Muito se tem dito que a expansão pandêmica do COVID-19 (SARS-CoV-2) ensejará ao mundo a possibilidade de rever o formato de relacionamento social, político e interestatal até então colocado em cena. Como bem apontou Yuval Harari em recente ensaio, “[...] a humanidade enfrenta uma crise aguda não apenas por causa do coronavírus, mas também pela falta de confiança entre os seres humanos”[1], perspectiva que fomenta cada vez mais o estabelecimento de uma colaboração concreta de diversos atores para a solução da problemática agora posta. Transportando essa reflexão para o tablado da jurisdição constitucional brasileira, é possível constatar de imediato que ao menos um dos temas mais caros à tensão havida entre Direito e Política já é objeto da referida modificação: a interpretação sobre o sentido e alcance do pacto federativo estabelecido em nossa República.
No último dia 15 de abril, o Plenário do Supremo Tribunal Federal deliberou sobre a medida cautelar postulada na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.341, proposta pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) a fim de declarar a inconstitucionalidade de dispositivos inerentes à Medida Provisória nº 926/2020, editada pelo Presidente Jair Bolsonaro para alterar determinações da Lei nº 13.979/2020, estabelecida com a finalidade de estruturar as balizas de atuação governamental contra a crise erigida pela pandemia do coronavírus. Tais alterações (lançadas sobre o art. 3º, incisos I, II e VI e §§8º, 9º, 10 e 11 da referida Lei) garantiam ao Chefe de Estado e Governo a definição sobre serviços e atividades consideradas essenciais, bem como a adoção de medidas pelas autoridades públicas, nos limites de sua competência, para o combate da pandemia hoje vista. A argumentação lançado pelo PDT, requerente na ADI nº 6.341, deu-se no sentido de que a Medida Provisória nº 926/2020 sofreria (i) de vício de inconstitucionalidade formal, já que caberia ao Congresso Nacional regular a questão por meio de Lei Complementar, bem como de (ii) incompatibilidade material com a regra de competência comum, entre os entes federados, acerca da matéria de saúde (art. 23, inciso II da Constituição Federal) e com os próprios limites constitucionalmente estabelecidos para a edição de medidas provisórias (conforme o art. 62, §1º da Constituição). De início, o Ministro Marco Aurélio, relator da ADI em tela, não entendeu pela incompatibilidade da Medida Provisória nº 926/2020 com os dispositivos constitucionais afetados, ressaltando, entretanto, que o referido ato normativo, no que toca às diligências necessárias ao combate do coronavírus, não “afasta a tomada de providências normativas e administrativas pelos Estados, Distrito Federal e Municípios”[2]. Na deliberação plenária, prevaleceu a sugestão posta pelo Ministro Edson Fachin, no sentido de que o art. 3º da Lei 13.979/2020 (impactado pela Medida Provisória referida) deveria ser interpretado conforme a Constituição, estabelecendo que a circunstância do Chefe de Estado e Governo definir unilateralmente a essencialidade dos serviços públicos, sem observância da autonomia dos entes locais, configuraria violação clara ao pacto federativo e ao postulado da separação dos Poderes da República. A decisão aqui cotejada mostra-se extremamente relevante por dois fatores. Um deles revela o movimento do Supremo Tribunal Federal no sentido de dar força ao viés cooperativo do pacto federativo que vinca política e juridicamente o país. O segundo, quiçá mais evidente, é o da colaboração efetiva e positiva com o combate adequado à expansão pandêmica do coronavírus. É sobre ambos os aspectos que este breve texto se dirige. Começarei pelo primeiro fator acima enumerado. Como é cediço, o esboço do pacto federativo na Constituição Federal de 1988 estabeleceu um protagonismo amplíssimo à União, caracterizada por amplo poder diretivo, ampla competência legislativa e ampla capacidade de arrecadação. Neste modelo (que segue as teorizações de Karl Löewenstein sobre o Estado federativo[3]), resta um traço de potencializada diminuição de autonomia para os demais entes federados, em especial às Municipalidades alijadas da condição de Capitais ou de integrantes de centros urbanos, que comumente sofrem com um orçamento limitadíssimo em um espaço reduzido de tomadas de decisões. É justamente neste contexto que se mostra