Artigo do colunista Paulo Incott sobre o quesito genérico do artigo 483 do Código de Processo Penal como transposição linguística da exigibilidade de conduta diversa, vale a leitura! '' Conhecemos o mundo a nossa volta através da linguagem. É através da linguagem que traduzimos nossas experiências e interagimos com outros. Também é por meio da linguagem que nos expressamos e assim externamos nossa identidade. Deste modo, nossas ferramentas linguísticas definem o entorno daquilo que conseguimos compreender, que conseguimos assimilar sobre tudo que nos cerca. Naturalmente as pessoas diferem significativamente em termos de recursos linguísticos e isso delimita, em alguma medida, as possibilidades de comunicação efetiva''. Por Paulo Incott Conhecemos o mundo a nossa volta através da linguagem. É através da linguagem que traduzimos nossas experiências e interagimos com outros. Também é por meio da linguagem que nos expressamos e assim externamos nossa identidade. Deste modo, nossas ferramentas linguísticas definem o entorno daquilo que conseguimos compreender, que conseguimos assimilar sobre tudo que nos cerca. Naturalmente as pessoas diferem significativamente em termos de recursos linguísticos e isso delimita, em alguma medida, as possibilidades de comunicação efetiva.
Essas ideias, postas como introdução, são importantes para que se discuta a seguir o papel que uma das perguntas feitas ao Conselho de Sentença no rito do Tribunal do Júri, conforme regrado pelo Código de Processo Penal brasileiro vigente, ocupa na atribuição de responsabilidade penal de alguém acusado de cometer um crime doloso contra vida. Primeiramente, é preciso estabelecer os pressupostos da discussão a ser colocada. Na semana passada tive o privilégio de participar, junto ao querido amigo Khalil Aquim, advogado conhecido por suas excelentes intervenções no Tribunal do Júri, de uma live (hospedada pela conta do Instagram do Sala de Aula Criminal) tratando das possibilidades de apelação por decisão manifestamente contrária à prova dos autos em face de absolvição concedida como resposta ao terceiro quesito, previsto no art. 483 do CPP. Fala-se de absolvição por clemência, em consequência da não exigência de fundamentação por parte dos jurados para sua resposta afirmativa à pergunta clara e direta sobre a possibilidade de absolvição de um acusado a quem se reconheceu ter efetivamente agido conforme a conduta prevista do tipo penal, ocasionando o resultado típico exigido na lei (materialidade) e a respectiva qualidade de agente ativo desta conduta (autoria). Hoje, neste breve texto, pretende-se defender a seguinte compreensão: o quesito genérico plasmado no art. 483 do CPP, que condensa todas as teses defensivas possíveis, de cunho jurídico ou meta-jurídico, alegadas em plenário ou não, funciona, para além da possível afirmação de sua função historicamente construída no rito do júri como meio para que “os pares” concedam clemência (ideia rechaçada por um bom número de magistrados e doutrinadores), como forma de transposição, ou melhor, de tradução de um elemento fundamental do conceito analítico-jurídico de delito para a linguagem comum, palatável aos membros do Conselho de Sentença. As linhas a seguir servirão para defesa e elucidação deste entendimento. Não parece necessário argumentar sobre a significativa distância que a gramática jurídica, em especial a de cunho dogmático penal, opera entre os “iniciados” na ciência do direito e aqueles que não possuem essa relação cotidiana com os elementos linguísticos, de ordem técnica, utilizados na legislação, nas decisões judiciais e na literatura especializada. Utilizar no diálogo com alguém que não tenha se ocupado do direito enquanto ramo do conhecimento científico palavras como litispendência, tipicidade subjetiva, prevaricação ou mesmo imputação objetiva significa introduzir na conversa elementos tão compreensíveis quanto expressões em mandarim ou russo para alguém que nunca sequer esteve nas regiões em que essas línguas são faladas. Mesmo no caso de expressões mais cotidianas, o significado atribuído a elas no (sub)mundo jurídico guarda enorme distância do uso que se faz delas no vernáculo popular. Pensemos no exemplo de expressões como culpa ou tentativa e teremos uma ideia dessa dissonância. Sendo assim, é inegável que um debate acerca das possibilidades de responsabilização penal pelo cometimento de um crime contra vida, tal qual é realizado perante um Conselho de Sentença, formado por uma série bastante heterogênea de pessoas, muitas das quais nunca tiveram qualquer contato com a gramática jurídico penal, não poderá ser conduzido da mesma forma, com as mesmas ferramentas linguísticas, que seriam utilizadas no caso de um advogado que produz as alegações finais na forma de memoriais escritos para apresenta-las ao juiz da causa. Vale ressaltar, nesta toada, a valiosa lição do Prof. Paulo C. Busato quando aponta que “a estruturação de um sistema de imputação não depende da adoção da [gramática utilizada por juristas para definir os elementos de delito] e mais, que é o conteúdo e não a disposição das categorias que determina o perfil da intervenção social jurídico-penal” (BUSATO 2018:193). Essa percepção nos traz ao âmago da questão modestamente proposta neste texto. A colocação do quesito genérico após a firmação da materialidade e autoria foi uma escolha consciente do legislador da minirreforma processual ocorrida em 2008, em substituição ao modelo anterior, em que o juiz deveria realizar a “tradução” a que estamos fazendo referência, transformando as teses defensivas em quesitos fechados a serem formulados aos jurados como indagações específicas. Importante recordar que era justamente os problemas originados pelos “ruídos” e incompreensões nessa tradução, causadores de inúmeras declarações de nulidade, que se visava combater. Ora, não é exagero dizer, portanto, que a solução visualizada pelo legislador diz respeito exatamente a um problema linguístico, que merece ser analisado agora fazendo o caminho inverso, ou seja, perguntando-se sobre o que é traduzido pela indagação genérica “o jurado absolve o acusado” em termos técnicos. Dentre as possíveis respostas a esta questão, oferece-se aqui a seguinte possibilidade compreensiva: o quesito genérico não apenas condensa todas as teses defensivas cabíveis, mas representa, sobremodo, a transposição para linguagem comum de um dos elementos essenciais do conceito jurídico de delito, a saber, a culpabilidade, mais especificamente em sua vertente de exigibilidade de comportamento diverso. O Prof. Juarez Cirino dos Santos esclarece que esse elemento (exigibilidade) foi por algum tempo descartado pela doutrina enquanto componente do conceito de delito, sendo considerado por alguns apenas como causa supralegal de exculpação. Porém, como o próprio autor aponta, “situações de exculpação fundadas na anormalidade das circunstâncias do fato e no princípio geral de inexigibilidade de comportamento diverso parece tornar cada vez mais difícil negar à exigibilidade a natureza geral de fundamento supralegal de exculpação como categoria jurídica necessária ao direito positivo vigente” (SANTOS, 2012: 320, 321 - grifos do original). A jurisprudência nacional confirma essa colocação da exigibilidade como elemento necessário para o juízo positivo de culpabilidade na análise jurídica do fato punível em concreto[1]. A noção de exigibilidade comporta, em alguma medida, análise que tem por pressupostos a materialidade e autoria, estabelecendo exceções à simples subsunção do fato ao preceito secundário da lei penal. Enquanto que no jargão jurídico pretende-se destrinchar esse conceito em categorias pautadas em casos “ideais”, como a coação irresistível, a obediência hierárquica, os excessos de legítima defesa e outros, a necessária simplificação operada pelo rito do júri faz com que aí se encaixem hipóteses incompatíveis com uma descrição objetiva de seus contornos ou requisitos. A autorização para que assim seja provém do “modelo de intima convicção” (Min. Celso de Mello no HC 185.068/SP, julgado em 01/07/2020) adotado pelo Brasil conforme se depreende da garantia de sigilo das votações (art. 5º, XXVIII, “b”, da Constituição Federal de 1988) e da própria redação do quesito genérico (art. 483, § 2º do CPP). Se a escolha por esse modelo é a mais correta ou a mais compatível com os princípios do Estado Democrático de Direito, em especial em virtude de outra garantia fundamental, aquela prevista no art. 93, IX da Constituição da República de 1988 (fundamentação das decisões), é um outro debate. Sintetizando: a pergunta sobre a absolvição do acusado, atestada a materialidade do delito e sua autoria para além da dúvida razoável, representa a tradução não só de todas as teses defensivas possíveis, mas também e principalmente do elemento de exigibilidade de conduta diversa, partícula inegociável do juízo de culpabilidade, que no rito do júri ganha, para além de sua feição dogmática mais fechada, contornos mais coloridos, admitindo dentro de seu escopo semântico a própria clemência não motivada (e não “desmotivada”, o que seria teratológico para uma manifestação – decisão - humana). Paulo Incott Mestre em Direito Especialista em Direito e Processo Penal Professor de Direito e Processo Penal do Centro Universitário Santa Cruz de Curitiba/PR Advogado Referências: BUSATO, Paulo C. Direito penal: parte geral: volume 1. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2018. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal - Parte Geral. 5ª ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012. NOTAS: [1] Apenas um exemplo recente, no HC 513.454/PE, julgado em 27/08/2019 pelo STJ: “a consciência da ilicitude é elemento constitutivo do conceito analítico de crime (imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa), sendo, portanto, inerente ao próprio tipo penal”.
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