Resistência
Pode-se afirmar que resistir, opor-se a algo ou concordar é natural do e ao homem, tendo em vista a enorme influência que a subjetividade, construída a partir da história, do tempo e espaço, do meio de cada indivíduo, suas leituras, gostos e preferências, tem na formação de sua opinião e posicionamentos, consequentemente na manifestação deles e demais ações[3]. Muito embora a racionalidade, ou seja, a capacidade de pensar seja inerente ao homem, ele não foi sempre livre para expor seus pensamentos e ideias e agir conforme os mesmos. Dessa forma, a liberdade para resistir ou não foi sendo conquistada através da resistência à opressão e à censura que sofriam determinados grupos de pessoas ou classes sociais por parte do governo, da Igreja ou por parte de outros grupos, constituindo, em outras palavras, “uma ‘juridificação’ democrática deste mecanismo histórico contra as injustiças do poder público, uma ‘juridificação’ democrática das formas de controlo do poder e garantia dos direitos e liberdades”[4]. E assim, a paz ou a normalidade institucional “passa a ser concebida como algo indissociável ao estado de emergência. A razão que fundamenta tal conclusão é simples: o poder natural de oposição (exceção) que se concede ao povo soberano pode a qualquer momento manifestar-se”[5]. Entretanto, a forma como posicionar-se contra algo e suas consequências são determinadas pelo meio, por valores, costumes, leis e pelo próprio funcionamento e consciência jurídica de cada sociedade, tendo em vista que o contrário, ou seja, tornar irrestrito o exercício da resistência, como bem pontuado pelo autor Catib de Laurentiis, acarretaria em “uma ameaça constante para a preservação da segurança jurídica”[6]. Resistiu-se para poder resistir até que hoje, tornou-se um direito norteado pela liberdade: o direito de resistência. Direito de Resistência O Direito de Resistência, por este artigo qualificado como uma categoria[7] essencial, possui, então, como conceitos operacionais[8], nas palavras de José Carlos Buzanello, respectivamente com sentido político e jurídico:
Nesse sentido, trata-se de “il diritto del singolo o di gruppi organizzati o di organi dello Stato, o di tutto il popolo, di opporsi com ogni mezzo, anche com la forza, all’esercizio arbitrário e violento, non conforme al diritto, del potere statale”[10]. Ainda, o direito de resistência diz respeito a uma: Instituição jurídico-política, positivada ou não no ordenamento jurídico, de caráter subsidiário, secundário e não-jurisdicional, atribuível ao indivíduo, isolada ou colectivamente, com o objetivo de garantir os direitos, princípios e valores da ordem constitucional[11]. A secundariedade do direito de resistência é o que confere a ele caráter tutelar, ou seja, serve para proteger as normas primárias: é um direito secundário que intervém num segundo momento, quando são violadas[12], pressupondo assim “um direito ainda mais substancial e originário, o direito do indivíduo a não ser oprimido, ou seja, a gozar de algumas liberdades fundamentais: fundamentais porque naturais, e naturais porque cabem ao homem enquanto tal”[13]. Ademais, seu conceito não possui ambiguidades, pois, ao contrário do que alude o autor Pedro Egydio de Carvalho[14], a resistência e o direito de resistir, antes de, excepcionalmente poder ser usado como elemento autodestrutivo do Estado, é mecanismo auto preservativo e auto conservador do mesmo e de seus valores supremos. Outrossim, o direito de resistência divide-se em duas classificações mais importantes, as quais, justificarão a resposta da problemática apresentada pelo presente artigo científico: a) Resistência afirmativa – resulta da díade contestação/mudança, que consiste no exercício que contrasta o status quo com o desejo de transformações de perspectivas políticas, ou afirmação e ampliação de direitos. b) Resistência limitativa – resulta do exercício que visa à conservação política e social, mediante expediente de controle do Estado, com vistas a evitar irregularidades políticas e administrativas ou no desrespeito da liberdade dos indivíduos[15]. Tempo de Resistência Por tempo de resistência, entende-se todo o lapso temporal em que se resistiu a algo. Ao longo da história, vários são os exemplos de resistência ao abuso de poder, à violência, à ausência de direitos, a subordinação, ao preconceito, a repressão ou simplesmente à uma ideia contrária, ligados às mais diversas esferas da vida humana como a política, a religião, a economia, a sociedade. A resistência, ou seja, lutar contra, não ceder ou não sucumbir diante de algo, materializou-se e materializa-se de diferentes maneiras desde manifestações até guerras e revoluções. Processo penal: por que ainda deve resistir? “Qualquer ato do poder, leis, atos administrativos ou de outras categorias podem infringir direitos, liberdades e garantias”[16] e até mesmo
E, muito embora, até agora, fora dado um viés um tanto quanto político ao direito de resistência, agrega-se um viés jurídico-positivo[19] quando trata-se da correlação dessas categorias no e com o processo penal, visto que, nele, o direito de resistência adquire status de direito-dever[20]. Isso porque, caracteriza-se por um comando constitucional, de caráter subsidiário e auto protecionista, ou seja, o dever de resistir volta-se à proteção do ordenamento positivado, e de igual forma dos direitos, liberdades e garantias ali previstos, funcionando: como contraposição ao exercício do poder e, por consequência, como forma de promoção da liberdade e da dignidade da pessoa humana, tendo como base os elementos fundamentadores do segundo. Dessa relação, nasce uma estrutura jurídica de proteção[21]. E, no contexto de resistir, no sentido de defender-se de uma ordem injusta[22], é que se legitima a resistência, cuja finalidade é de proteger qualquer direito, impedir violações, fazer valer a lei e concretizar a força normativa[23] constitucional e infraconstitucional do corpo legal. Ainda:
