A grande questão da política não é entender o motivo das pessoas se revoltarem, mas o motivo delas não se revoltarem" (Gilles Deleuze, numa conversa citada por Renato Janine Ribeiro).
Seu medo de um "Estado total" poder ser um sintoma de que a sua vida já está sendo controlada sem que vc perceba. O controle é eficiente quando se torna imperceptível. Se vc teme algo, boa parte dos efeitos políticos já foram anulados. O perigo foi percebido. O problema é que o medo tbm pode ser construído. Quando isto acontece, o sujeito se debate contra fantasmas quiméricos, enquanto os mecanismos de poder agem nas sombras. Sem dúvida, esse paradoxo é o mais perto que podemos chegar de um controle total. Esse pequeno texto explica o que é Totalitarismo, pq ele está sendo usado de forma errada na atualidade e, no fim, aponta os perigos totalitários presentes em governos ditos "liberais". Faz alguns meses, a internet parou para ver o vídeo do casal Leon e Nilce, em reposta ao youtuber de extrema-direita Nando Moura. O assunto era a velha e desgastada querela sobre o nazismo ser de esquerda ou de direita. Mesmo assim, o vídeo conseguiu empolgar. Leon e Nilce foram pesquisar as fontes citadas pelo roqueiro palpiteiro e descobriram que, na verdade, elas contradiziam o argumento dele. A estratégia foi perfeita. Sem precisar fazer um vídeo conceitual, longo e chato, eles comprovaram o quanto o discurso da extrema direita é oco e paranoico. Porém, o argumento do casal não é perfeito. Logo no início, Leon afirma que não há semelhanças entre Hitler e Bolsonado, ou Donald Trump, porque ambos seriam democratas. Em seguida, o mesmo Leon propõe outras figuras da direita que, segundo ele, seriam totalitários: “você pode pegar outros totalitários da direita, Pinochet, a Junta Militar Argentina, Saddam Hussein no Iraque. Enfim, você tem governos totalitários dos dois lados do espectro”. Essa definição de totalitarismo está errada e é comum ver na internet confusões desse tipo. Eu mesmo quando entrei na faculdade, por volta de 2005, fiz uma prova e no desenvolver do texto escrevi que os militares que derrubaram João Goulart eram totalitários. A professora riscou essa palavra, mas não explicou mais nada. Durante muito tempo, eu fiquei sem entender o motivo de ter perdido ponto com aquela afirmação. Apenas no final da graduação, quando tive contato com história contemporânea, que comecei a entender o conceito de totalitarismo e o motivo daquele erro. Ditadores como Pinochet, Videla ou Médeci eram, sem dúvida, homens cruéis. Os casos de tortura e desaparecimento no Chile, na Argentina e no Brasil são chocantes. Mas eles NÃO eram totalitários, tampouco fascistas. É verdade que todo totalitário é autoritário, mas o inverso não é verdadeiro. Totalitarismo não é sinônimo de autoritarismo. Esse texto pretende explicar melhor a diferença entre os dois. Conceitos – como este que pretendo explicar – podem mudar de sentido dependendo do autor, ganhando roupagens mais complexas ou mais simplificadas. Mas, grosso modo, um governo autoritário é aquele que controla os três poderes. Os militares eram autoritários porque deram um golpe e ocuparam o Executivo. O Congresso continuou funcionando, porém, ele poderia ser fechado por uma ordem do presidente. E os famosos Atos Institucionais proporcionavam poderes especiais ao governo e retiravam do cidadão seus direitos mais básicos. Esse é um exemplo típico de um Estado autoritário. Um governo totalitário não se limita a controlar os poderes, mas ele busca ocupar todos os espaços. As fronteiras entre público e privado são dissolvidas e o Estado está presente em todas as esferas da vida. A ideia é controlar até o pensamento e as emoções. Enquanto, numa ditadura, as pessoas devem ser mantidas afastadas da política e dos assuntos públicos, no totalitarismo as massas são constantemente mobilizadas e devem demonstrar entusiasmo permanente pela ideologia oficial. Alemanha nazista, por exemplo, os pais tinham medo até dos filhos. As crianças aprendiam na escola a ouvir e conversa dos responsáveis e a contar para os professores caso algum membro da família demonstrasse pouca adesão aos ideais do Partido Nacional Socialistas. Havia manuais ensinando as mulheres e se comportarem como alemã, dizendo com quem elas deveriam casar e até o número de filhos que deveriam gerar. Ter ou não filhos não era uma decisão do casal, mas parte de um projeto nacional, em que ambos deveriam contribuir. O Estado totalitário destrói todas as instituições e as substitui por outras, que passam a trabalhar orientadas pela ideologia oficial. Enfim, as transformações são muito mais profundas. Essa é a definição básica do conceito, mas há propostas mais elaboradas. As duas mais famosas são as da filósofa Hannh Arendt e a dos cientistas políticos Carl Friedrich e Zbigniew Brzerzinski. A definição da Hannah Arendt é sem dúvida a