Artigo do Colunista Paulo Incott sobre a possibilidade de aplicação do artigo 383 do CPP pelo Juiz de garantias, vale a leitura! ''A premissa seria a de que o uso da emendatio limitado à competência do juiz de garantias poderia restringir sua aplicação na melhor medida possível, tendo vista a necessidade prática de respeitar a decisão do legislador processual penal brasileiro de conservar tal instituto em nosso ordenamento''. Por Paulo Incott Para cada ideia colocada numa folha papel, dezenas de outras tiveram de ser deixadas de lado. Expressar ideias por meio da linguagem escrita é, quase que invariavelmente, operar uma seleção qualitativa e quantitativa em meio a em enorme cabedal de ideias que povoaram as elucubrações que precederam a escrita. Isso também é verdadeiro no que tange a produção normativa e quem sabe seja ainda mais verdadeiro em matéria penal e processual penal, onde o âmbito legislativo sofre de maneira especialmente sensível os influxos do programa político vigente em determinado contexto histórico e social.
Com essa percepção em mente, pretende-se nas linhas a seguir examinar um aspecto não abordado pela Lei 13.964/2019 no que tange as competências atribuídas ao juiz de garantias. O objetivo deste exame é fomentar as discussões em torno dos possíveis aprimoramentos ao que a recente legislação possui como pontos positivos, ao lado das já muitas (e salutares) críticas em relação aos seus defeitos. Trata-se, portanto, de uma breve reflexão sobre o silêncio quanto a hipótese de aplicação do previsto no art. 383 do CPP pelo dito juiz de garantias. Antes de mais nada, não se pode descuidar da opinião autorizada de parte da doutrina processual penal brasileira quanto a incompatibilidade da emendatio libelli com os ditames constitucionais e os princípios do processo penal democrático. GIACOMOLLI (2015, p. 148), por exemplo, afirma que a possibilidade de o magistrado dar qualificação jurídica distinta da atribuída ao “fato processual” (BADARÓ, 2009) pela acusação, sem possibilidade expressa de defesa inclusive, é sinal característico da “ideologia da busca da verdade material no processo penal”, marca, segundo autor, do forte aspecto inquisitorial que caracteriza o processo penal brasileiro. Não é outro o diagnóstico de GLOECKNER (2018, p. 433-436). Servindo-se da exposição de motivos do CPP do 1941 e de uma análise genealógica importante do instituto da emendatio libelli, identifica GLOECKNER sua principal razão de ser na “orientação política de se garantir o máximo êxito na condenação dos criminosos”, em um quase abandono do princípio da correlação entre acusação e sentença, baseado numa visão “unilateralista” de processo penal. Sem ignorar ou destoar destas conclusões, a proposta aqui ventilada vem no sentido de uma “contenção de danos”, ou melhor, de uma máxima aproximação possível entre o instituto da emendatio com os princípios de processo penal e as garantias assentadas na Constituição de 1988. A premissa seria a de que o uso da emendatio limitado à competência do juiz de garantias poderia restringir sua aplicação na melhor medida possível, tendo vista a necessidade prática de respeitar a decisão do legislador processual penal brasileiro de conservar tal instituto em nosso ordenamento. A possibilidade do emprego da emendatio no momento do recebimento da denúncia, a despeito desta estar prevista no capítulo que trata da sentença, não é de modo algum algo novo. Desde há muito LOPES JR (2020, p. 1420), dentre outros, vem sustentando esta hipótese. Cabe ressaltar que uma das grandes objeções de parte da doutrina que rejeitava esta opção tinha que ver com o argumento de que ao operar a emendatio nesta fase embrionária do processo o juiz correria o sério de risco de criar em si um “pré-juízo”, nocauteando qualquer viabilidade de um exame genuinamente imparcial. Justamente em virtude disso parece tão apropriado que se atribua ao juiz de garantias esta prerrogativa. Uma vez que se estabelece na Lei 13.964/2019 que este terá como sua atribuição a decisão sobre o recebimento da denúncia (art. 3º-B, XIV) e que sua competência se encerra nesse momento (art. 3º-C, § 1º), a objeção apontada estaria superada. Caberia ao juiz de garantias analisar a necessidade de emendatio. Se entender que esta é a via a seguir, deveria então abrir oportunidade para as partes se manifestarem e apenas após isso decidiria sobre a eventual alteração. Realizada a emenda, caberia ao juiz que conduzirá a instrução os próximos passos na escalada processual. Vale lembrar que o juízo competente para instruir o processo não está adstrito as decisões tomadas pelo juiz de garantias, nos termos do art. 3º-C, § 2º, restando a possibilidade, ao Ministério Público naturalmente e não ao juiz da causa, para que realize ainda o aditamento previsto no art. 384 do CPP no momento oportuno, se assim entender necessário. De modo algum tem-se com essa proposta uma solução definitiva aos viscerais problemas do art. 383 do CPP, conforme sumariamente mencionados acima. Ainda assim, vislumbra-se na hipótese de retenção de sua aplicabilidade à competência do juiz de garantias um ganho em termos de densidade constitucional do processo penal. A efetivação desta restrição não demanda um processo legislativo complexo, bastando, quem sabe, a inserção de um inciso adicional ao art. 3º-B ou uma pequena alteração no próprio inciso XIV. Os ganhos parecem, ao menos no momento, compensarem os eventuais custos políticos que possam ser aventados. PAULO INCOTT Mestre em Direito Especialista em Direito e Processo Penal Professor de Direito e Processo Penal Advogado REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BADARÓ, Gustavo H. Correlação entre acusação e sentença. 2ª ed. São Paulo: Ed. RT, 2009. GIACOMOLLI, Nereu José. Algumas marcas inquisitoriais do Código de Processo Penal brasileiro e a resistência às reformas. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 1, n. 1, p. 143-165, 2015. http://dx.doi.org/10.22197/rbdpp.v1i1.8. GLKOECKNER, Ricardo J. Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro, volume 1. 1ª ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 17. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
1 Comment
sidenei jose matias leite
5/20/2020 01:47:34 pm
Excelente ! artigo professor Paulo.
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