. O cara voou, os pés saíram do chão, foi bonito, como se ele tivesse dado um salto para trás. Bateu com estrondo na porta e ficou ali grudado. Foi pouco tempo, mas o corpo do cara ficou preso pelo chumbo grosso na madeira. Eu não disse? Zequinha esfregou o ombro dolorido. Esse canhão é foda. Fonseca, de forma magistral, tinha a capacidade de fazer “desenhos” realistas da violência urbana, expondo a indiferença daqueles que estampam em si próprios as marcas da mesma indiferença.
Zequinha e Pereba são retratos vívidos de uma parcela da sociedade que não tem nada a perder. Sem comida, perspectiva e dignidade se lançam em um ato de vingança. O trio – criado por Fonseca – se vale da violência não apenas para atingir um fim especificamente considerado (subtração de bens), mas como instrumento de poder. Naquele instante de crime, invertem os papéis sociais de poder e se regozijam com o sofrimento das vítimas, submetidas à dominação e à barbárie. Poderíamos aqui cogitar diversas razões para a ação perpetrada pelo trio. Miséria? Revolta? Descaso? Luta de classes? Inveja? Poder? Impunidade? Não sei! As conjecturas ficam subordinadas à percepção do intérprete. Eu farei as minhas e o leitor fará as suas. Mas, o que posso dizer é que o trio de desvalidos do Fonseca não guarda qualquer aproximação – ao menos não lógica – com o Professor de Filosofia Antenor Lott Marçal – “O Monstro” –, personagem de Sant’Anna, que foi condenado a trinta anos de reclusão pelo estupro e assassinato de Frederica Stucker, uma bela jovem de 20 anos, com deficiência visual. O texto de Sant’Anna se desenrola a partir de uma entrevista ficcional em que Antenor revela os detalhes do crime a uma revista sensacionalista chamada “Flagrante”. Interessante é a narrativa sobre o objetivo da revista com a entrevista: “contribuir para uma reflexão sobre os mecanismos existenciais e psicológicos que estão presentes na prática de crimes hediondos como esse, para os quais não pode ser encontrada nenhuma explicação de origem econômica e social”. Fica a pergunta: quais seriam estes mecanismos existenciais e psicológicos? Antenor é um personagem extremamente complexo. O crime em questão não pode ser distanciado de sua tórrida relação com Marieta, a quem amava e idolatrava e que foi sua coautora – e mentora – na terrível ação perpetrada contra Frederica. Antenor narra o crime de forma muito direta, alternando frieza e culpa. Ele descarta qualquer tipo de justificativa para os seus atos e contesta a versão midiática de que as drogas teriam impulsionado o crime, hipótese que, segundo ele, consistiria na redução do crime a causas e efeitos elementares, “ao gosto de um moralismo simplista. É fugir de um poder de discernimento do qual é preciso não se afastar no presente caso”. Não quero aqui me alongar em demasia na descrição de “O Monstro”, pois tal conto merece ser lido na íntegra por todo e qualquer leitor que ouça dele falar. Quero, apenas, destacar que o crime praticado por Antenor foge às percepções mais simplistas sobre as razões da violência e da crueldade. Ao que parece, a intensidade da relação com Marieta e uma série de fatores aleatórios que foram se somando, em curto espaço de tempo, despertaram um “monstro” adormecido – ou uma maldade latente – no inconsciente do Professor de Filosofia. O que mais assusta em Antenor é que ele não tinha qualquer razão aparente para agir da forma como agiu. O exemplo de Antenor mostra o quão incertas são as repostas sobre as razões da violência. O leitor deve estar achando que eu saí do nada para chegar a lugar nenhum. Não está errado! Mas, o meu principal objetivo aqui era o de atiçar a curiosidade de quem me lê para que busque as obras de Fonseca e Sant’Anna e que, as lendo, se ocupem de suas próprias inquietações. André Pontarolli Mestre em Direito Professor de Direito Penal e Criminologia Referências FONSECA, Rubem. Feliz ano novo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. SANT’ANNA, Sérgio. 50 contos e 3 novelas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
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