Fixado ali, em seu próprio local de culto, de admiração, de admoestação. Empalado na estaca que mantém altiva seu semblante austero, assombroso, podre, vigando a todos a fim de que sejam punidos. É uma nova ordem. Um novo regramento foi imposto, substituindo aquele de outrora que mantinha um fluxo das coisas minimamente alinhado. Certamente o regime de outrora possuía seus pontos falhos – não estava isento de críticas. Mas ao menos o responsável por sua condução, que foi aclamado líder de todos, mantinha a chama da esperança acesa, estipulava observâncias devidas com o fito de que a sobrevivência fosse algo possível, prezava pelo bem-estar de todos – inclusive daqueles que não se adaptaram aos novos costumes ali criados ou simplesmente optavam por não os seguir. O regime que surgiu como fruto de uma triste e injustificada insurgência era atroz. A ordem deu lugar à desordem ordenada. Toda a civilidade ruiu em poucos instantes, entrando em seu lugar a barbárie. Aquilo que duramente foi construído deixou de existir. Os traços e aspectos culturais de um mundo antes desse se apagaram. A bestialidade humana em sua forma inata. O caos. O medo. Sangue. Morte. Crime.
Em “O Senhor das Moscas”, de William Golding, temos o relato de um grupo de meninos sobreviventes de uma queda de avião. As crianças estão por conta própria em uma ilha desconhecida. Não há habitantes no local – a não ser os animais que ali vivem e um monstro que passa a os assombrar. Ilhados, cabe aos sobreviventes conduzir os dias que ali permanecerão até que o socorro venha – se vier. É dado início assim a uma nova fase na vida daqueles meninos que jamais imaginaram ter de constituir uma sociedade peculiar, como a que vemos na obra. O romance permite várias analogias, reflexões e intersecções, uma vez que repleto de simbolismos. Dentre tantas, a principal faceta crítica da obra se dá quando da transição da ordem para a desordem organizada. A precária civilização conquistada com suor dá lugar à barbárie institucionalizada. Os regramentos estipulados em consenso não são suficientes para conter o ímpeto avassalador de alguns, que de uma hora para outra se exilam e acabam constituindo uma espécie de sociedade alternativa. Não bastasse a insurgência, os outros, que antes eram os mesmos, rebelam-se contra o povo a que até então pertenciam, caçando-os, prendendo-os, matando-os. Sem a supervisão de qualquer adulto, ainda antes do levante que levou a derrocada da comunidade ali criada, as crianças buscam estabelecer alguns consensos normativos: é preciso eleger um líder (Ralph é escolhido por aclamação); tarefas básicas para sobrevivência precisam ser divididas entre os novos habitantes da ilha; procedimentos políticos precisam ser regulados (reuniões reiteradas, onde somente quem segura uma concha possui o direito de falar). Os regramentos vão se sustentando – pelo menos até certo ponto. Questões impensadas surgem, como quando objetos somem. O que fazer com o ladrão caso seja pego? Ralph busca sempre deliberar toda e qualquer situação em conjunto. Daí as reiteradas reuniões com todos. O assobio da concha é a convocação para a assembleia, onde diversas questões são dirimidas entre todos. Aos poucos, esses encontros vão se tornando enfadonhos. O prezar de Ralph por um sistema o mais democrático possível acaba afastando o interesse dos habitantes da ilha nas questões políticas que dizem respeito a todos. São crianças, e crianças querem brincar, correr pela ilha, nadar, comer. Ah, a comida. Frutas e apenas elas. Outra insatisfação dos meninos. Seus estômagos clamam por carne. Há tempos que não se empanturram com algo mais sólido que as frutas diárias. Diante das insatisfações que vão surgindo, um outro menino vai conquistando espaço ao cativar o espírito dos incautos. Jack! Jack funciona como uma espécie de antítese de Ralph. Para Jack, a condução política da população da ilha deve se dar com base na força. Claro que os seus seguidores não sabem disso – pelo menos não de uma forma direta. O novo líder mostra sua real feição aos poucos. Cria um grupo de caça. Assim, os sedentos por carne podem satisfazer aquela necessidade alimentar não suprida pelo regime de Ralph. Os porcos. Ah, os porcos. E aqui se diz literalmente – não enquanto analogia tal qual fez Orwell. Os porcos são os animais que dividem a ilha com os meninos. Podem ser caçados, assados e comidos. Jack inicia assim sua empreitada, fracassando por diversas vezes com seu grupo até quando finalmente logram êxito em matar um animal. Carne. E com a carne vem o sangue que é visto e admirado no espetáculo da caça em seu desfecho. O êxtase com o último suspiro daquele animal que virou caça é dividido entre alguns. Uma ruptura ali se inicia, concretizando-se com o fixar da cabeça do porco numa estaca. O Senhor das Moscas se faz presente! O Senhor das Moscas é a Nova Ordem. A Lei. O Totem. O Pai. O Mal. O Simbólico. A Regra. A Sanção. A Punição. A Decadência. O Novo. O Agora. O Imposto. O Imperativo. Com o olhar austero e atencioso do Senhor das Moscas (que explica para Simon a própria natureza do mal), uma guinada ocorre na ilha. Jack galanteia a quase todos com suas promessas de um mundo melhor. Sem leis – a única regra é a diversão: caçar, comer, dançar. Isola-se com seu grupo (quase todos os habitantes da ilha) num novo marco daquele local, dando início ao seu sistema. O primeiro crime nesse novo cenário é semelhante ao de Prometeu. A subtração de algo que pertence ao outro lado é feito com violência, dando início a uma série de transgressões que culminam na barbárie. A desordem é ordenada, pois Jack orquestra todos os acontecimentos que ali se dão a partir de então. Ralph resta agora recluso com alguns poucos que mantiveram a temperança – e pagarão caro por isso. Roubos, sequestros, agressões físicas e inclusive homicídios, tentados e consumados, tomam conta da ilha. A esperança de outrora rui em meio ao tumulto que assola todo e qualquer traço de civilidade. Os resquícios culturais que os meninos haviam trazido consigo de lugares antes da queda agora se esvaem por completo. Os regramentos e o consenso não foram suficientes para conter o âmago da natureza humana, que passa então a demonstrar sua mais terrível e vil faceta: a barbárie! Resta apenas o Senhor das Moscas - que a tudo vê. Mesmo extinguindo-se em sua forma física, sua presença permanece sendo sentida – assim como os seus efeitos. O Senhor das Moscas é a Lei! Paulo Silas Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Mestrando em Direito pela UNINTER Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR Comments are closed.
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