O que Christie quer dizer engloba uma razoável quantidade de interpretações para aquilo que significa crime, e, para aquilo que desejam que crime signifique. Em nossos estudos anteriores trouxemos o aparato histórico metafísico dos atos criminosos numa concepção de que a primeira transgressão que se tem conhecimento foi uma criação pedagógica de manutenção do poder. Num segundo plano, evidenciamos que o homem se compreende apenas em contato com o outro, interpretando-o e vivendo-o, para que possa interagir com os antagonismos e assim, descobrir-se como um ser envolvido nas malhas do conhecimento e da percepção. Nesse ponto, a interação que faz dos mecanismos em que se encontra envolvido é amplamente ligada ao conceito que elabora dos viventes ao redor e de suas atitudes. Assim, com o passar dos tempos, muitos atos entendidos como ilegais e até mesmo imorais são sopesados e transformados com o passar dos tempos, sofrendo uma nova exegese, deixando muitas vezes de ser entendido como ato ilegal ou imoral. Assim o é o crime, que passa a ser definido dessa forma por bases culturais do tempo em que se vive, ou dos costumes de certo local. Destarte, Durkheim define os modelos de adaptação social entre os congêneres numa mesma sociedade pelos diferentes níveis de convívio e relação entre si. Assim, traz o entendimento das solidariedades; tanto mecânica como orgânica. Ao pensar os modelos de sociedade, o sociólogo arrastou para seu campo de estudos o primeiro modelo de comunidade, sendo o mais antigo a ser definido pelas bases tradicionais; podendo Durkheim dessa forma definir a solidariedade mecânica que existe nesta casta. Assim, os valores de uma comunidade tradicional são definidos e determinados pela tradição, o que significa entender que as práticas sociais comuns a todos os membros de tal sociedade são interpretadas conforme se entende ser o certo a se fazer por puro hábito ou costume. Entretanto, ao pensar assim o modelo de sociedade revela que todas as ações individuais são dirigidas à comunidade. Numa sociedade tradicional o índice de criminalidade tende a ser baixo uma vez que pessoas tendem a respeitar os valores morais que são praticados e produzidos pela sociedade. A tese primordial de Durkheim é a de que, grosso modo, nas sociedades tradicionais regidas por um princípio de solidariedade mecânica, o comportamento criminoso pode ser interpretado como algo normal e não patológico como algumas correntes criminológicas entendiam. Todavia, ressalta que além de natural, o comportamento desviante é entendido como uma situação de utilidade para a sociedade, uma vez que esta conduta reforça os valores positivos definidos pela sociedade tradicional, fazendo agir a solidariedade mecânica. Crime então é definido como algo útil para a sociedade uma vez que essa se une contra o ato criminoso que infringiu valores morais estruturantes da coletividade. A sanção para o desvio deve ser uma sanção restaurativa. Nessa concepção a sociedade tradicional resolve seus problemas em relação ao trato penal das condutas de maneira interna, envolvendo-se com o autor e com o ato entendido como desviante. Para Christie, a resolução da maioria dos problemas que se considera crime e são tratados pelo direito das penas poderia chegar a uma resposta melhor tanto para a sociedade quanto para o autor que se desvia, se tratada de forma a não questionar ou aproximar-se do direito penal. Técnicas de justiça alternativa que sopesem o crescimento individual e a abertura de novas interpretações da carreira social são o caso e que devem ser praticadas, em detrimento à justiça punitiva e retributiva que são o modelo nos dias hodiernos. Ainda, o minimalismo e a possiblidade de reconciliação sugerem, para Christie, a saída mais acertada contra a era do encarceramento como resposta em que vivemos. A outra interpretação durkheimiana refere-se ao passar dos tempos e as mudanças sociais. As sociedades tornam-se mais complexas devido às divisões mais intensas do trabalho social. A especificação de funções típicas de uma sociedade complexa faz com que as pessoas que a compõe se tornem especializadas em seu ramo de atuação e dessa forma, mais individualistas. A solidariedade orgânica então é caracterizada pelo fato de as ações pessoais serem dirigidas a interesses individuais e não aos valores coletivos, que deixam de existir. A representação de anomia significa a perda desses valores comuns e tradicionais dentro de uma sociedade e a intensificação gradativa dos valores individuais, em detrimento do coletivo. Dessa maneira então, diferente dos padrões da comunidade tradicional, há uma desorganização dos próprios valores, tanto individuais quanto coletivos. A anomia, para Durkheim, provoca a criminalidade. Numa sociedade onde indivíduos deixam de orientar as suas ações em direção ao bem comum e passam a dirigi-las conforme os seus interesses particulares e individuais, o sujeito que encontrar barreiras para atingir suas satisfações individuais poderá superá-las por dois meios: lícitos ou ilícitos. Nestas circunstâncias a criminalidade pode se tornar a regra, razão pela qual passa a ser entendida como uma patologia social que deve ser combatida. Nesse sentido a sanção mais comum é a restritiva e o direito penal prevalece diante a qualquer outra forma alternativa de solução de conflitos. Christie por sua vez entende que a utilização do sistema penal como alternativa funcional à seguridade social funciona como um tiro no próprio pé. Define pela simples afirmação: o que é crime? Uma vez podendo ser o crime qualquer ato que desejem que seja criminoso, da mesma forma, qual o motivo que desejam que tal ato assim o seja, é uma incógnita que somente pode ser respondida pelos estudos de relação de poder de uma sociedade.
Assim, atos considerados crimes estão em evolução assim como atitudes que poderão ser interpretadas criminosas e deixam de ser vistas assim. Pode considerar crime muito, ou ainda, pouco, dependerá da avaliação interposta assim que adentrar a vida fática. De toda forma, tanto Durkheim quanto Christie tendem a enxergar o crime como o produto de processos culturais, sociais e mentais que rodeiam a sociedade em determinado tempo estudado e em determinada estrutura em que essa é moldada. Se há solidariedade mecânica ou orgânica, de fato, há a distinção da interpretação, por definição dos valores vividos. Para inúmeras condutas entendidas como cabulosas existem por sua vez outras formas alternativas de interpretação: loucura, honra distorcida, perversidade, ímpeto do jovem, heroísmo, ou até mesmo – crime. Essas condutas, para Christie, (e concordamos com ele) podem ser tratadas por outros inúmeros sistemas paralelos que não o direito penal e o judicial, como o psiquiátrico, o médico, pedagógico, instrutivo-construtivo, entre outros. É certo que existem crimes e fatos lamentáveis como mortes por arma de fogo, assassinatos e latrocínios, atropelamentos e fugas; situações de crime definidos por uma conduta imprudente ou dolosa. Mas o que de fato interessa é entender os motivos que definem muitas interpretações sobre o que é crime e o que é criminoso, quando se tem uma quantidade de penas absurdas para inúmeros atos considerados típicos de crime que tendem a ser interpretados crime e seus realizadores criminosos, quando existem outras saídas e diversas outras exegeses desafiadoras da certeza da penalização. Para finalizar, o questionamento de Christie é prudente e ambicioso:
Iverson Kech Ferreira Advogado especializado em Direito Penal Mestrando em Direito pela Uninter Pós-graduado pela Academia Brasileira de Direito Constitucional, PR, na área do Direito Penal e Direito Processual Penal Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário Internacional É pesquisador e desenvolve trabalhos acerca dos estudos envolvendo a Criminologia, com ênfase em Sociologia do Desvio, Criminologia Critica e Política Criminal Referência: CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Rio de Janeiro, Revan, 2013 Comments are closed.
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