Portanto, o direito-dever de resistência no processo penal, recai sobre todos os seus jogadores[25], e em oportunas ocasiões sobre demais participantes que intervém direta ou indiretamente no jogo processual penal. E, através de suas ações, no sentido de fiscalizar, observar e assegurar o cumprimento da lei e dos direitos das partes é que os operadores do processo penal o aplicam e o exercitam, contribuindo para “a interpretação de todo o ordenamento jurídico, para orientar a hermenêutica constitucional e o critério de medir a legitimidade das diversas manifestações do sistema de legalidade”[26]. Desse modo, o próprio processo penal, materializa-se como instrumento legítimo de resistência[27] limitando o “raio de acção (abusiva) do poder da autoridade pública e do Estado e a preservação perene da liberdade das pessoas”[28]. Ainda, resiste a toda e qualquer “ordem ilegal, a uma norma inconstitucional, ou seja, sempre contra a violação do ordenamento jurídico. O motivo que leva à resistência será sempre jurídico”[29]. Desse modo, os jogadores, sempre que diante da suspeita ou evidência de uma ilegalidade, equívoco decisional ou procedimental, devem buscar a reformulação dessas decisões e revisões criminais, em outros graus de jurisdição, pois, embora grandes atrocidades, golpes hermenêuticos e resquícios inquisitórios sejam vistos e cometidos no e pelo poder judiciário, “a resistência, sempre que possível, pode e deve requerer a proteção judiciária”[30]. O exercício do direito-dever de resistência tanto para não perder direitos já adquiridos, para resgatar as garantias perdidas, quanto para adquirir outros e outras ainda não conquistados, faz-se ainda mais importante na esfera processual penal, pois nela, tutelam-se os bens jurídicos mais preciosos da humanidade: a vida e a liberdade: Dentre as necessidades humanas, a liberdade e a dignidade são elementares. Portanto, diante de um sistema penal essencialmente violador dos direitos humanos e ineficaz na solução de conflitos, o papel do direito penal como discurso científico é constituir barreiras capazes de conter ou reduzir o poder punitivo[31]. Perante todo o exposto, afirma-se: o processo penal ainda deve resistir e sempre resistirá, pois o direito de resistência no processo penal é um direito-dever que deve ser exercido diariamente. E, nesse sentido, tem que se fazer valer constantemente, ou seja, fazer ser observado seus dispositivos e seus ritos pelos seus operadores e jogadores. A luta em prol dos direitos e garantias e da aplicabilidade do rito processual, cada vez mais norteado pelos preceitos fundamentais e princípios constitucionais, é contínua e ininterrupta, logo, inerente a atividade jurídica. Resistir-se-á para não perder (resistência limitativa), resistir-se-á para recuperar e resistir-se-á para ganhar (resistência afirmativa) e, assim, o processo penal não só vive como sempre viverá em tempos de resistência. Andressa Tomazini Graduanda de Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina e Pós Graduanda em Direito Penal e Processo Penal Aplicado pela Escola Brasileira de Direito Pesquisadora Científica (Grupos de Pesquisa ZEITGEIST e Mediação como Política Pública UFSC) Conselheira Científica das Revistas: Artigos Jurídicos e Direito em Debate e Direito, Cultura e Processo [1] Publicado originalmente no Livro do Simpósio da AACRIMESC intitulado “Tempos de Resistência”, sendo o presente artigo o correspondente ao capítulo primeiro da referida obra. [2] Graduanda de Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina e Pós Graduanda em Direito Penal e Processo Penal Aplicado e Direito Tributário Aplicado pela Escola Brasileira de Direito Pesquisadora Científica do Grupo de Pesquisa ZEITGEIST. Conselheira Científica das Revistas: Artigos Jurídicos e Direito em Debate e Direito, Cultura e Processo. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8224202458055500. Email: [email protected] [3] BUZANELLO, Jose Carlos. Estatuto do direito de resistência. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo, RT v. 42, jan. 2003, p. 210: “A objeção de consciência é a recusa ao cumprimento dos deveres incompatíveis com as convicções morais, políticas e filosóficas, numa pretensão de direito individual em dispensar-se da obrigação jurídica imposta pelo Estado a todos”. [4] RODRIGUES, João Gaspar. Direito de resistência e sua positivação constitucional. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, v.16, n.63, p.157 [5] LAURENTIIS, Lucas Catib de. Direito fundamental à resistência: John Milton e o confronto do poder absoluto. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, v.20, n.80, p. 217 [6] LAURENTIIS, Lucas Catib de. Direito fundamental à resistência: John Milton e o confronto do poder absoluto. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, v.20, n.80, p. 218 [7] PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica: Teoria e Prática. 13. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2015, p. 27: “denominamos Categoria a palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou, à expressão de uma ideia”. [8] PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica: Teoria e Prática. 13. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2015, p. 39: “Quando nós estabelecemos ou propomos uma definição para uma palavra ou expressão, com o desejo de que tal definição seja aceita para os efeitos das ideias que expomos, estamos fixando um Conceito Operacional”. [9] BUZANELLO, José Carlos. Direito de resistência constitucional. 3 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2014, p. 150. [10] CASSANDRO, Giovanni. Diritto di resistenza. Novissimo Digesto italiano, Roma, 1982, p. 591, apud, RODRIGUES, João Gaspar. Direito de resistência e sua positivação constitucional. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, v.16, n.63, VER PAGINA [11] RODRIGUES, João Gaspar. Direito de resistência e sua positivação constitucional. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, v.16, n.63, p. 141 [12] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 44. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/cursos/ac/biblioteca/livro_bobbio_era_direitos.pdf. [13] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 44. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/cursos/ac/biblioteca/livro_bobbio_era_direitos.pdf. p. 2 [14] CARVALHO, Pedro Armando Egydio de. Algumas linhas sobre o direito a resistência. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, RT v. 12, out. 1995, p. 156: “A origem do conceito de resistência radica-se na Revolução Francesa de 1789, criado para ser a última trincheira da nova ordem, sua metatrincheira, ao modo de um guardião externo, conquanto paradoxalmente pudesse ir contra essa mesma ordem. Daí assoma a ambiguidade da resistência: se é um direito reconhecido e protegido, então o Estado admite dentro de si algo que o destrói, o que é um contra-senso; se, de outra banda, nunca puder ser invocada como remédio heroico, então o Estado democrático se contradirá a propósito de sua absoluta intenção de ‘assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança... como valores supremos de uma sociedade...’ (Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil)”. [15] BUZANELLO, José Carlos. Em torno da constituição do direito de resistência. Revista de Informação Legislativa. Brasília, Senado Federal, v. 168, out. 2005, p. 19-27, p. 27. [16] RODRIGUES, João Gaspar. Direito de resistência e sua positivação constitucional. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, v.16, n.63, p. 135. [17] MILTON, John. Escritos políticos. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 41. [18] BUZANELLO, José Carlos. Em torno da constituição do direito de resistência. Revista de Informação Legislativa. Brasília, Senado Federal, v. 168, out. 2005, p. 19-27, p. 20. [19] RODRIGUES, João Gaspar. Direito de resistência e sua positivação constitucional. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, v.16, n.63, p. 133: “O direito de resistência, antes visto como mero instituto histórico, categoria jusnaturalista, depende dos recursos hermenêuticos para a sua aceitação e aplicação, passou a ser encarado em termos de direito positivo e com as consequências práticas daí decorrentes”. [20] RODRIGUES, João Gaspar. Direito de resistência e sua positivação constitucional. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, v.16, n.63, p. 158: “Constitui-se numa reserva jurídico-moral – daí ser um direito-competência, um direito-garantia, um direito-defesa – a que o homem pode recorrer em caso de desordem ou ruptura do sistema constitucional”. [21] CARPENTIERE, José Rafael. Direitos humanos e o direito penal: pensamento como forma de resistência ao poder. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo. v. 22, n. 108, p. 191-222, maio/jun. 2014, p. 192. [22] BUZANELLO, José Carlos. Em torno da constituição do direito de resistência. Revista de Informação Legislativa. Brasília, Senado Federal, v. 168, out. 2005, p. 19-27, p. 27. [23] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. [24] RODRIGUES, João Gaspar. Direito de resistência e sua positivação constitucional. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, v.16, n.63, p. 135. [25] ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a Teoria dos Jogos. Empório do Direito, Florianópolis: 2016. [26] BUZANELLO, José Carlos. Em torno da constituição do direito de resistência. Revista de Informação Legislativa. Brasília, Senado Federal, v. 168, out. 2005, p. 19-27, p. 20. [27] Bem como outras ações como o mandado de segurança, o qual visa cessar ou prevenir ato coator de determinada autoridade e o habeas corpus, remédio constitucional para prisões ilegais. [28] RODRIGUES, João Gaspar. Direito de resistência e sua positivação constitucional. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, v.16, n.63, p. 158. [29] RODRIGUES, João Gaspar. Direito de resistência e sua positivação constitucional. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, v.16, n.63, p. 153. [30] BUZANELLO, Jose Carlos. Estatuto do direito de resistência. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo, RT v. 42, jan. 2003, p. 215. [31] CARPENTIERE, José Rafael. Direitos humanos e o direito penal: pensamento como forma de resistência ao poder. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo. v. 22, n. 108, p. 191-222, maio/jun. 2014, p. 218 Comments are closed.
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