Em primeira análise, entender o crime diferencia-se de entender a criminalidade. Crime possui suas características exegéticas complexas quando se interpreta que suas causas diversas variam de tempo e cultura, de interesses e propensões. Criminalidade é a prática daquilo que observou como ato tido como criminoso, que preferimos chamar de desviante. Se atitudes desviantes são consideradas crimes natos, é necessário então que haja um rol que os defina dessa forma. O código penal, aberto e característico, traz a listagem daquilo considerado crime em sociedade, que quando em pratica é colocado, desestabiliza algum setor da convivência em comum, efetivando o desvio. Só que crime pode ser interpretado e reinterpretado. Traz em sua lista de atos falhos, furto, tráfico, estelionato, calunia, difamação, entre outros típicos, antijurídicos e culpáveis, todavia, muitos não puníveis. É essa distinção do que é crime que nos importa desde o início. Ora, se para o legislador o direito penal serve para tutelar as bases estruturais da sociedade em que se vive, então crime é qualquer ato tido como desvio, de qualquer um, em qualquer tempo. Mesmo nas comunidades tradicionais, como bem estudou Durkheim, o ato desviante é aquele contrário ao que a maioria pensa ou replica em seu dia a dia. Assim, muito pode ser crime, como também pouco pode ser crime. Todavia, se o direito penal tutela bens, é imprescindível que o crime não seja abstrato na vontade, ou dolo, inicial pretendido pelo autor. Deve haver necessariamente o intuito do ganho fácil, o lucro por câmbio/apropriação ilegal de bens, seja ele violento ou não. Assim, define-se crime por aquilo que respeita e abriga o direito das penas. Furtos em sua generalidade, assaltos e roubos perfazem essa parte de crime que identifica a tutela do direito penal aos bens materiais. Alguns furtos podem ser considerados crimes, todavia, não a sua grande maioria. No mesmo sentido, as drogas são tratadas pelo direito penal, tanto em casos de tráfico quanto de usuários. Delegacias lotam suas cadeias de indivíduos revelados ao mundo do crime pela venda de drogas para viciados, personagens esses que não necessitam do direito penal ou das mazelas do cárcere, que em nada irá mudar (para melhor) sua rotina de vida. Al Capone dizia em celebre entrevista que a proibição do álcool no EUA não muda o fato das pessoas deixarem de consumir o produto, ou simplesmente de busca-lo em sua mão. Da mesma forma que a permissão não tornou ninguém viciado em álcool, ou melhor, nenhuma pessoa que antes não possuía o costume da bebida foi atrás de um trago logo após da anuência do uso do produto. O que melhorou foi a qualidade da mercadoria, antes produzida em alambiques escondidos em meio ao mato de forma clandestina e praticamente sem higiene alguma, priorizando a saúde das pessoas. Significa dizer que o desvio é considerado crime quando desejam que certo ato que se desvia seja definido como tal. Se a tutela do direito penal nesses casos é a saúde do indivíduo, então trabalha contra seu intento criminalizando o desvio do uso de drogas. O que é crime, nesse caso? Latrocínios, estupros, violência física e assassinatos passionais são crimes consideráveis para o código penal, pois o maior bem existente em toda a face da Terra é retirado de seu proprietário, ou sofre dano irreversível ou lesão grave; a vida. Todavia, qual a definição de bem jurídico penal que mais se encaixa nos dias hodiernos de consumismo extremo e decadência dos valores humanos? Nesses estudos trouxemos, em um resumo alguns questionamentos e algumas afirmações: 1 – definimos que o primeiro crime foi trazido como tom pedagógico, com intuito de restringir liberdades e intimidar aqueles que pretendem ou que não reconhecem, de certa forma, o poder do comandante ou controlador. Nesse interim, crime é tido como a ausência de liberdades em desafiar, questionar ou simplesmente se pronunciar contra o poder que existe. A traição, como vimos,remodelou aquilo que se entende por crime, sendo o primeiro ato de desvio que se tem história, contra o comandante. Criminalizar nada mais é do que uma forma de manutenção do poder, numa ascensão da interpretação pedagógica e dogmática do que é desvio, contra o detentor do poder ou aquele que controla. A tragédia é essa: o poder deve ser mantido. 2- entendendo que certas sociedades definem o crime por sua cultura e seu cerne, tendo a tradicionalidade de suas estruturas bem fixadas em todos os cidadãos, o ato desviante pode ser considerado e julgado de maneira a não envolver a penalização constante do direito penal. Inúmeras outras formas de afirmar os valores que foram rompidos com o desvio, incluindo o desviante como forma de orientação e “punição” diversa das utilizadas atualmente, em uma justiça alternativa de inclusão, tanto social quando educacional, para certos atos criminosos, como o furto ou roubo, que ensejam muitas vezes na prisão efetiva do indivíduo. Também, muitos crimes são considerados pela cultura como quebra ou ruptura daquilo que é correto em determinado tempo e deixam de ser valorados assim em outras eras. 3- o desafiador questionamento de muitos criminalistas, como Christie, utilizado nos artigos, é de que forma se interpreta crime? O crime pode ser muito como também pode ser pouco. O que é crime, de fato, numa sociedade diversa, antagônica e multicultural? Crime é o que desejam que queiram que seja crime. Muitos atos desviantes só são assim considerados por uma cúpula que deseja o desvio, pois destarte mantem o direito penal àqueles que pretende controlar. Para finalizar, é necessário se pensar numa forma de minimizar o direito penal e suas ações. Essa vertente revela ideias do minimalismo penal, uma vez que o abolicionismo soa como utopia nos tempos em que vivemos. Tal minimalismo leva a certas alternativas interessantes ao invés da constante aplicação da penalização, praticada em nossa sociedade como regra. Difícil definir o que deve ser pautado como crime a ser penalizado pelo duro sistema penal, uma vez que crime não existe como fenômeno natural, mas sim, é uma forma de se classificar certos atos tidos como desviantes, e o desvio, como vimos, pode ser muito ou pouco; definido por aqueles que controlam e detém o poder. A contração do direito penal é essencialmente necessária para evitar maiores danos à sociedade, pois como dissemos, esta cria sua própria destruição dentro dos muros do cárcere. Forma-se assim uma dialética onde o elemento fundamental se cria nos intramuros de uma fábrica de violência e destruição. A frase de Alessandro Baratta traz a real importância do controle explicitamente revelado pelo direito penal: Quanto mais uma sociedade é desigual, tanto mais ela tem necessidade de um sistema de controle social do desvio de tipo repressivo. É um exercício que traz uma real perspectiva libertadora, que deve ser realizado em primeira instância de forma solipsista, para depois de ter sido aceito individualmente, tentar modificar as estruturas e bases do direito penal, deixando-o de lado e acolhendo-o somente quando realmente e se necessário. Iverson Kech Ferreira Advogado especializado em Direito Penal Mestrando em Direito pela Uninter Pós-graduado pela Academia Brasileira de Direito Constitucional, PR, na área do Direito Penal e Direito Processual Penal Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário Internacional É pesquisador e desenvolve trabalhos acerca dos estudos envolvendo a Criminologia, com ênfase em Sociologia do Desvio, Criminologia Critica e Política Criminal Referencias: BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Introdução à Sociologia do Direito Penal. 6° ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011 BECKER, Howard S., Outsiders, Editora Zahar, Rio de Janeiro, 2008 CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Rio de Janeiro, Revan, 2013 FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva. Ed. Martins Fontes, 2015. SANDEL, Michael. Justiça. Oque é fazer a coisa certa?.Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira.
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