Uma das características marcantes da modernidade é o abandono da visão de mundo marcada pelo teocentrismo e pela busca da compreensão metafísica. A valorização da autonomia da razão, da ciência, do método do conhecimento, culminaram nas Revoluções Industriais, transformando o modo de vida dali em diante. Um dos efeitos colaterais dessa mudança, extremamente simplificada aqui para fins didáticos, observada em especial na modernidade “tardia”, é o vazio deixado pela ausência de uma consciência voltada a algo superior à existência humana e pela busca por ideais concentrados na aquisição material e no sucesso individual. Sem se querer pender a uma ótica conservadora, pode-se dizer que estes conceitos operaram alterações radicais nos núcleos fundamentais da sociedade, quer sejam família, relações de trabalho, hábitos de consumo, visão comunitária, consciência coletiva, sexualidade, etc. Entre os valores que ganharam ênfase um parece ter sido elevado ao patamar de “supervalor”: a autorrealização, juntamente com sua irmã vaidosa, a autoestima. Em seu nome parecem estar justificadas as decisões mais incoerentes e improdutivas possíveis. No altar da autorrealização quase tudo pode ser sacrificado. Por ser um valor tão subjetivo e tão suscetível de transformações elaboradas pelo desenvolvimento natural das muitas fases pelas quais nosso psiquismo se renova, as decisões baseadas neste “supervalor”, em questão de poucos anos, podem ser tão contraditórias que até Freud teria dificuldades em tecer um parecer minimamente racional sobre as mesmas. Ulrich Beck, em sua obra Sociedade de Risco – Rumo a outra modernidade, resume de forma magistral esse aspecto (2011, p.145):
Forma-se, a partir dessa visão de vida, o que Beck vai chamar de “nova ética, que repousa sobre o princípio dos deveres para consigo mesmo”. As consequências sociais desse novo modo de valorar as coisas são percebidas em todo o conjunto de relações humanas. Por um lado, produz efeitos benéficos de libertação e incentivo à descoberta de habilidades pessoais, percepção de novos horizontes e desenvolvimento individual de capacidades que permitam o alcance dos novos objetivos traçados. Por outro lado, o efeito individualizante desse modo de se portar frente à sociedade origina deficiências em larga escala. O sistema formado por indivíduos cada vez mais centrados em seus próprios ideais premia de modo muito vais significativo as empreitadas voltadas à busca de interesses individuais, sem uma correspondente valorização dos esforços feitos no sentido de auxiliar outros. Na multiplicação do convívio de sujeitos determinados a satisfazer primordialmente suas necessidades e desejos sobra pouco espaço para o desenvolvimento de uma consciência de classe (no sentido positivo da palavra, compreendendo os diversos agrupamentos de pessoas que se formam em uma sociedade, não apenas a classificação destes em relação ao poder aquisitivo). Sobra pouco espaço também para o rompimento de desigualdades historicamente produzidas no seio da humanidade. Não se pode deixar de observar que certa vertente teórica da ciência psicanalítica, com destaque para pensadores como Kurt Goldstein e Abraham Maslow, usa a autorrealização como fator dominante para explicar a ação humana em geral, entendendo a busca por autorrealização como inerente ao ser humano. Ficou famosa a escala de Maslow em que a autorrealização figura como categoria final do critério pelo qual os humanos dirigem seus esforços de modo a satisfazer suas necessidades. Não discordo por completo dessa visão, porém, acredito que o fato de não haver, na modernidade tardia, uma valorização social equivalente para as ações que visam o benefício de outros, finde por exacerbar esta característica natural observada pela psicanálise. Em países como o Brasil, em que as oportunidades são distribuídas de forma absurdamente desigual, os efeitos deletérios apontados se asseveram. A corrupção disseminada é uma mostra clara disso. Não queremos com esta afirmação negar o fato de que a corrupção existe em todas as sociedades e pode ser vista, sem equívocos, como um traço marcante da falibilidade humana. O caso é que o nível em que a corrupção se apresenta em nosso país ultrapassa, para todas as visões, o que poderia ser atribuído a esta visão sociológica realista. Não nos referimos apenas à corrupção que pode ser visualizada na cúpula do poder, tão em evidência nesses dias, mas assim a corrupção como traço geral do comportamento em nosso território. Ela pode ser percebida nos que usam o acostamento em dias de congestionamento, que usam os recursos da empresa em que trabalham para proveito próprio, que colam nas provas, que usam energia elétrica do vizinho, que mentem para obter um auxílio governamental, etc. A tese que pretende ser apontada aqui, de forma bem superficial e que precisaria ser desenvolvida de modo muito mais extensivo, é a de que, sem recorrer a determinismos reducionistas, a corrupção pode ser vista (também) como efeito colateral da modernidade tardia, em especial em sociedades em que a desigualdade é abismal. A supervalorização da realização pessoal sem vias de escape legítimas disponíveis ou sem a valorização razoável da contrapartida civilizatória de valorização do altruísmo produz indivíduos mais propensos a buscar “seu lugar ao sol” das formas mais nefastas imagináveis à sociedade em que estão inseridos. A Regra de Ouro deixa de ser “fazer pelos outros o que deseja que seja feito por você” para ser substituída pela regra de que “quem pode mais chora menos” ou ainda a velha “Lei de Gérson” de que o que importa é “tirar vantagem em tudo”. Felizmente, sobrevivem em nosso meio muitos que constroem seu conceito de autorrealização dirigindo-o para ações que não visam, unicamente, seus próprios interesses. Tive o privilégio de conhecer alguém assim há alguns dias. A oportunidade surgiu quando conheci um senhor, de nome Cícero, que mora apenas a algumas quadras de minha residência. Entabulamos uma conversa e ele acabou por me contar um pouco de sua vida. Tem 70 anos, é aposentado, criou três filhos, todos casados. Veio do Norte do Estado do Paraná, é analfabeto e extremamente simpático. Mora há 27 anos na mesma casa e agora está sendo “despejado” em virtude de uma decisão judicial que reintegrou o INSS na posse do seu terreno. Ele contou como adquiriu o terreno quando chegou em Curitiba, de uma pessoa com a qual não tem mais contato e que asseverou a ele que estava tudo correto, assinando apenas um recibo no valor total acordado. O Sr. Cícero adquiriu o valor através de um empréstimo junto a Caixa Econômica Federal. Estando em vias de ser expulso da residência em que habita, chorou ao mencionar a tristeza de ver a casa que construiu com tanto esforço ser varrida pelo direito. Segundo ele não haverá indenizações, devido ao fato de que a má fé nesses casos é presumida (obviamente ele não se expressou com essas palavras – a adaptação feita aqui visa o leitor). Não pretendo discutir a questão de direito envolvida na reintegração de posse. Não é o escopo deste texto. O que faz com que a conversa precise ser citada nestas linhas é o que o Sr. Cícero disse quase ao fim da conversa. Quando perguntei a ele para onde iria ele me disse para ficar tranquilo, que os filhos já haviam providenciado o aluguel de uma casa, que pagariam em conjunto, sabedores que são de que a aposentadoria do pai não suportaria os custos de moradia aliados aos demais custos existenciais mínimos. A frase final do Sr. Cícero me chamou muita atenção. Nas palavras dele: “Me sinto muito REALIZADO, porque mesmo sendo analfabeto consegui ensinar meus três filhos a terem respeito e carinho pelos pais. Trabalhei duro para os três irem para faculdade.” Saí da casa do Sr. Cícero imaginado o seguinte cenário: qual seria o resultado se tivéssemos toda uma cidade(para ficar com um exemplo “pequeno”) povoada em sua grande maioria por pessoas como o Sr. Cícero? Bom, haveriam problemas, sem dúvida. Um grande número de pessoas analfabetas significaria a falta de mão-de-obra qualificada para executar muitas funções importantes numa sociedade tecno-industrial. A busca por profissões que não exigem demasiado conhecimento técnico superaria a demanda e isso poderia causar uma rede extensa de desempregos e sub-empregos. Ainda assim, não pude deixar de imaginar a possibilidade de que, neste cenário, a drástica diminuição da corrupção, aumento da segurança e dobem-estar poderiam superar esses problemas, dando vazão a um modo de vida mais saudável e satisfatório. Sei que parece romântico e utópico, mas é difícil não ser ambos ao tratar de assuntos como a reversão da epidemia de corrupção que grassa em nossa sociedade. Como conclusão, parece que um caminho a ser seguido na busca por uma sociedade mais igualitária e menos dada a busca por soluções egocêntricas e contrárias aos interesses da coletividade (nominalmente a corrupção) passa necessariamente pela aplicação de “filtros” salutares à busca por autorrealização. Não parece ser prudente esperar que a solução neste sentido venha dos “Poderes” Judiciário ou Executivo, sequer do Legislativo. Os verdadeiros “Poderes” que se mostram, em minha modesta visão, capazes de operar uma transformação significativa são ainda a Família e a Escola. Paulo Incott Acadêmico de Direito - Faculdades OPET Bacharel em Contabilidade pela Universidade Federal do Paraná Bibliografia Consultada: BECK, Ulrich, 1944.Sociedade de risco – Rumo a outra modernidade. São Paulo : Editora 34, 2011, 2ª Ed. FIORELLI, José Omir; MANGINI, Rosana CathyaRagazzoni. Psicologia jurídica. 6ª Ed. São Paulo: Atlas, 2015. Comments are closed.
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