“O Processo” de Franz Kakfa, romance praticamente obrigatório para todos os operadores do Direito, embora publicado em 1925, permanece hodierno. É o que se denota do diálogo entre o advogado Huld e seu cliente, Joseph K., sobre a “primeira petição” que seria elaborada em sua defesa:
“É evidente que ele tinha começado a trabalhar imediatamente e a primeira petição já estava quase pronta. Ela era muito importante, porque a primeira impressão que a defesa produzia muitas vezes definia todo o rumo do processo. Infelizmente – de qualquer maneira precisava chamar a atenção de K. a esse respeito – às vezes acontecia que as primeiras petições ao tribunal não eram lidas. Eram simplesmente anexadas aos autos, assinalando-se que, provisoriamente, ver e ouvir o acusado era mais importante do que todos os papéis escritos. Acrescentava-se que, caso o requerente insistisse bastante, se faria, antes da decisão final, e assim que os materiais pertinentes estivessem reunidos, uma revisão de todos os autos e, por consequência, também da primeira petição. Infelizmente, porém, também isso na maioria das vezes não era certo, pois, em geral, extraviavam a primeira petição ou acabavam por perdê-la, e, mesmo quando a conservavam até ao fim, mal era lida, conforme soubera o advogado, ainda que unicamente através de rumores.[1] Pois bem. Quando se coteja a fala do advogado Huld na icônica obra de Franz Kafka com a realidade de diversos fóruns criminais Brasil afora, é possível concluir que o tratamento destinado à “primeira petição” não sofreu grandes alterações. Com efeito, diariamente são proferidas diversas decisões que (não) analisam e (não) enfrentam os argumentos esgrimidos pelos advogados nas primeiras petições defensivas (Resposta à Acusação ou Defesa Prévia), valendo-se unicamente de fundamentações genéricas, “aplicáveis” a qualquer caso, e, portanto, inaplicáveis[2]. Vide: ao final (imagem), eis apenas um exemplo de decisões desse jaez que grassam nos escaninhos forenses. In casu, em que pese o advogado do acusado tenha alegado teses de rejeição da denúncia e de absolvição sumária, o Magistrado sequer citou e muito menos enfrentou os argumentos desenvolvidos na “primeira petição” feita pela Defesa (Resposta à Acusação). Trocando em miúdos, a prevalecer a decisão, no caso de o advogado não opor Embargos de Declaração indigitando omissões na decisão, o processo terá seguimento sem a análise efetiva da possibilidade de absolvição sumária ou de rejeição da exordial acusatória (através do que a doutrina chama de segundo exame de admissibilidade da denúncia). Vale dizer, haverá a indevida supressão de uma etapa prevista em Lei, em nítido prejuízo ao acusado. Entrementes, também não houve grandes mudanças em relação ao alerta do advogado Huld a seu cliente Joseph K.: “ver e ouvir o acusado era mais importante do que todos os papéis escritos”. Assim como Huld, quem exerce atualmente a advocacia criminal bem sabe que, por mais que se trate de uma hipótese flagrante de rejeição da denúncia ou absolvição sumária, os “papéis escritos” certamente serão preteridos pela praticamente obrigatória abertura da instrução processual para “ver e ouvir as testemunhas e o acusado”. Salvo raras exceções, a práxis vem demonstrando que não importa a qualidade dos argumentos que constem na “primeira petição” da Defesa, a análise das teses defensivas ficará relegada para o fim da instrução processual, quando então, assim como na obra de Franz Kafka, será feita “uma revisão de todos os autos e, por consequência, também da primeira petição”. Como se vê, em que pese se tratar de um procedimento adotado há mais de noventa anos, a maneira com que a “primeira petição” é tratada pelo Poder Judiciário não sofreu grandes alterações desde os tempos de Franz Kafka. Até quando o Direito seguirá ignorando o alerta da Literatura? Matteus Macedo Advogado Criminal Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal [1] KAFKA, Franz. O Processo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 141-142 [2] Art. 489, §1º, III do Código de Processo Civil: “Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: (...) invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão”. Comments are closed.
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