Crime: Todo o delito previsto e punido pela lei penal. Conceito reconhecido pelo dicionário Aurélio. A relação entre o primeiro crime e manutenção do poder. Ésquilo, (525-455 A.C.) filósofo, soldado e dramaturgo grego, transformou a maneira qual as histórias anteriores a ele eram contadas. Com o intuito de estudar o conflito e demonstrar a interação entre os personagens que entre si combatiam sentimentos e expunham seus valores na peça, reuniu sempre em suas obras um grande número de intérpretes. O inaudito trabalho deu certo, pois apenas eram conhecidas peças em que seus protagonistas representavam a relação entre si compondo o coro, mas nunca, dialogando uns com os outros. Para o autor de Os Persas, não era necessário ouvir um número abstrato de pessoas aleatórias sobre o palco, mas sim, vê-las desabafar seus sentimentos nas tragédias que escrevia. Ésquilo percebeu que a discussão, ao entrar em cena, era deflagrada pelas paixões humanas que se envolviam de maneira a creditar a obra e dessa forma, levar maior veracidade aos espectadores. Aliás, suas alterações no âmbito das artes deu-lhe um grande reconhecimento ao tratar a tragédia como ela deveria ser: vivente! Dessa forma, aquilo que nos é conhecido atualmente como drama passou a ser desenvolvido pelo aspecto estrutural das emoções humanas: de um lado extremamente inteligentes e dóceis, por outro, contendedores; rivais e ambiciosos. Determinados pontos de vista foram usados a partir de então para definir as interações entre as pessoas, todavia, o palco passou a ser preenchido com artistas que pudessem completar a real face humana, de dores, desespero, raiva, ciúmes e amor, entre tantos outros sentimentos. Dessa forma acreditou Ésquilo que seu triunfo maior fosse demonstrar a tragédia como ela realmente se daria nas ruas da vida afora; concretizando o olhar do homem para dentro de si, ao interpretar-se. Morreu, segundo reza a lenda, quando um abutre, confundindo sua careca com uma pedra, jogou uma tartaruga com intuito de parti-la ao meio o casco, matando o criador de Prometeu Acorrentado. Desde então o conflito e o drama passaram a ser dirigidos como a tragédia de Ésquilo; para que nos mostre as contendas num real plano. Só que as inimizades e discussões não foram as primeiras causas do primeiro crime que se tem notícia. Desde os primórdios gregos até o ano em que a vida de Cristo fora ceifada, um crime e apenas um era tido como o essencial ou pioneiro de todos os outros que viriam. Prometeu traiu Zeus ao levar o fogo para o homem, o que lhe custou a ira do deus que contra ele criou um dos maiores castigos já descritos, sendo a punição pela traição. Anterior à obra de Ésquilo temos o plano não mundanal, onde há a inexistência do ser. Metafisicamente a condição a priori da criação histórica do primeiro crime é o embate entre o ser superior e sua criação, como Zeus e Prometeu, há ainda; Deus (Jeová) e Lúcifer. O mais poderoso e belo anjo criado, segundo a Bíblia (Isaías 14: 12 – 15, Ez. 28.11-19) teria traído seu criador ao ponto de questionar os motivos de seguir a vontade de seu autor e não possuir as mesmas prerrogativas. Destarte, a insurreição causada pela sua criação gerou a traição contra Deus e o que seu poderio representa, sendo banido e considerado um anjo caído, vindo a repousar então na Terra. Fato que nos remonta a Dante Alighieri e sua Divina Comédia. Os três livros que formam a Comédia dantesca são divididos em três cantos cada um, trazem a incursão de um ser vivente nas bordas quais ninguém jamais retornou ao adentrar. O inferno, purgatório e paraíso são revelados por Dante que coloca, instintivamente, seus inimigos, desafetos, amigos e conhecidos da época escrita cada um em seu devido lugar, como bem quis Dante. O importante da Comédia é a interpretação dos crimes na época do autor, que remonta o ano de 1300, em Florença, Itália. Os crimes e criminosos foram dispostos nos sete círculos que o Inferno possui, cada qual com sua rigidez de pena. Assim, conforme for o crime a pena aumenta a aflição e a dor eterna da alma do condenado, que a cada descida de nível demonstra os piores crimes. Interessante ressaltar com entusiasmo os crimes considerados por Dante e pela época com uma menor complacência: a traição e o regicídio, confirmando a visão que Dante e a época tinha do Monarca e seu poder divino. Dante mesmo escreveu em 1314 (data provável) seu livro A Monarquia, considerando o crime ou tentativa de crime contra o Monarca um ato reprovável e de todos o mais hediondo. Da mesma forma, Dante considerou em sua obra a violência e bestialidade contra o próximo e contra a si mesmo, assassinatos e suicídios no primeiro giro do sétimo círculo do Inferno, dando a entender assim como o autor enxergava os tipos de crimes e como os julgava em seu tempo. Nota-se que a Comédia ressaltava, ainda que sendo obra ficcional de Dante, o pensamento político e histórico de uma época. A traição contra o Monarca ou a tentativa de tornar-se um regicida era, então, interpretada como um crime contra o próprio Deus, contra o metafísico e todas as suas estruturas dogmáticas postas e elaboradas pela purificação da Igreja, que trazia em seus cânones contos do mais alto crime até então: aquele que retirou o direito do filho rebelde em estar junto ao Pai. Dessa maneira, a importância do caráter longitudinal do poder não poderia estar em debate, menosprezado ou duvidado, pois era cedido por Deus. Anteriormente aos aspectos de crimes dantescos postos nos círculos infernais, o ato do mais alto crime ou o primeiro crime de que se tem notícia na Terra perfaz os mesmos passos da criação do anjo por Deus. A rebeldia e o desconhecimento de Eva, conduzida por um ser transcendente e obscuro que tomava a forma de serpente, levou-a a cometer a famigerada transgressão junto a Adão: traiu seu Deus (Genesis, 3) e com isso a punição foi a expulsão do jardim do Éden, a noção de pecado e a condenação à morte. O fruto da árvore proibida nada mais é que a alegoria do primeiro crime causado em solo criado por Deus (Éden), que se repete após a primordial violação contra o criador, realizado na época por seu anjo descontente. No entanto, o crime bárbaro a ser condenado lançou seus germes pela terra de Adão e Eva, chegando outra vez pela Bíblia às faces de Jesus, enviado para trazer um novo caminho aos viventes do globo. Judas cometeu o crime. O saldo em seu bolso pesava 30 moedas de prata, mistificadas também pelo popular. Ao beijar Cristo nas faces, Judas escrevia seu nome na história dos homens como regicida, mas antes disso, como traidor. Independente de seus interesses secundários, além da prata, Judas traiu. Ao refletir em Dante e sua Divina Comédia, nota-se Judas retornar da boca do comandante do Inferno, em seu último círculo, sendo mascado pela horrenda criatura, tendo parte de seu corpo deglutido e num passe de mágica nascerem novamente seus membros para que o excruciante castigo renove seus votos, num eterno e doloroso penar. O crime figurado como imperdoável; contra deuses e reis; descritos em inúmeras provas e escritos que provém do intelecto humano: traição. Assim, Efialtes contra Leônidas nas Termópilas, bem como os pretendentes de Penélope contra Ulisses[1], a traição ficara reconhecida como o grande crime que desestrutura reinados e também impérios. Por esse ato, a fala de Caio Júlio César (100-44 a.C.) no Senado ao ser apunhalado por 60 conjurados, entre eles Brutus, seu sobrinho e aprendiz adotivo lançou a seguinte oração que, dois mil anos após ainda pode ser ouvida em casos onde a insídia esteja presente: Tu quoque, Brute, fili mi?[2] Contudo, pode-se interpretar a traição como o primeiro ato a ser reprovado tanto nos céus quanto em Terra, abstratamente em estudos metafísicos onde o princípio da imposição está sempre presente, num sentido de dogma perpétuo. Não obstante, a Bíblia traz ainda as mazelas do ato contra o Ser Supremo e o que se é esperado após tal barbárie. A pena é grandiosa e serve não como prevenção, mas como castigo eterno, vide Judas, Lúcifer, Adão e Eva. Neste ponto retrata-se a cognição do ser quanto ao seu superior, sua posição perante a ordem e a constituição de seus atos frente ao abstrato comandante. Por vez, reis e monarcas são ordenados pelo Supremo, o que faz sua ordem divina. Um ato contrário a esses seres transcendentes geraria atitudes de refutação ao próprio Deus de Adão e de Eva. Engenhosa ou não, a traição contra o divino tornou-se um ato de rebeldia, punível com a morte, desde os primórdios e antecedentes de qualquer outro tipo de crime que se tenha notícia. Os crimes de sedição contra o monarca e sua divindade transformaram a maneira qual se enxergava a relação entre poder, dogma e obediência. Assim, a obediência deveria ser cega ao ponto de não deixar que atos contrários cheguem ao Rei, que irá puni-los, em nome do Pai. Com a força dos propósitos, mesmo que mitigada nas relações poder/povo, esse segundo teria sua obrigação pautada em um ensinamento ancestral de que a traição contra o soberano poder seria a rebeldia que negava anos de axiomas preparados para esse fim. Nota-se, nesse interim, que o crime diz respeito ao poder, a força e a manutenção de uma verdade suprema e incondicional. Enquanto, nas veias do imperador pulsar seu sangue azul as suas palavras e seus atos não podem ser questionados, nem seu sangue ser derramado. O crime da traição remonta os inicios de toda a história e a aureola de toda a criação de poder. Não obstante, qualquer idiossincrasia que demonstrasse o descontentamento ao superior era punível com o Inferno e suas histórias de penas