A Psicologia pode atuar em diversas áreas, também dentro do contexto jurídico. Talvez uma das mais desafiadoras seja no âmbito familiar, visto que é onde encontram-se os maiores vínculos entre as partes, que podem dificultar o andamento do processo e fazer com que a demanda inicial vá além daquilo que se pode oferecer. Mesmo assim, conhecer os fatores influenciadores de determinadas situações é de extrema importância para que o atendimento vise a solução mais adequada legalmente, sem deixar de lado as expectativas do envolvidos.
Assim, no que diz respeito a expectativas, podemos pensar em uma situação permeada por elas, mas que é viabilizada juridicamente: a adoção. Muito encontra-se sobre o tema, focando tanto os aspectos judiciais quando os psicológicos e, atualmente, ganha-se cada vez mais destaque algo que também está intrínseco ao falarmos sobre adoção, que é o abandono de bebês e crianças (FIORELLI & MANGINI, 2009). Com a atual cultura brasileira, ainda existem muitos menores que aguardam uma família e que correm o risco de voltarem às ruas por não conseguirem. De acordo com Camargo (2005), discussões e questões tanto em relação ao abandono quanto à adoção deveriam ser parte indissociável das reflexões e proposições acerca da política social de nosso país. Isso se deve ao fato de que há um estigma muito forte para aqueles que acabam vivendo marginalizados e não tendo uma educação tida como “adequada”, fazendo com que haja um desconforto social, ainda nos dias de hoje, ao se considerar adotar alguém. Os filhos rejeitados pelos pais biológicos têm um destino cruel, pois a maioria acaba por crescer e ser educado em instituições mantidas e dirigidas por associações religiosas ou governamentais ou dirigidas pelo Estado; alguns, privilegiados, conseguem ser adotadas por casais e famílias, enquanto boa parte (os que são, de fato, excluídos social e economicamente) terão como futuro as ruas (CAMARGO, 2005). Portanto, vemos o quanto ainda é recente a ideia de que o objetivo é ser o melhor para a criança, tornando-a o sujeito principal do processo, e não mais os possíveis pais adotantes. No Brasil, surge uma nova cultura que busca famílias para a criança, no lugar de crianças para as famílias (COSTA & ROSSETI-FERREIRA, 2007). Entretanto, um agravante a ser considerado que ainda é bastante comum é a adoção tardia, visto que é a que denuncia diretamente a ideologia que vivemos atualmente. Pesquisas constantemente revelam uma realidade que mantém esse ideal de que os adotantes que são os principais sujeitos, pois são eles quem querem um filho. Almeida (2003 apud.CAMARGO, 2005), em sua pesquisa realizada em duas cidades de porte médio do interior paulista, detectou que, no ano de 2001, dos 133 casais e famílias cadastrados como adotantes, 118 estipularam como condição o fato da criança ter de ser branca, 9 aceitaram adotar pardas ou negras e apenas 5 casais e famílias foram indiferentes em relação à cor ou etnia, sendo que a família restante demonstrou um interesse explícito em adotar uma criança negra, sendo relevante a informação de este também era um casal de negros. Sabendo disso, podemos perceber a alimentação desse ciclo que faz com que as crianças pardas e, principalmente, negras vivam a maior parte da infância dentro de instituições, muitas vezes, sem um apoio individual para um desenvolvimento satisfatório. Camargo (2005), relaciona este fato também com a diminuição da probabilidade desses indivíduos serem adotados, e quando o são, acabam por constituir um outro quadro estatístico, o das adoções tardias. Assim, percebe-se que o perfil do processo será totalmente diferente do que o inicialmente imaginado, abalando expectativas de ambos os lados. Se um trabalho de investigação e acompanhamento já eram necessários anteriormente, agora, figura-se como um procedimento essencial. Novamente, deve-se lembrar que se trata de um processo, não caracterizado por apenas um único ato, pois engloba-se desde a destituição do poder familiar