O conceito de crise é extremamente funcional. Ele tem servido como uma espécie de muleta em que se apoiam os diversos braços do Estado com o fim de evitar o reconhecimento de problemas estruturais e permitir a adoção de medidas que fazem vigorar privilégios e agravam a segregação social. Desse modo, Executivo, Legislativo e Judiciário se sustentam sacando o argumento da crise sempre que conveniente ou necessário. Exemplo típico é o caos do sistema penitenciário. Pretende-se aqui, de modo sucinto, desconstruir a ideia de que este vive uma crise conjuntural. Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC-SP, trabalha em seus escritos a noção da “exceção”, parente próxima do conceito de crise. Ele relata que medidas excepcionas de restrição de direitos foram introduzidas na maioria das constituições ocidentais como meio para permitir, no curso de atuação do Estado Democrático de Direito, a suspensão deste. Significa dizer que em determinadas situações específicas e explicitamente previstas poderá ocorrer a suspensão daquilo que deve ser considerado o oxigênio que permite a sobrevivência da democracia: os direitos fundamentais. As exceções voltam-se para os casos de guerra declarada e acontecimentos de magnitude caótica, de grave repercussão. Tal qual não podemos ser privados por muito do ar que respiramos, a situação excepcional não pode perdurar por longo período, sob o risco de se cometerem severos abusos contra a democracia e se instaurar um modelo de governo autoritário. O fato é que, como Serrano bem observa, tem existido, em especial na América Latina, uma contínua aplicação dos mecanismos de exceção no interior, no cotidiano do Estado Democrático. Surge desta forma uma espécie de governo sui generis (uma aberração na verdade): mascarado de democrático, mas com coração autoritário. Em geral, as medidas excepcionais são legitimadas pelo poder Judiciário, que viabiliza a persecução do(s) inimigo(s) do Estado: uma classe social, uma etnia, um partido político, enfim, um inimigo eleito a ser conquistado e eliminado. A alegação de crise serve de trunfo argumentativo sobre o qual se constroem essas medidas. De outro modo as mesmas soariam claramente como antidemocráticas. Permite também o não enfrentamento das questões sociais verdadeiramente estruturantes dos problemas aventados. Partindo dessas conclusões não é de espantar que nos confrontemos diariamente com notícias que se pautam pela exposição dos problemas através da linguagem da exceção, da crise. Fala-se em “crise previdenciária”, “crise do sistema de saúde”, “crise financeira” e, mais recentemente, “crise penitenciária”. Precisa-se enfatizar que a colocação dos problemas sociais nestes termos gera em si um outro problema. A ideia de crise traz consigo a noção de algo repentino (que nos assolou sem previsão) e de temporalidade restrita (está acontecendo, mas vai passar). A resposta que deve ser dada à crise é fundamentalmente diferente da resposta que precisa ser dada a problemas basilares. Se quisermos voltar à metáfora do oxigênio, poderíamos dizer que para a falta deste ocasionada pelo fechamento da traqueia por algum objeto (engasgamento) não se pode dar a mesma solução que se dará para um diagnóstico de asma crônica. Voltando a análise para o sistema penitenciário são necessárias duas vertentes de pensamento para que se perceba a impossibilidade de encarar o caos atual como crise. O primeiro deles tem que ver com a funcionalidade da prisão, atrelada às funções da pena. A Criminologia Crítica, a partir de diversos estudos heterogêneos, desnuda a real função da pena restritiva de liberdade. Seriam necessários centenas de artigos para abordar toda a construção teórica que permite a conclusão inafastável de que a pena possui função bem diversa da teoricamente buscada, conforme delineada na Constituição Federal e no próprio Código Penal[1]. Sem a devida lapidação e de modo direto pode-se sintetizar as descobertas na ideia de que a pena de reclusão opera de modo a permitir a manutenção da desigualdade social e repressão de inimigos eleitos por aqueles que detém a capacidade de operacionalizar o sistema penal a seu favor. Ela é um instrumento, muito mais do que uma medida. Ela opera para segregar, punir, extirpar e vingar; não para corrigir, melhorar, proteger ou solucionar conflitos. A partir desta percepção, pode-se avaliar o sistema penal como eficaz e ordeiramente sistematizado. Quer em sua manifestação material (agências de repressão militarizadas e ideologicamente preparadas para o enfrentamento do inimigo), quer no momento legislativo (penas mais severas; criminalização de indivíduos e não de condutas, sem conexão real com bens jurídicos constitucionalmente estabelecidos; crimes de tipo penal aberto), quer na atuação do judiciário (esvaziamento de garantias como a presunção de inocência; identificação do juiz com o ministério público; priorização das peças acusatórias; inversão do ônus probatório de maneira tipicamente inquisitorial), o sistema penal desempenha suas reais funções com uma efetividade exemplar. A população carcerária tem aumentado em ritmo constante. O número de mortes causadas pela polícia e a morte dos próprios policiais também cresce desenfreadamente. O tráfico se profissionaliza e arregimenta cada vez mais soldados, consolidando a segregação social operada pelo sistema de mercado. Eventualmente, os inimigos políticos podem ser vigiados e punidos pelo mesmo aparato que opera a contenção da massa desfavorecida, sendo direcionado para empresários e lobistas que “saíram do trilho”. Qual a avaliação realista? Tudo funcionando! Cabe ainda perceber que o sistema penal possui uma função “moral” relevante. Os “monstros” da sociedade líquida ficam aprisionados e são tratados com desprezo e humilhação vexatória com o fim de permitir que toda uma parcela da população cometa as suas atrocidades diárias despudoradamente. Assim, a hipervisualização da criminalidade da “cifra negra” serve como cobertura para uma rede de práticas (socialmente mais gravosas inclusive) que poderia ser “tipificada” com o uso de dois significantes que merecem análise cuidadosa: o neoliberalismo e o neocolonialismo. Com base nesta breve investigação é possível perceber, sem dificuldade, que o sistema penitenciário brasileiro não está em crise. Não é esta a questão. As mortes, as facções, as crueldades estão lá há dezenas de anos, literalmente. Só choca em determinados momentos porque não são vivenciados no cotidiano da grande maioria. Assim, se há crise, não é atual. Se há crise, não é do sistema penitenciário. Esse discurso manobra tempo e espaço de forma dissimulada. A problemática estrutural é ignorada. O real não está ali. Se confunde causa e efeito, premissa e conclusão. Por fim, se há crise, não será resolvida com a construção de presídios[2]. Afinal, nada mais simples do que compreender que não se tapa o sol com a peneira. Paulo Roberto Incott Jr Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal Pós-graduando em Criminologia Referências: SERRANO, Pedro Estevam A. P. Autoritarismo e Golpes da América Latina: Breve ensaio sobre Jurisdição e Exceção. São Paulo: Alameda, 2016. RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Tradução de Gizlene Neder. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004 [1] Caso haja interesse recomenda-se a leitura das obras: “Em busca das Penas Perdidas”, de E. R. Zaffaroni; “Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal”, de Alesandro Baratta; “Punição e Estrutura Social”, de Rusche e Kirchheimer; “A Criminologia Radical”, de Juarez Cirino dos Santos; “Vigiar e Punir: o nascimento da prisão”, de Michel Foucault; “A miséria governada através do sistema penal”, de Alessandro de Giorgi; “Cárcere e Fábrica”, de Dario Melossi e Massimo Pavarini; “Falência da Pena de prisão: causas e alternativas”, de Cezar R Bittencourt. [2] No curto prazo essa medida é essencial. Contudo, há o perigo de ao empreendê-la se aquietarem as reivindicações e não se enfrentarem os problemas estruturantes que aqui foram mencionados. Comments are closed.
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