Artigo de Denilson da Silva e Tauany Larissa Silverio de Lima no sala de aula criminal, sobre ''white bear'', episódio de Black Mirror e o direito processual penal brasileiro, vale a leitura! ''A espetacularização da aplicação do Direito Penal, transformando a punição numa espécie de reality show, reforça com os elementos ficcionais as práticas de linchamentos virtuais promovidas nas redes sociais. A punição da personagem alcança seus mais altos índices de crueldade ao se obrigá-la a assistir todas as noites o crime que ela mesma filmou. A punição é conduzida de tal forma, que a sua vítima é posta à margem da sociedade, assumindo-se como uma espécie de monstro. O seu castigo deve ser ininterrupto e sem descanso, dia após dia''. Por Denilson da Silva e Tauany Larissa Silverio de Lima CONTÉM SPOILER!!
Black Mirror é uma série britânica, apresentada pela NETFLIX, muito diferenciada, pois cada episódio, em tese, conta uma história que é totalmente desconexa da outra, mas que guardam a relação do ser humano com a tecnologia, de uma forma intensa, porém não distante, em comum. Escolhemos este episódio em questão, para envolvermos ele no contexto do processo penal, do modo que estamos estudando atualmente, pelo impacto que a tecnologia e a justiça própria nos trouxeram, violada por incontáveis princípios constitucionais básicos para todo ser humano. Destarte, em síntese, a peripécia começa em um quarto onde a personagem principal, Victoria, acorda sentada na cadeira. Sem saber o que de fato aconteceu e o motivo dos curativos nos seus pulsos, fica confusa, mas, assemelha-se à da casa, desarrumada, com pílulas jogadas no chão. À sua frente, uma televisão ligada transmite o símbolo com o formato de um garfo invertido. Atordoada, ela tenta entender o que se passa e então, desce as escadas e se depara com uma outra sala, também com uma TV emitindo o mesmo símbolo. Nesse ambiente, ela descobre fotografias, e se apega imediatamente a foto da menina que está separada em cima de outra foto dela com um homem no porta-retrato. Victoria deixa a casa e avista ruas semelhantes às de um típico condomínio suburbano. Sem movimento e abandonadas, ela observa pessoas nas casas ao redor filmando estáticas e aos poucos vão para as ruas. Portando celulares, elas se preocupam em apenas filmar os movimentos de Victoria, sem esboçarem a mínima reação aos seus gritos de socorro. Na sequência, a cena apresenta um homem mascarado desembarcando de um carro preto. Sem motivos aparente, ele começa a atirar contra Victoria, que, desesperadamente, foge para se proteger. Após alguns minutos, ela encontra outras pessoas que também parecem estar em fuga, com as quais consegue, finalmente, se comunicar. Elas lhe explicam que um sinal (o mesmo sinal visto no começo do episódio) foi responsável por transformar as pessoas em uma espécie de zumbis tecnológicos. Outros que restaram e não foram afetados pelo sinal tentam matar essas pessoas em fuga. E são eles que surgem após a tentativa de Victoria se comunicar com os que a filmam com os seus celulares, e passam a persegui-la com a intenção de matá-la. Finalmente, Victoria consegue com a ajuda de uma companheira que, aparentemente não foi afetada pelo sinal na estação de TV “White Bear” com a missão de desligar o sinal responsável por hipnotizar as pessoas. Ao chegar à estação, ela se depara com os mesmos vilões que a perseguiram no início do episódio. Na luta que se inicia contra eles, Victoria retoma a espingarda da mão de um deles, e no momento de disparo do tiro revela-se uma arma que, em vez de balas, são lançados confetes. Imediatamente, o ambiente se revela um cenário com um auditório oculto. Tudo o que se viu até então, passa a ser compreendido como parte de uma encenação. Victoria protagoniza um reality show de exposição e tortura psicológica em um parque temático específico para isso, de forma repetitiva, pois sua memória é apagada a cada dia para que toda a sua jornada de sofrimento possa ser repetida no dia seguinte para entretenimento de quem a está observando. Isto se deu, após de ser julgada e condenada por participar com seu noivo, nos crimes de sequestro, tortura e assassinato de uma menina que tinha por volta dos seus 4 a 6 anos, sendo este último filmado por ela mesma. O símbolo “white bear” (urso branco) se dá pelo urso de pelúcia ter sido a pista que levou a polícia encontrar o corpo da menina. Nos créditos finais, é revelado mais um aspecto sobre o Parque de Justiça (o local onde a personagem cumpre sua pena sendo uma atração principal), que faz referência às regras do local para os visitantes do dia. Estas recomendam não falar e manter a distância e a última é divirta-se! (Enjoy yourself), numa mensagem clara que entreter-se com o sofrimento de uma criminosa faz parte da sua condenação. Claramente observa-se uma prática da sociedade atual - claro que no universo Black Mirror tudo foi exageradamente desproporcional - em redes sociais: julgar e condenar qualquer pessoa por vídeo, e até mesmo preferir filmar crimes horrendos em vez de denunciá-los a órgãos competentes, com a intenção de fazer justiça com as próprias mãos. Mas não queremos abordar esse aspecto, apesar de interessante. O aspecto que queremos abordar é o julgamento de Victória, mostrado ao final do episódio. Primeiramente, foi dado de maneira rápida e, pela comoção pública, os sujeitos processuais (defensor, juiz, promotor MP, assistente de acusação) se dobraram a vontade popular decidindo por uma condenação “proporcional” ao seu crime. Indubitavelmente observamos que a preocupação com a JUSTA DECISÃO e com que o inocente não fosse punido, já não interessaria mais, por tamanha intervenção e consideração pela opinião pública. Evocamos, portanto, alguns sistemas processuais que se diferenciam para elucidarmos nossos argumentos, pois “no sistema inquisitório os interesses do Estado prevalecem sobre os interesses do indivíduo. No sistema acusatório, ao contrário, o indivíduo e seus interesses ocupam lugar central” (POLI, Camilin Macrie. Out/2017), ou seja, o seriado nos passou um sistema inquisitório claro. Salientamos a falta de princípios reguladores do processo penal em que a ré foi submetida, como a evidente violação da presunção de inocência, o comprometimento da imparcialidade, principalmente do juiz, ofensa ao devido processo legal, ao contraditório e a ampla defesa, ou seja, houveram vários momentos em que foram violados inúmeros direitos e garantias de Victória. Entretanto, a prova, em tese, irrefutável e cabal, se deu a um vídeo feito pela própria ré filmando seu noivo cometendo tortura e assassinato. Em qualquer análise pericial com especialista em psicologia, que deveria ser solicitado pelo defensor em momento oportuno no processo e analisado imparcialmente pelos peritos e pelo juiz natural, poderíamos constatar o evidente desiquilíbrio mental da ré, o que em nosso sistema penal levaria a uma absolvição sumária em sua fase inicial com punição em medida de segurança por incidente de insanidade mental, trazendo assim uma excludente de culpabilidade, conforme o artigo 397, II do CPP c/c art. 26 do CP c/c art. 97 do CP. Tal qual chegamos à conclusão que, “portanto, deve ser aplicado, sim, o art. 397 do Código de Processo Penal no procedimento do Júri, observando, ademais, o disposto no art. 3º. do mesmo Código.” (POLI, Camilin Macrie. Out/2017). Pois, com a falta do papel do sujeito processual do defensor técnico ao não pedir um perito para avaliar a saúde mental da ré, assim como estudamos: “Ao defensor se atribui a defesa técnica do acusado, que tem a tarefa de zelar pelo cumprimento dos seus direitos e de apresentar oposição à tese acusatória, a fim de se demonstrar o não cabimento da acusação e a inocência do acusado, apresentando, eventualmente, provas.” (MORAES, André Felipe Oliveira. SALLUM, Camila. Mai/2020). Não obstante, durante o momento que passava o momento de seu julgamento, pudemos observar que a ré alegou ser obrigada por seu noivo a filmar o terrível crime, porém não houve um momento em que a existência de uma defesa comprometida com seus direitos fosse evidente para garantir um julgamento justo. Ou seja, o sujeito processual que é o advogado de defesa não efetuou seu papel de defesa técnica. Outro abuso aos direitos da acusada foi a falta de sigilo processual do caso, que claramente não houve, pois de acordo com o art. 20 do CPP, “a autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”, porém como o vídeo deve ter viralizado na internet comovendo todo o país, a sociedade pressionou o júri e todos os envolvidos que, em vez de demostrarem a sua imparcialidade e considerarem a presunção de inocência, se tornaram extremamente parciais cedendo ao dissabor do povo. Ponderamos que a ré foi relativamente desumanizada, a ponto de ser tratada pior do que um animal irracional tendo que passar toda a sua pena revivendo o mesmo dia em meio ao desespero, medo, agonia, vergonha, confusão e tristeza. Nenhum dos personagens mostraram certa empatia ou sequer certa misericórdia ao tratamento colocado a ela. Pelo contrário, cada instrução passada aos “visitantes” do irônico “Parque da Justiça”, remetiam a comportamentos monstruosos como se a Victória fosse nada mais do que uma atração desprovida de qualquer sentimento ou direito. O que nos leva ao ultimo ponto a ser analisado neste trabalho: a ressocialização. “O Direito Penal brasileiro é voltado, atualmente para o sistema misto em que se usa o sistema retributivo e o sistema reabilitador. O sistema retributivo é uma forma de castigo para aquele que praticou algum crime e busca retribuir o dano que foi causado. Já o sistema reabilitador é uma ideia de prevenção em que o indivíduo se recupera para poder reintegrar à sociedade.” (MORAES, André Felipe Oliveira. SALLUM, Camila. Mai/2020). Ou seja, nosso direito penal como um todo tem por objetivo punir os criminosos, porém, após o justo pagamentos pelos atos cometidos, se arrepender e continuar a sua vida com uma segunda chance digna. Contudo, “o desrespeito à dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º inciso III e o artigo 5º da Constituição Federal, aduz que todos são iguais perante a lei, portanto é necessário tratar os presos como seres humanos e não como mero objeto”.(OLIVEIRA, Joaquim Humberto Coelho de. JUNIOR, Sergio Henrique Fernandes Bragança. Ago/2018), e para que seja alcançado, os atos processuais em cada procedimento do processo penal, que é objeto de estudo neste trabalho, devem acontecer de forma correta e imparcial a fim de auferir a “verdade material” (BETTIOL, Giuseppe. Set/2014), a segurança jurídica e a consequente justiça. A exploração da imagem da personagem Victoria pela mídia alimenta o desejo de vingança da própria sociedade, representada pela platéia, e demonstra como essa forma de punição extrapola o direito. A concepção de pena defendida pelo Parque da Justiça opõe-se aos princípios do Direito, como a sua proporcionalidade e humanidade. A justiça assume de forma inequívoca um caráter de pena vingativa contra Victoria, que só toma conhecimento do que de fato acontece nos momentos finais do espetáculo. A espetacularização da aplicação do Direito Penal, transformando a punição numa espécie de reality show, reforça com os elementos ficcionais as práticas de linchamentos virtuais promovidas nas redes sociais. A punição da personagem alcança seus mais altos índices de crueldade ao se obrigá-la a assistir todas as noites o crime que ela mesma filmou. A punição é conduzida de tal forma, que a sua vítima é posta à margem da sociedade, assumindo-se como uma espécie de monstro. O seu castigo deve ser