A noção legal de flagrante está prevista no Código de Processo Penal em seu artigo 302, o qual assim prevê:
Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem:
A doutrina costuma dividir o flagrante em espécies de flagrante, dentre os quais existiriam aqueles aptos a ensejar um estado de flagrância mais concreto, bem como aqueles outros em que tal estado situacional se daria apenas no campo da possibilidade deduzida de um estado ocasional. Também, vale lembrar há aquelas espécies inaptas para ensejarem tal estado, vez que eivados de irregularidades que ruiriam o dito estado de flagrante. No entanto, não sendo a pretensão a de analisar as diversas espécies de flagrante, para fins da reflexão do presente escrito, tomemos flagrante como aquilo que se vem à mente quando o termo é dito, a saber, o flagrante próprio e o impróprio (aqueles previstos nos incisos do artigo 302 do Código de Processo Penal). A questão dessas modalidades de flagrante costumam parecer óbvias: ora, se o cidadão foi pego “com a boca na botija”, é porque é o responsável pela prática daquele ato em que foi observado cometendo. Parece simples, mas muitas vezes não é. A questão deve ser sempre contextualizada, analisada com perspicácia. Daí a necessidade do processo mesmo em situações em que tal se instaurou pelo flagrante. Não cabe aqui aquele questionamento clássico do senso comum: ”se o cidadão foi pego em flagrante, qual a necessidade do processo?”. É preciso ir além, pois a problemática reside muitas vezes naquelas coisas que parecem ser óbvias demais. E o flagrante é um exemplo disso. Alguém que “seja pego” ofendendo a integridade física de outrem, por exemplo, estará em situação de flagrante. Mas pode ser que esse agressor estivesse repelindo uma agressão anteriormente sofrida – a qual não foi vista por aqueles que chegaram somente no momento posterior. O cidadão, nesse caso, poderia estar acobertado pela excludente da ilicitude da legítima defesa, de modo que não haveria que se falar em crime. Mas se levado em conta tão somente a situação em que o flagrante se deu, os papeis poderiam restar invertidos, e a vítima, nesse caso, passaria a ser tida como agressora. Podemos extrair da literatura um grande exemplo da problemática envolta no flagrante. Em “À Espera de um Milagre”, de Stephen King, é narrada a história angustiante de John Coffey, que espera sua fatídica hora no corredor da morte. Preso em flagrante, Coffey é acusado e condenado por ter matado duas crianças. A pena estabelecida é a morte. Eis o mote que impulsiona essa excelente obra de Stephen King. Ocorre que, como logo percebe o leitor de “À Espera de um Milagre”, Coffey não matou as crianças. O acusado possui um dom mágico de curar as pessoas. É uma pessoa muito generosa, detentora de um grande coração. Ao encontrar os corpos das crianças jogados ao chão, Coffey as pega em seus braços a fim de tentar curá-las, revive-las. Mas chega tarde demais. Mesmo possuindo o dom da cura, não consegue reviver as crianças. A angústia lhe toma conta e Coffey chora. É nessa situação que John Coffey é encontrado pelas pessoas que o prendem: um homem negro com duas crianças mortas em seus braços. Estado de flagrante. Prisão possível. Condenação certa. Pena cumprida. Eis o fim de John Coffey. Pelo exemplo analisado no livro se Stephen King, é possível perceber que o óbvio muitas vezes é apenas aparente. Coffey era inocente, mas dada a situação em que foi encontrado, sua culpa foi presumida. E com base na legislação atual que regula o tema, a situação de Coffey era, perfeitamente, um estado de flagrante. O artigo 302 do Código de Processo Penal é facilmente preenchido ao se analisar a situação de John Coffey. Eis um inocente que se prendeu com base em suposições, em presunções, as quais, por mais “fortes” que sejam, precisariam ter sido problematizadas pela ótica do processo penal. Daí a necessidade do devido processo legal – substancial – estar e se fazer presente, a fim de minimizar as mazelas do sistema. O flagrante pode ensejar em alguns equívocos percepcionais, cujos efeitos trágicos são consequências lógicas da condução de um processo pautado numa premissa tida como irrefutável. Eis o alerta para não se pautar em critérios de obviedades. O óbvio muitas vezes não o é, mas para que seja posto à prova, é preciso que o critério de certeza inicial seja, pelo menos, refletido com cautela, a fim de que não se tenham outros Coffeys tragados pelo sistema. Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Mestrando em Direito pela UNINTER Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR Referências: KING, Stephen. À Espera de um Milagre: um romance em seis partes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013. Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |