Crime: toda conduta típica, antijurídica e culpável. Definição recomendada pela doutrina. A atuação do homem em sociedade Nos estudos anteriores definimos o crime na fase metafísica e dogmática que pressupõe a passagem das condutas por um crivo essencial: o controle. Destarte, como vimos, a manutenção do poder historicamente converge para o uso da força e à legitimação de quem a maneja e por qual motivo a maneja. Evidencia-se então, os poderes de deuses e imperadores ordenados pelo divino e que não devem ser menosprezados em suas vontades. O primeiro crime, abstrato, mas metafísico, em seu sentido apologético e extremamente pedagógico foi a traição. Muito se entende o crime por condutas reconhecidamente típicas, ou seja, se amoldam ao tipificado no código penal, realizando o tipo e colocando em prática aquilo que enseja uma punição posterior. O primeiro crime de sangue que se tem notícia foi trazido pela Bíblia quando Caim matou seu irmão Abel por ciúmes, entendendo que seu consanguíneo teria sido favorecido ao extremo pelo criador, em detrimento de sua pessoa. Crimes de sangue, ou seja, bárbaros e brutais, ensejados por ciúmes, vingança ou desacerto, somente podem ser realizados em um convívio em sociedade, num conjunto ideal para a proliferação dos antagonismos. Todavia, para isso, se deve antes questionar o homem em seu particular aspecto que o define como ser racional protegido pela sua capacidade de convergir seus pensamentos em prol da convivência. Todavia, para qualquer ato definido contrário às normas é fundamental a exegese em sociedade, em comum e em contato intenso. O ser humano, em uma concepção fenomenológica, descobriu-se na falta. Sendo um produto de diferença, ou seja, nascido de um homem e uma mulher, é certo que desponta ao mundo pronto, mas não acabado ou esmerado, precisa ser humanizado (Piaget). Dentre os filhotes mamíferos é o humano o mais dependente do adulto em seu nascimento. Essa dependência cria o vínculo com o outro; com pai e mãe, tornando a inteligência emocional um primeiro passo a ser desvendado. Ao deparar-se, em sua relação com a natureza, com a falta, descobriu-se como um ser inteligente. Falta, pois é dependente ao extremo, gerando o relacionamento com o próximo, que o humaniza. Para Vygotsky, o homem somente deixa de lado sua condição animal quando em contato com outro homem. Mas isso ainda diz pouco aos nossos intuitos. O fato social que permeia a relação humana é definido pela proximidade que cada um, em sua devida existência, possui dos mecanismos de interação que são dispostos a sua frente. Assim, quanto mais ou menos houver interacionismo é que define a base de consistência da pessoa frente aos seus semelhantes. Assim, seria correto entender que o homem é um ser construído nas relações sociais de trabalho, fruto de uma maior interação simbólica nos moldes hodiernos de civilização (Becker). Se confrontando ou não a existência inteligente diante a uma primeira impressão de falta e depois de afeto ou dependência, a princípio, com o contato com o outro à relação especular que incita a estima e o prestígio o homem passa a entender-se como ser inteligente é um assunto que diverge de nossas iniciais questões. O que se pretende aqui é deveras reconhecer que a interação social é a real formadora dos quesitos aprovadores ou não do homem em vida coletiva, de reconhecimento de si próprio e dos outros, que somente pode ser completa por via das relações de trabalho (Vygotsky), no contato com o Outro. Assim, esse interacionismo simbólico traz a concepção de que os comportamentos sociais não se podem explicar a partir de esquemas rigidamente estabelecidos, segundo papéis sociais estereotipados, mas antes pela interação entre os sujeitos. O comportamento dos indivíduos só é compreensível a partir das interpretações que cada um faz dos mecanismos de interação social em que se encontra envolvido. Comportamentos desviantes de determinados grupos dentro da sociedade possuem ações peculiares e regras próprias (Becker). No entanto, a influência do outro não pode ser negada. Em seu fundamento essencial Lévinas traz o outro numa função de ser-para-outro, que significa pautar-se em uma alteridade essencial que determina o desenvolvimento estrutural da sociedade nas vivências e em suas diferentes formas que se encontram quando em conjunto. Todavia, o outro como promessa de aceitação, segundo Bauman, pode passar a ser também uma ameaça quando se passa a enxergar o mundo e seus caminhos por uma visão cada vez mais etnocêntrica e fechada, numa reformulação atual de distinguir o outro e o EU mesmo: por nossas diferenças. Esses antagonismos formam, por intermédio das vontades particulares e pulsões, que são energias geradas em nosso inconsciente (Freud), grosso modo, a coletividade em uma arena de competidores que buscam, na fluidez dos novos conceitos de laços humanos, seu lugar ao sol, custe o que custar. Ainda assim, não define ser a diferença, nem a busca pelo outro ou a pulsão a formadora de crimes que são considerados crimes de sangue ou por sua hediondez ponderados como desumanos. O que de fato conclui-se é que a interação entre os conviveres, seja ela aviltada por sentimentos negativos de desprezo e falta de aceitação e alteridade, seja ela positiva como em um contato familiar promissor, é a real formadora dos empíricos conceitos que levam, de uma forma ou outra, a determinados atos, entre eles, o crime. Para tal é preciso o homem em sociedade, são necessários o convívio humano e o entendimento de que se aprecia diversas formas de conceber o igual e o diferente. Essa totalidade demonstra que o interacionismo cria os antagonismos conforme a sociedade for alterando as suas qualidades e os seus anseios. Por exemplo, em uma sociedade comunitária ao extremo o auxílio ao próximo não seria obrigação ou mesmo um fardo, mas sim, exigência dos padrões. Por outro lado, em um mundo de consumos exagerados e de crédito fácil, é preponderante a arena que eleva o status de consumidor ao combatente em prol do consumo, e não mais que isso. Define-se por meio da sociedade em que se permeia o embrião do entendimento e da interação, conforme seus valores, que CRIME, todavia, pode ser CULTURAL. Uma forma de enxergar determinados atos como criminosos e de valorar a atuação do direito penal por intermédio de desacertos e desacordos, que poderiam ser acordados antes da atuação do direito das penas. Voltemo-nos ao exemplo: na sociedade comunitária uma briga entre dois indivíduos conhecidos de todos pode muito bem acabar numa reunião que decifre os motivos da briga e do desentendimento. Na sociedade consumista e de crédito o sistema penal, primeiro por intermédio da polícia a ser chamada pelos conhecidos dos personagens em embate entraria o direito das penas e assim, toda a tipificação de CRIME que se estende até o possível cárcere, formador de mais e mais crimes. É, portanto, na forma qual a sociedade ao redor enxerga, culturalmente, suas fileiras de cidadãos que se define muitos crimes como típicos, antijurídicos e culpáveis. Outro exemplo, foi a Lei seca nos EUA em 1919, quando entendia-se um ato criminoso a comercialização, fabricação e porte de bebidas alcóolicas, o que gerou enorme prejuízo abrindo outro caminho: a busca pelo produto criminalizado no mercado negro. Inúmeros produtores passaram a fabricar o produto em seus alambiques construídos no quintal de suas casas ou escondidos no interior das matas e em lugares ermos. A duvidosa procedência do álcool e seu manuseio impróprio levaram vários consumidores do produto aos hospitais, atingindo naquela época, o gasto com saúde pública valores exorbitantes. Logo após, o produto passou de marginalizado a consumido legalmente e culturalmente naquele país, o que antes era crime agora era visto com normalidade; o que antes aprisionava abria bares e comercio nas charmosas ruas de Manhattan. Da mesma forma, drogas tidas como marginalizadas nos dias hodiernos são o estopim para a prisão tanto de usuários quanto de fornecedores. Mortes dedicadas ás drogas ocorrem em qualquer bairro de qualquer cidade no País. Antes de tudo, o problema das drogas revela uma questão de saúde pública, só que encarada por todos como crime. Por outro lado, inúmeras outras condutas já deixaram de ser crime ou entendidas como ato típico, antijurídico e culpável, confirmando que muito daquilo que definimos como crime pode ser considerado, com o tempo, um deslize de nossa interpretação, que assim como o mundo, se transforma e se reinterpreta, dia após dia. Deixaremos de lado, por enquanto, os atos hediondos e bárbaros crimes de sangue, como o de Caim e Abel, (entre outros atos que podem gerar a discussão sobre a inimputabilidade do sujeito e estudos a respeito) e tenhamos ciência de que certos atos tipificados como crime, assim o são por cultura de vigilância e por um frenético moralismo calçado na interação entre a sociedade, a religião e o direito punitivo, sempre dogmático e pedagógico. Esse é um exercício que deve ser realizado de maneira solipsista. Além disso, a busca por punição dos diferentes e dos estigmatizados é aumentada devido ao frenético jogo de manipulação das massas que interagem entre si, após as espetaculares notícias que trazem apenas uma parte do episódio e dos especialistas em criminologia e direito penal que se formam no jornalismo sensacionalista todos os dias, um espetáculo à parte predito por Guy Debord (A sociedade do Espetáculo, de 1967). Assim, o aumento da criminalidade é apenas um sintoma de uma doença que se espalha devido ao entendimento de que tudo pode ser crime, mesmo antes de se definir o que é crime. Iverson Kech Ferreira Advogado especializado em Direito Penal Mestrando em Direito pela Uninter Pós-graduado pela Academia Brasileira de Direito Constitucional, PR, na área do Direito Penal e Direito Processual Penal Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário Internacional É pesquisador e desenvolve trabalhos acerca dos estudos envolvendo a Criminologia, com ênfase em Sociologia do Desvio, Criminologia Critica e Política Criminal Referências: BAUMAN, Zygmunt (1999) Globalização: as Consequências Humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Rio de Janeiro, Revan, 2013 VYGOTSKY, Lev. Formação social da mente. São Paulo, Martins Fontes, 1984 FREUD, Sigmunt. Totem e tabu. São Paulo, Companhia das letras, 2012 Comments are closed.
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