"A vergonha que se esconde sob a pedra. O arrependimento que é ali depositado. A aflição ao perceber que aquilo que se arquitetou como altivo, alto, robusto, forte, resistente, ruiu pesarosamente, não sobrando pedra sobre pedra. Talvez a esperança de que tivesse ocorrido algum equívoco sobre o tropeço nos pensamentos... Afinal, tudo ia tão bem, tão certo, tão definido. Pelo menos dentro daquela ideia que se construiu da coisa. O que deu errado? E não se diz do inesperado que surgiu abruptamente como o grito que causa o susto. Talvez até tenha sido esse o motivo da derrocada. Mas não. Na verdade, não, pois mesmo que os mui planejados pensamentos e atitudes tenham contado com o que não havia sido, fato é que tal intempérie seria interpretada como um cisco que cai sobre o olho, bastando um piscar para que a lágrima elimine aquele incômodo momentâneo, caso a filosofia fosse coerente, livre de soslaios, de engodos, de equívocos. O que restou, portanto? O reconhecimento do equívoco. A face do fracasso. A angústia pelo não êxito. A morte da alma, mas não totalmente, pois ainda há espaço para a vergonha que leva à confissão: matei."
“Crime e Castigo” é o brilhante romance de Dostoiévski em que sempre há espaço para as mais diversas lições, para os mais variados aprendizados, para as mais peculiares leituras, para as mais angustiantes constatações. A história daquele que cria a ilusão na qual o próprio se baseia para justificar previamente o seu crime. Matar e roubar para salvar a humanidade. O crime se justifica? Essa pergunta é feita pelo professor André Peixoto, quando também constata que “o herói cumpre a saga da vida redimido de qualquer crime, expediente inexorável da sua aventura”[1]. No caso de Raskolnikov, matar (a morte planejada e a inesperada consequente) lhe foi um fardo demasiadamente pesado. O castigo foi buscado com a sua confissão. Não era uma personalidade tão nobre como imaginava. Não possuía o direito que imaginou possuir. Praticou a violência que então achava legítima – proibição como condição necessária para o roteiro do herói[2]. Fragilizada sua teoria, seu pensamento, sua filosofia, enterrou a res furtiva sob a pedra e permitiu posteriormente sua catarse ao se submeter a violência estatal (dita legítima). Em que pese esteja a falar sobre outra obra literária, o apontamento feito pelo professor Jacinto Coutinho aqui encontra espaço quando expõe o insuportável da violência, cabendo nesse ponto tanto aquela praticada pelo cidadão (o assassinato praticado por Raskolnikov) como aquela praticada pelo Estado (a prisão na Sibéria determinada contra Raskolnikov): “a questão [...] mais delicada que se apresenta é – e sempre foi – como lidar com ela, pelas infindáveis implicações que reclama, além da imensa complexidade”[3]. Daí que o Direito se apresenta como forma reguladora, quando, por mais que atrasado chegue, busca compensar, retribuir, apaziguar ou qualquer coisa do tipo, aquela violência exercida por aquele contra quem agora se apontam as armas. Mas o ato de outrora já não mais se apaga, muito menos na mente daquele que o fez. É a lembrança que dilacera, que fere, que corrói, que destrói. Mas isso não basta. Aquilo que a moral aconselha e atormenta ao próprio transgressor não é suficiente. “O Direito, em face disso, toma a primazia, justo por ser uma ordem sancionadora, mas um grande esforço se fez – e se faz – necessário para incorporar a Moral, por aquilo que dela se ressalta na Cultura”[4]. Eis a sanção à qual se entrega Raskolnikov. Sabe que a vergonha que lhe recai não é suficiente, que o arrependimento não exime sua culpa, que a confissão para Sônia não basta. É preciso mais. É necessário que a ordem se restabeleça, ordem essa que se conjectura de um modo próprio, em um plano a parte, uma vez que aquela ordem (natural, metafísica, terrena) de outrora já foi quebrantada, não sendo mais possível sua restauração. A confissão ao Estado é elemento faltante. Somente assim, permitindo-se o flagelo da condenação, poderá expiar sua culpa. “[...] de que será que as pessoas têm mais medo? O que mais temem é o primeiro caso, a primeira palavra...”[5]. Raskolnikov não temeu o seu primeiro ato, que se desdobrou em alguns, mas ainda assim se tratou de algo único. Porém, descobriu não fazer parte do grupo de extraordinários. A infração às regras não lhe era permitido. De maneira direta e objetiva: deveria pagar pelo que fez. Mas ainda antes disso, muito antes, antes do Direito entrar em cena, antes da culpa clamar por expiação de maneira mais clara, antes de se externalizar o segredo, algo foi escondido sob a pedra. Ali, naquele ato, naquele instante, algo já dizia, alguma coisa já falava. O enterrar sob a pedra significou. Paulo Silas Filho Professor Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Mestrando em Direito pela UNINTER Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR [1]SOUZA, André Peixoto de. O crime se justifica? Disponível em: <https://canalcienciascriminais.com.br/crime-justifica/>. ISSN: 2446-8150. Acesso em: 21/05/2018. [2]Idem. [3]COUTINHO, Jacinto Nelson Miranda de. Direito e Psicanálise: interlocuções a partir da literatura. 1ª Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 161 [4]Idem. [5]DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. Porto Alegre: L&PM, 2009. p. 12 Comments are closed.
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