mais complexa e instigante. Para a filósofa judia, o objetivo central dos regimes totalitários é a transformação da natureza humana. Por isso, ao contrário do autoritarismo, o totalitarismo não destrói a capacidade política do indivíduo, mas destrói e modifica os grupos e as instituições que constituem a vida privada do sujeito. Assim, ele se torna estranho ao seu próprio mundo, o que permitira a reconfiguração da sua subjetividade, sintetizada na ideia de um novo homem. No âmbito ideológico, os regimes totalitários constroem uma narrativa ilusória e coerente do presente, do passado e do futuro, independente de qualquer verificação factual e sem espaço para contestações. Tal narrativa pretende explicar de modo absoluto o curso da história, ou seja, de onde viemos, onde estamos e para onde vamos. O Terror aparece como a maneira de adaptar a realidade ao discurso. Por isso, os regimes totalitários precisam a todo o momento construir inimigos, pois são eles que separam o presente, sempre imperfeito, da concretização da ideologia que se pretende perfeita. Sem inimigos, os sabotadores, não haveria como explicar o descompasso entre ideologia e realidade. A definição do Brzenzink/ Friedrich é muito mais simples e funcional e, por isso, é a mais usada. Para esses autores, as características do totalitarismo são: 1) uma ideologia oficial. 2) um partido único, dirigido por um ditador. 3) Estado policial. 4) Monopólio tendencialmente absoluto das instituições. 5) militarização do partido/governo. 6) planejamento central e coordenação da produção pelo aparato burocrático. Tudo isso combinado com um misto de propaganda e terror e possibilitado pela tecnologia moderna de organização e mobilização das massas. Há algumas diferenças entre essas duas concepções. Enquanto para Hannh Arendt o fim do totalitarismo é a modificação da natureza humana (reduzindo os seres humanos a autômatos obedientes), Brzenzink/ Friedrich pensam na organização institucional do Estado totalitário, que para esses autores não teria um fim específico, além do controle da sociedade e a perpetuação do regime no poder. Outro ponto interessante é que Hannah Arednt considera apenas o nazismo e o stalinismo como exemplos de governos totalitários. A segunda definição, além desses dois, incluiria a Itália de Mussolini, a China de Mao Tese Tung e os países comunistas do Leste-europeu também poderiam ser caracterizados como tal. O conceito, porém, não é perfeito e sofreu muitas críticas. Na verdade, na maior parte das vezes, ele confunde mais do que explica. Os autores que propuseram essa categoria tinham uma visão puramente política. Ou seja, eles olhavam para o Estado. Porém, estudos de história social e cultural relativizaram essa noção de Estado total. Em outras palavras, não existe controle absoluto. Outra crítica é que o conceito equipara regimes completamente diferentes como o stalinismo e o nazismo. A propaganda americana adorou essa comparação e se apossou do conceito. Em pouco tempo, a palavra totalitarismo passou a significar a “prova” de que comunismo e nazismo eram irmão homozigotos. Livros e mais livros foram publicados, com muita ajuda financeira do Departamento de Estado Norte Americano, mas sem nenhuma consistência teórica. Tratava-se de pura propaganda. O termo foi banalizado. Alguns viam totalitarismo até na suíça calvinista. Tudo virou totalitarismo, uma mãe que proibia o filho de sair depois das oito de casa, era acusada de totalitária. E, como nos mostraram os filósofos gregos, se uma palavra é tudo, ele é nada ao mesmo tempo. Os conceitos servem para explicar fenômenos objetivos e particulares da realidade, ao serem banalizados, eles perdem a sua eficácia e viram meros xingamentos. E foi o que aconteceu. Aos poucos os especialistas deixaram de usar esse termo e ele caiu nas graças do senso comum, seja como sinônimo de autoritarismo, seja nas afirmações de aloprados como o Nando Moura que querem, de qualquer maneira, negar a realidade e veem na banalização do termo a sua tábua de salvação. Recentemente, contudo, o conceito ressurgiu em alguns trabalhos acadêmicos. Alguns historiadores, concordando com as críticas que foram feitas, estão propondo um reexame. Um dos principais trabalhados, que tentam reavaliar a noção de totalitarismo, publicados recentemente, foi o livro “Cortina de Ferro”, da historiadora Anne Applebaum:
Para que os compreendamos - e para compreendermos a história do século XX - precismos entender como o totalitarismo operava, tanto na teoria quanto na prática. A noção de controle total tampouco está obsoleta. O regime Norte Coreano, erigido nos moldes stalinistas, mudou pouco nos último setenta anos. Por mais que hoje em dia novas tecnologias pareçam tornar os princípios de controle total mais difíceis de almejar, quanto mais de realizar, não podermos estar certos de que celulares, internet e imagens de satélites, não se tornarão instrumentos de controle nas mãos de regimes que também aspirem a abranger "tudo dentro do Estado". O Totalitarismo é ainda uma qualificação útil e necessária. Ja faz bastante tempo que requer um reexame" (Cortina de Ferro, Anee Appleubaum) Como podemos ver, a historiadora não ignora as críticas. Ela reconhece que houve exageros no uso do conceito, porém, afirma que tais divergências devem ser usadas para reexaminarmos o Totalitarismo, não para descartá-lo. Para Applebaum, alguns Estados tiveram a pretensão de ser totais e isso já faria deles diferentes dos demais e, portanto, precisariam de um conceito capaz de diferenciá-los. Ela também não compara os “totalitarismos” nazistas e comunistas, limitando sua análise aos países do Leste europeu, que são estudados de forma separada. Enfim, trata-se de uma sofisticação metodológica, que busca dar a consistência teórica que o termo havia perdido conceito. Mas essa nova proposta também tem seus problemas. Se, por um lado, é verdade que as novas tecnologias podem ser usadas como forma de controle; por outro, o conceito de Totalitarismo, além de não explicar esse fenômeno, coloca um foco excessivo no Estado. Na verdade, é preciso lembrar, as novas tecnologias não só podem ser usadas como forma de controle, como elas já possuem este fim. A vida contemporânea é mediada pela tecnologia e essas informações servem para os mais diversos fins. Desde a espionagem, caso clássico da NSA, até para a propaganda. Recentemente saiu a notícia que o aplicativo Wase vende, para as agências de seguros, informações sobre os hábitos dos usuários. A velocidade média, os lugares em que o motorista passa, os horários em que ele costuma trafegar etc. Tais informações ajudariam a compor o preço final do seguro. Empresas como Google e Facebook possuem um imenso cadastro sobre as preferências dos seus usuários e podem influenciar na forma de pensar e nos sentimentos das pessoas. Isso já é uma realidade. Não faz muito tempo, Mark Zuckerberg admitiu que realizou uma experiência em que, durante um único dia, notícias e mensagens tristes tiveram prioridade em relação às demais. O sujeito entrava na sua página pessoal na rede social e via apenas pessoas deprimidas. Em pouco tempo, ele também começava a compartilhar posts tristes e demonstrava desanimo. Enfim, houve uma clara influência de uma ÚNICA empresa nos sentimentos de milhões de pessoas no mundo inteiro. Tal fenômeno seria impensável para qualquer regime totalitário do passado. As redes de Think Tanks conservadores também produzem subjetividade e modificam a “natureza humana” numa velocidade inimaginável para Hitler e Stalin. Lembram quando a Hannah Arednt disse que os regimes totalitários reescreviam a história de acordo com a ideologia oficial, dando a ilusão de controle sobre o passado, presente e futuro? Não é exatamente a mesma coisa que essas redes ultraliberais estão fazendo? Não conheço o Nando Moura pessoalmente, mas tenho certeza que ele era uma pessoa bem diferente antes de ter contato com o Facebook e com o youtube. Ele, como muitos outros, sofreram uma mudança de personalidade e da sua subjetividade. Passaram a receber informações padronizadas e totalizantes e, em função disso, a pensar de forma fundamentalista. Não seria exatamente isso que a Hannah Arendt chamava de transformação da natureza humana? Qual espaço para contestação existe no discurso ultraliberal? Não estaria em curso um projeto de transformação profunda do sujeito e das instituições? O que seria esse fim do Estado? O que querem projetos como O Escola Sem Partido? As massas não estão sendo mobilizadas em nome de uma ideologia que os trata como rebanho? Livros de autoajuda, empresariais, religiosos e canais de televisão não estão o tempo todos em nossas vidas tentando moldar no comportamento, estimulando a atomização do sujeito e promovendo a concorrência? Enfim, são muitas perguntas e muitas as semelhanças que indicam que o sonho do controle total não desapareceu. Olhar apenas para o Estado pode desviar nossa visão do verdadeiro problema. Como escrevi em outra oportunidade, o livro 1984 é um exemplo de um Estado total, mas não o único. Talvez a ficção Admirável Mundo Novo, seja mais real que o clássico do Orwell. A grande prisão é aquela imperceptível e desejada. Enquanto você teme a realidade descrita no livro 1984, caminhamos para o “Admirável Mundo Novo”. Por isso, o totalitarismo continua a ser um problema, mas não precisamos mais dele enquanto um conceito. Eduardo Migowski Mestre em Filosofia (PUC-RIO) Bacharel em História pela Universidade Gama Filho Especialista em: Filosofia Contemporânea (PUC-RIO), História Contemporânea (UCAM); Relações Internacionais (UCAM); História Moderna (UFF); História das Relações Internacionais (UERJ). Comments are closed.
|
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |