Através do uso de nitrogênio líquido é possível manter um corpo humano, já falecido, congelado a uma temperatura de – 196º C. A técnica, conhecida como criogenia, alimenta a expectativa de que um dia a medicina tenha a capacidade de trazer estes corpos de volta à vida.
De certa forma, a sanção penal atua como o nitrogênio; ela congela as pessoas, em sentido figurado, obviamente. Pode-se afirmar isto porque os critérios utilizados na aplicação da sanção penal fazem uma alusão e uma análise de diversos fatores sobre o acusado, levando em conta porém, pela própria limitação temporal linear a que estamos submetidos, apenas uma “fotografia” ou um recorte momentâneo da complexa trajetória de vida da pessoa. Ao fazer isso congela-a naquelas medidas ou fatores, quase sem possibilidade de que esta possa romper com a avaliação realizada a seu respeito. Tome-se como exemplo o art. 59 do Código Penal vigente. Segundo este artigo serão analisados, na fixação da pena, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, os motivos determinantes de seu agir, entre outros. Ora, não se está aqui, a princípio, questionando a idoneidade ou possibilidade de se aferir por qualquer meio estas características. Porém, é notável que a tentativa que se faz, na aplicação de pena, de encapsular um individuo dentro de uma averiguação pontual, ainda que supostamente empírica ou dotada de preceitos científicos (psicanálise, psiquiatria), baseando-se no que é possível descobrir, acaba por produzir uma rotulação redutiva em que fica dificílimo imaginar que o produto final possa guardar proximidade com os ideais de justiça e igualdade. Isso porque é preciso reconhecer que aqueles que julgam trazem consigo seus próprios preconceitos, muitos dos quais quem sabe nem se apercebam. Há ainda que se observar que, como regra geral, o sistema penal coloca dois seres humanos com experiências de vida completamente distintas frente a frente. Enquanto a sociedade extrai seus magistrados, com raríssimas exceções, das camadas mais privilegiadas, os eleitos para a aplicação da sanção penal são, em sua avassaladora maioria, membros das classes mais debilitadas. Assim, como se esperar que a análise feita das características do art. 59 do CP produza algum dado confiável ou apto a fornecer um substrato do qual se possa realmente “dosar” e “individualizar” a pena? Existe neste sentido uma observação feita pelo professor Juarez Cirino dos Santos que considero muita sagaz. Comentando a angústia geral com que somos acometidos nestes tempos de “modernidade líquida” na “sociedade de risco”, com suas ansiedades, receios, preocupações, Juarez traz a questão dos meios a que alguns podem recorrer para obter alívio de suas aflições, enquanto muitos outros não podem dispor dos mesmos mecanismos. O nobre doutrinador ensina (2006, p.25):
Voltando ao ponto principal: a avaliação que se fará do acusado terminará por atribuir uma série de rótulos a este, alguns mais precisos que outros, mas que ficarão marcados de diversas formas em sua reputação e seu aparelho psíquico. Esta avaliação será “congelada” com base numa averiguação limitada de sua vivência, mas terminará por impactá-la por todo o restante desta. Afim de que se perceba a gravidade disso basta fazermos uma autoanálise sincera: se fosse realizada uma apreciação de meus gostos, conceitos, comportamentos, escolhas de dez anos atrás, será que eu concordaria que essa avaliação servisse de fundamento para que eu recebesse ou não determinado emprego, promoção, ou pior, para que me fosse concedido ou não alguma forma de compreensão? Para que se conceba a profundidade do problema que estamos tratando é preciso também avaliar os efeitos dessa abordagem não só na dosimetria (fixação) da pena, mas também nas oportunidades negadas ao egresso e na sua própria autoimagem. Tratando do aspecto da autoimagem é extremamente proveitoso o estudo trazido pela sociologia do desvio. Um de seus expoentes, Howard Becker, elucidou de diversas formas como a imagem que a sociedade faz de uma pessoa, estereotipando-a, influencia o modo como esta projeta sua própria identidade e, por fim, seus comportamentos. O sociólogo relata (2008, p. 42):
Essa rotulação aplicada passa então a produzir efeitos reais e cumulativos, além de retroalimentantes, na postura e comportamento da pessoa rotulada. Becker continua (2008, p. 44):
Daí, citando o exemplo dos viciados, o autor retrata os efeitos nefastos dessa segregação social daquele que, por um momento ou por um período, tomou decisões ou se comportou da maneira tida como desviante. Descreve o autor (2008, p. 47):
Agora, pense um pouco no outro aspecto mencionado acima – o efeito da sanção penal nas oportunidades do egresso. Desde o momento em que o apenado deixa o sistema penitenciário, a cada porta com que se confronta, as trancas parecem mais cerradas. Claro que isso não é de agora. Nem as críticas tecidas aqui exibem originalidade. Provavelmente, esse é justamente o maior problema. Estamos falando de algo que já não funciona há muito tempo, mas que se insiste não só em ser utilizado, mas em ter seu uso ampliado. Já em Os Miseráveis, publicada pela primeira vez em 1862, Victor Hugo demonstrava os efeitos da estigmatização trazida pela pena cumprida, alimentadora assim de um círculo vicioso que não permite ao homem romper com as amarras de uma condenação penal. Como assevera Zaffaroni (1991, p. 60):
Muito se poderia dizer sobre a questão apresentada. O fato é que o direito penal, suas sanções, com suas aferições, sua dosimetria, seu método, sua aplicação, sua seletividade e sua operação “congelam” pessoas num molde, numa teia, num labirinto com poucas possibilidades de saída. Não parece haver reforma capaz de sanar estes problemas. Precisamos de algo diferente. Precisamos de um modelo de abordagem dos conflitos e delitos que consiga ao menos “ouvir” mais e dizer menos. Afinal, dizer o direito, dizer a culpabilidade, dizer a personalidade do acusado, dizer a sua conduta social, dizer seus motivos determinantes não está dando certo. Há muito tempo. Parece, afinal, que na questão de procurar uma melhor resposta para lidar com as tensões da vida em sociedade estamos todos congelados no tempo. Paulo Roberto Incott Jr Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal Pós-graduando em Criminologia Bibliografia consultada: BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução Maia Luiza X. de Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. BITTENCOURT, Cezar Ribeiro.bvTratado de Direito Penal:vbParteGeral 1. 17ªEd. São Paulo: Saraiva, 2012. DELMANTO, Celso. Código Penal comentado: acompanhamento de comentários,jurisprudências, súmulas em matéria penal e legislação complementar. 8ªEd. SãoPaulo: Saraiva, 2010. SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. Curitiba: Lumen Juris, 2006. ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das Penas Perdidas: a perda dalegitimidade do sistema penal. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 1991, 2014. Comments are closed.
|
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |