A violência destaca-se em sua forma mais dramática e usual: a tortura. Uma vez edificada nos alicerces constitutivos da ideologia dominante, a tortura passa a ser utilizada como fonte de captura de informações acerca determinados casos, ou como criação de prova nova. Nesse interim, entende-se que o ato de flagelar significa um contínuo sofrer pelas mãos capazes do verdugo, de forma física ou psicológica, para fins diversos.
Destarte, é da inquisição considerada santa por suas raízes, a difusão da tortura como obtenção de provas fáticas que venham a validar a autoria de algum ilícito. Por meio dos ordálios, conhecidos como Juízos de Deus, interpretava-se o juízo divino e por intermédio deste reconhecia-se a inocência ou heresia do sujeito. Nota-se que tais flagelos eram dolorosos e causavam agonia extrema. A confissão também poderia ser extorquida por base da força e do apelo que a dor causa ao corpo fustigado, de forma a ser aceita como mais um mecanismo para a obtenção da culpa. Inúmeras formas de torturar o corpo foram pensadas e postas em pratica, determinando a possibilidade de obter-se a verdade, causando dores excruciantes em aparelhos criados para este fim. Após os ordálios, houve um recrudescimento do processo penal e uma escuridão ficou marcada pela possibilidade da utilização de mecanismos que pudessem auxiliar na obtenção de provas. O fato é que a inquisição deixou seus rastros que podem ser vistos até nos dias de hoje. O sistema acusatório surgiu com a reestruturação causada por um iluminismo candente que se incendiava nas grandes cidades europeias, causando o frisson do novo olhar para o processo e para a forma a qual se engaja o procedimento. Todavia, por mais esclarecimento que os novos ares trouxessem, a impregnação da valia e serventia da tortura já era uma máxima muito conhecida. A obtenção de uma certeza nos processos já inicia um sistema de inquisição, quando a dúvida que paira após a não comprovação de crime pelo agente investigado deve passar pelo crivo da prova real, ou seja, determina-se diligencias para que se sane as dúvidas (art. 156 CPP). Entre essas, inúmeras são as formas, também instucionalizadas, de considerar novas provas ou até mesmo de cria-las. O valor da confissão no processo penal como prova é realmente assunto aflitivo, pois retrata possibilidades. A tortura, utilizada pela inquisição como mecanismo de um sistema penal, passou a ser justificada, da mesma forma a qual nos dias hodiernos se utiliza de violência contra alguns para a obtenção de uma confissão que possui validade no processo penal. O reinventar e a justificação da tortura agora possui novos âmbitos: para que se possa comprovar a eficácia da ação policial, para que se possa corroborar as ações do judiciário, e enfim, para saciar uma mídia faminta por punição e sensacionalismo. Para isso, a persecução penal se inicia com a prisão realizada por policiais, que buscam a confissão em muitas de suas apreensões e com ela muitas vezes, há a tortura. Só que para haver o discurso legitimador da tortura dentro das corporações e do entendimento de sua real necessidade, há então um estado de coisas criado em prol de uma ideologia que se arraiga na violência para conter aqueles que devem ser contidos. Nesse sentido, a seletividade demonstra quem são os inimigos do estado de coisas criado, sendo esses aqueles que não compõe a sociedade como um todo, aqueles que não entraram de fato em suas bordas e que não fazem parte integralmente de sua vivencia (Stonequist). Os estigmatizados pela cor, origem, raça e pela própria pobreza são os que devem ser higienizados, mantidos em seus guetos e selecionados pelo sistema de polícia. Nesse interim, tem-se o Estado de exceção contra todos aqueles que permanecem cercados pela lei e ordem. Acontece que tal Estado somente é visto por aqueles profissionais que creem estar praticando atos em nome da lei e ordem, para os outros cidadãos da sociedade o trabalho da polícia está sendo realizado de forma proporcional à violência. Mesmo o agente policial acredita que muitos de seus atos servem a uma população que deve ser protegida e que para isso os fins são justificados pelos meios. Destarte, há o estado de exceção contra um inimigo já conhecido por todos: aquele que margeia, de qualquer forma, a sociedade estabelecida em geral, seguidora de uma ideologia de elite. O direito penal, nesse ponto, é cercado por inimigos que ameaçam a segurança e determinam que a guerra interna deve ser travada em prol da sobrevivência do Estado e seus conceitos (Chiari). Nesse sentido, a legitima defesa do Estado ou de seu agente contra risco iminente passa a ser considerada como mecanismo de proteção institucionalizado no interior das corporações policiais, que tendem a repetir o discurso da lei e ordem contra o inimigo. Isso é levado à frente por uma democracia que não se firma e é representada por ideais contrários aos reais princípios democráticos. Grosso modo, a palavra cidadania não mais é um epiteto de igualdade, mas sim de distinção. Por esse prisma se confirma a necessidade de fazer sofrer o inimigo, que não é cidadão nato pois representa o mal que merece ser combatido, em benefício de uma maioria silente que não enxerga o estado de exceção em que vivemos, mas que contemporiza atos de violência contra o diferente ou outro, como um bem maior, no amplo sentido pragmático do conceito de utilitarismo. Nesse ponto, a tortura passa a ser institucionalizada, uma vez que a ideologia já está formada e é necessário apenas travar lutas constantes contra o inimigo do Estado. Para isso, técnicas de tortura diferentes começam a surgir, para que não sejam detectadas por nenhum órgão de proteção, advogados ou até mesmo, juízes em audiências de custódia. Tais técnicas se utilizam do próprio sistema para vigorar. Muitas vezes, os mesmos companheiros de cela de algum detento que deva confessar algo, servem de massa de manobra em troca de algumas regalias muito bem aceitas em celas de confinamento. Nesses ambientes, propícios a qualquer barganha, podem ocorrer as torturas. Muitas vezes a tortura ainda é entendida pela vítima como um merecimento, algo que deveria ter acontecido pois andou fora dos padrões esperados. Como em uma técnica de neutralização ao inverso, descrevem que mereceram tal suplicio, pois não é vergonha apanhar do Estado por algo errado que cometeram. A percepção da tortura, nesses casos, ainda é precoce e não enxerga os problemas causados ao próprio processo penal, quando por ela há a possibilidade da punição de um inocente. Mesmo assim, não prevê o conceito de dignidade da pessoa e seus valores que devem ser respeitados como um fim em si mesmo, mas entende que muitas vezes, a tortura é merecedora. Entretanto, tal ação psicológica de confirmar os males causados pela tortura como algo merecido, perpassa a conhecida Síndrome de Estocolmo, ao legitimar o verdugo como validador dos valores sociais aceitos, e entre eles, a tortura. Nesse caso, enfatiza-se a institucionalização da tortura desde as bases de defesa do Estado, até os atos constitutivos de um sistema inquisitivo que perdura ainda hoje no processo penal. Contra esse mal somente a educação e o preparo policial, no respeito ao humano e à sua função única de proteção pode ser a solução. Para isso, quebrar com o paradigma estabelecido desde a época da ditadura e que vem dos modelos da inquisição para o nosso sistema, é essencial. Para que haja tal ruptura uma crise sem proporções deve se instalar (Khun). Tal crise já é parte do sistema penal em todas as suas fases e principalmente na execução da pena alheia, em uma dimensão incomensurável, afetando todo o aparato de proteção do Estado representado pela força policial. Iverson Kech Ferreira Advogado Mestrando em Direito pela Uninter Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional Referencia: CHIARI, Vanessa Gonçalves. Tortura e cultura policial no Brasil contemporâneo. Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2014. Comments are closed.
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