absurdas, porém terminantes ao ideário humano que concretizava em seus rituais de controle a absorção do dogma a ser seguido. Da mesma forma, os direitos do monarca e seus atos não seriam negados ou contrariados, a não ser por uma forte e pulsante revolução que tomasse conta de todo um País ou um reino, em busca de melhores condições de vida humana. Exemplos de tais convulsões sociais se refletem nos livros de história e trazem a insurreição de alguns contra aquilo que é posto como verdade original. Se é fato que a verdade liberta, ela os libertará aos sons da traição, do primeiro fatídico crime descrito nos céus e que desceu até a Terra para corromper seus viventes contra o poder original. Sua lenda foi seguida por muitos anos, com intuito de manter o inquestionável poder do monarca, contra um crime de traição, punível com as mais excruciantes mazelas, entre as quais a morte. Soa de fato, o primeiro crime como a manutenção do controle da possível sedição, mantendo o comando sempre nas mãos de um ser que representa o Divino na terra, numa gestão do incondicional poder. Para corroborar essa afirmação, o presente em forma de texto enviado pelo florentino Nicolau Maquiavel (1469-1527) ao Príncipe Lourenço de Médicis em 1513, considerou em seus conselhos: “Nas repúblicas, porém, a vida e o ódio assumem um maior vulto, e é mais forte o desejo de vingança; a lembrança de sua antiga liberdade não as deixa nem as pode deixar impassíveis: o caminho mais seguro, portanto, será arrasá-las ou habitá-las. ” Assim, entende Maquiavel que cidades que viviam no respeito ás próprias leis, ao serem ocupadas pelo exército inimigo e tomada pelo novo Príncipe, tendem, mesmo com o passar de inúmeros anos buscar a vingança contra o patrono que tomou por via da conquista seu Estado. Entende assim que, mesmo o sangue azul do Rei e ainda, sua constatação divina e o seu posto ordenado por Deus, não afetaria os novos súditos com o passar dos tempos, isso devido à falta de personificação do Rei com Deus por um lado, e por outro, a ilegítima presença deste em solo alheio. Considera Maquiavel esses aspectos influentes na decisão da traição contra o Rei e seus dogmas legitimada por uma força contraria antes livre de seu julgo, podendo dar espaço assim às insurreições. Destarte, a traição seria convalidada e tida como certa, com intuito da retomada do poder. Para Maquiavel, arrasá-las por completo seria uma saída conveniente. De fato, não foi a tragédia de Caim e Abel ou a “tartarugada na cabeça de Ésquilo” o primeiro crime a ser descrito pelo intelecto humano e a ser realizado, foi sim, ainda que metafisicamente, mas como exemplo dogmático e pedagógico: a traição. Iverson Kech Ferreira Advogado especializado em Direito Penal Mestrando em Direito pela Uninter Pós-graduado pela Academia Brasileira de Direito Constitucional, PR, na área do Direito Penal e Direito Processual Penal Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário Internacional É pesquisador e desenvolve trabalhos acerca dos estudos envolvendo a Criminologia, com ênfase em Sociologia do Desvio, Criminologia Critica e Política Criminal Referências: ALIGHIERI, Dante. A divina Comédia, Ed. 34. São Paulo, 2001 BÍBLIA: Escrituras sagradas: http://www.camaramarilandia.es.gov.br/Arquivo/Documents/PAG/bibliasagrada.pdf ÉSQUILO, Os Persas: http://www.encontrosdedramaturgia.com.br/wp-content/uploads/2010/09/%C3%89squilo-OS-PERSAS.pdf ÉSQUILO, Prometeu Acorrentado: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/prometeu.pdf HOMERO, A Odisseia. http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/odisseiap.pdf MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/principe.pdf PLATÃO, A República. Ed. Martin Claret, São Paulo, 2002 ou http://www.eniopadilha.com.br/documentos/Platao_A_Republica.pdf Notas: [1]Efialtes (480 a.C.) tornou-se famoso ao trair o Rei Leônidas contra os persas comandados por Xerxes, na Segunda Guerra Médica, retratada em partes por Ésquilo. Diz a lenda que sua traição foi fulminante para a derrota grega. Ulisses, da obra Odisseia de Homero, saiu para as guerras de Tróia vagando por treze anos, ao retornar encontrou pretendentes acirrando-se para tomar seu lugar ao lado de sua esposa Penélope, ato tido como alta traição por Homero. [2]“Anche tu, Bruto, figliomio!”Marco Junio Bruto foi criado por Caio Júlio César como filho adotivo, após sua traição, foi a frase mais celebre de Júlio Cesar, entre as quais ainda Veni, vidi, vici e Alea jacta est certamente possuem cada qual sua importância atribuindo-se aos atos do Imperador. Todavia, marcada por sua trágica morte, Anche tu, Bruto, foi utilizada em Óperas e em sonetos, poemas e tragédias com intuito de identificar o atroz crime da traição. Comments are closed.
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