de origem, o abandono ou a institucionalização, até o momento da convivência e a conclusão com a ordem judicial culminando na modificação e assentamento do registro de nascimento da criança (FIORELLI & MANGINI, 2009). Portanto, é um período de muitas mudanças e, por ser um exaustivo tempo de espera, pode minar os ânimos das partes, comprometendo o resultado final, que nada mais é o bem-estar do adotado. De acordo com Fiorelli e Mangini (2009), por esse processo ter a possibilidade de ser extenso, durando meses ou até anos, confunde-se as dores do abandono e as necessidades e expectativas do adotando com os desejos dos adotantes. Nada mais viável se faz que as avaliações psicológicas e sociais realizadas, que são de extrema importância para auxiliar o juízo no conhecimento do perfil do adotante (FIORELLI & MANGINI, 2009), visto que é este perfil que deve se adequar ao que é necessário para a criança, e não o contrário. Os sentidos de maternidade e paternidade devem ser levados em conta também, visto que uma filiação deste tipo traz especificidades que não são encontradas numa filiação biológica (COSTA & ROSSETI-FERREIRA, 2007). Uma equipe interdisciplinar, então, deve fazer entrevistas e visitas domiciliares com os candidatos a pais adotivos, visando um entendimento de seu modo de vida, social e profissional, bem como verificar as subjetividades envolvidas no processo e o significado que a vinda da criança tem para o adotante, através de uma análise psicológica (FIORELLI & MANGINI, 2009). Nos casos de adoção tardia, em especial, o posicionamento da criança é muito mais interativo e ativo que um bebê, pois lhe cabe aceitar, negar e negociar posições que lhe podem ser atribuídas, além do fato de que este sujeito já tem uma história de vida anterior (COSTA & ROSSETI-FERREIRA, 2007) que não pode ser deixada de lado, pois já faz parte da constituição de seu ser. Com isso, vemos que o processo de adoção carrega em si diversos aspectos que devem ser trabalhados a acompanhados, em especial quando este ocorre tardiamente. A atuação da cultura predominante também dificulta os estágios desse processo, pois "adolescentes estigmatizados pelo abandono e pela institucionalização não deixarão de existir ou de representar uma ameaça ao bem-estar social – porque bem sabemos que assim é que são hoje vistos pelo senso comum e por alguns de nossos representantes políticos" (CAMARGO, 2005). Consequentemente, o ciclo de abandono e as condições impostas que permeiam as famílias que aguardam uma criança é continuado, engessando novas formas de pensar e agir. De acordo com Camargo (2005), um dos maiores desafios que devem ser transpostos é a construção de uma nova cultura de adoção, para que a quantidade de crianças e adolescentes sem famílias comece a diminuir no Brasil. Isso só será possível quando o tido como ideal também passar por uma reflexão pautada naquilo que a própria proposta define: o melhor para a criança, pois é ela que não pode ser privada de uma convivência de uma família, seja qual configuração esta tenha. De outro lado, políticas e educação que viabilizem a erradicação do abandono também devem ser consideradas, para romper esse círculo que prejudica a todos os envolvidos. Ludmila Ângela Müller Psicóloga Especialista em Psicologia Jurídica FIORELLI, José O.; MANGINI, Rosana C. R. Psicologia jurídica.São Paulo: Atlas, 2009. CAMARGO, M. Lázaro. A adoção tardia no Brasil: desafios e perspectivas para o cuidado com crianças e adolescentes..In:SIMPÓSIO INTERNACIONAL DO ADOLESCENTE, 2., 2005, São Paulo. Disponível em: <http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000082005000200013&lng=en&nrm=abn>. Acesso em 17 jun. 2018. COSTA, Nina R., ROSSETTI-FERREIRA, Maria C. Tornar-se Pai e Mãe em um Processo de Adoção Tardia. In.Psicologia: Reflexão e Crítica2007, 20 Disponível em: <http://www.fiap.redalyc.org/articulo.oa?id=18820310>. Acesso em 17 jun. 2018. Comments are closed.
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