ininterrupto e sem descanso, dia após dia. Esse tempo contínuo da punição é representado nos momentos finais do episódio, com um calendário marcando os dias em que Victoria foi punida. Como efeito último desse dispositivo punitivo, Victoria é desumanizada, pelo abandono de qualquer finalidade da pena; o da retribuição e o da prevenção. (OLIVEIRA, Joaquim Humberto Coelho de. JUNIOR, Sergio Henrique Fernandes Bragança. Ago/2018). Concluímos que o processo penal neste episódio é totalmente inexistente ou feito com diversos erros e violações a princípios constitucionais de direitos e garantias fundamentais, pois a sociedade exigiu ser “justiceira”, enquanto aqueles que deveriam resguardar estes direitos, sucumbem a uma parcialidade tamanha que se tornam iguais a personagem ali julgada. O que nos remete os primórdios do direito como a Lei de Talião, com a máxima “olho por olho, dente por dente”. Refletimos então que quando voltamos para nós mesmos e não olhamos o outro, nos perdemos. Portanto, quando há a inexistência do processo penal ou ele é conduzido de forma errônea, não há direito, garantias, verdade ou sequer justiça. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Espetacularização da Modernidade: https://medium.com/cinecr%C3%ADtica/black-mirror-t2e2-white-bear-urso-branco-a96fb0c3bd82. ACESSADO: 09/10/2020 ás 21:13 MARQUES, Arquimedes. A lei de talião ainda sobrevive para o autor do crime de estupro: https://migalhas.uol.com.br/depeso/93328/a-lei-de-taliao-ainda-sobrevive-para-o-autor-do-crime-de-estupro. ACESSADO 10/10/2020 às 00:27. MORAES, André Felipe Oliveira. SALLUM, Camila. RESSOCIALIZAÇÃO DE APENADOS: APAC UMA NOVA ALTERNATIVA: https://emporiododireito.com.br/leitura/ressocializacao-de-apenados-apac-uma-nova-alternativa. ACESSADO 10/10/2020 às 11:52. MOREIRA, Rômulo de Andrade. O procedimento do júri e a aplicação do art. 397 do código do processo penal: https://emporiododireito.com.br/perfil/romulo-de-andrade-moreira-1508239992. ACESSADO 09/10/2020 às 23:38. OLIVEIRA, Joaquim Humberto Coelho de. JUNIOR, Sergio Henrique Fernandes Bragança. DIREITO E A METAFICÇÃO BLACK MIRROR: JUSTIÇA E VINGANÇA DE MÃOS DADAS COM O URSO BRANCO (WHITE BEAR): http://rdl.org.br/seer/index.php/anacidil/article/view/388. ACESSADO 08/10/2020 às 15:48. PASCHOAL, Jorge Coutinho. O processo e as principais teorias acerca de sua natureza jurídica: https://emporiododireito.com.br/leitura/o-processo-e-as-principais-teorias-acerca-de-sua-natureza-juridica-por-jorge-coutinho-paschoal. ACESSADO 10/10/2020 às 11:09. POLI, Camilin Marcie de. As funções dos sujeitos processuais no Processo Penal Democrático – Justificando: http://www.justificando.com/2017/10/04/as-funcoes-dos-sujeitos-processuais-no-processo-penal-democratico/, ACESSADO 09/10/2020 às 23:00. ROSA, Alexandre Morais da. JUNIOR, Salah H. Khaled. O olho que tudo vê enxerga a verdade real: in dubio pro hell, irmãos: http://www.justificando.com/2014/09/09/o-olho-que-tudo-ve-enxerga-verdade-real-dubio-pro-hell-irmaos/. ACESSADO 10/10/2020 às 11:34. Denilson da Silva Graduando em direito pela UNINTER. Assistente de Operações Acadêmicas. Tauany Larissa Silverio de Lima Graduanda em Direito pela UNINTER. Estagiária no ramo do Direito Civil Contratual e Trabalhista. Com experiência em Serviço Público e Direito Legislativo.
3 Comments
Amanda Manso
10/22/2020 09:42:07 pm
Wow! Artigo muito bem redigido! Reflexão muito pertinente e análise rica à luz do processo penal brasileiro! Excelente leitura!
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Harrison Lima
10/22/2020 10:40:52 pm
Excelente artigo, de fácil compreensão e muito bem redigido... Parabéns 👏
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Laura
10/22/2020 10:57:23 pm
Parabéns aos autores do artigo. Conseguem conduzir o leitor a uma ótima reflexão sobre o tema.
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