relevante a observação da face cooperativa do federalismo, fotografada em tempos recentes com maior atenção pelo Supremo Tribunal Federal. Tal leitura do pacto federativo permite encarar Estados, Distrito Federal e Municípios não só como coadjuvantes da estrutura política e normativa da República, mas como atores efetivamente partícipes no tablado federativo, dotados de autonomia substancial para a tomada de diretrizes que bem reconheçam as particularidades em que estão inseridos e que escapam às lentes da União – fato corriqueiro levando em conta a dimensão continental do Brasil. Da jurisprudência hodierna do Supremo Tribunal Federal extraem-se, para além da ADI nº 6.341, exemplos de posicionamentos que privilegiam o federalismo cooperativo, com especial atenção às decisões proferidas sob a relatoria do Ministro Edson Fachin. Exemplos de tais posicionamentos podem ser verificados na deliberação pela constitucionalidade de lei do Estado do Mato Grosso do Sul sobre o bloqueio de rede celular em unidades prisionais (vide MC na ADI 5356[4]), bem como o pronunciamento pela compatibilidade com a Constituição Federal de Lei municipal sobre sanções decorrentes de emissão de poluentes por veículos automotores (vide RE 194.704/MG[5]), dentre outros casos julgados nos últimos três anos. Trata-se, então, de fenômeno que, como pontuado pelo Ministro Luiz Fux no julgamento da ADI nº 4.060, “[...] revela oportuno ao Supremo Tribunal Federal rever sua postura prima facie em casos de litígios constitucionais em matéria de competência legislativa, para que passe a prestigiar, como regra geral, as iniciativas regionais”, podendo agir a Suprema Corte brasileira, então, como árbitra de disputas federativas, dando especial sentido hermenêutico ao disposto no art. 102, inciso I, alínea “f” da Constituição Federal[6]. O viés cooperativo do federalismo congrega, então, a viabilização de maior autonomia dos entes federados, reduzindo a força centrípeta até então comumente exercida pela União, sendo compatível, importa frisar, com os desafios enfrentados pelo Brasil nesta quadra do século XXI, com destaque à expansão pandêmica do COVID-19. E aqui passo a tratar do segundo fator elencado nas linhas anteriores. Como é de notório conhecimento, o Chefe de Estado e Governo do país vem, de modo comum, proferido declarações que estimulam a retomada das atividades cotidianas (mormente aquelas de sentido econômico) e criticam a postura, em favor do isolamento, adotada por alguns governadores e prefeitos. Ao assim fazer, o presidente Jair Bolsonaro aumenta o calor já latente no campo político-federativo e evidencia que, de fato, a estrutura federativa também se traduz em um jogo de poder.[7] Assim, ao garantir interpretação conforme a Constituição ao art. 3º da Lei nº 13.979/2020, o Supremo Tribunal Federal promove o viés cooperativo do pacto federativo brasileiro em face aos desafios do coronavírus, permitindo o exercício de autonomia a Estados, Distrito Federal e Municípios nas tomadas de decisões necessárias ao enfrentamento da pandemia que atinge agora o país, conforme o postulado de competência comum estabelecido no art. 23, inciso II da Constituição Federal. A medida é essencial, parece-me, justamente por propiciar a aplicação de diligências que se mostrem adequadas à realidade social, econômica e também cultural de cada região, com especial atenção aos Municípios que, sempre em diálogo com os Estados que integram, poderão promover atitudes e recomendações que tenham, de fato, respaldo em dados técnicos e científicos sobre o fenômeno epidemológico ao qual estamos submetidos. Como bem apontado pelo Professor José Arthur de Castillo Macedo em escrito recente sobre o tema, “só existem saídas para a crise com respeito à Constituição”[8]. Ainda que o Supremo Tribunal Federal tenha sido novamente chamado a exercer papel de decisão na tensão estabelecida pelos demais Poderes da República, tem-se a possibilidade de ensejar no âmbito do Executivo e do Legislativo a colaboração necessária para que o desafio que hoje nos arrosta possa ser de fato superado. Se “neste momento de crise, a batalha decisiva trava-se dentro da própria humanidade”[9], também teremos dentro da nossa República a possibilidade de recuperar, em definitivo, o espírito cooperativo que, ao fim e ao cabo, deve marcar o federalismo de um Estado Democrático de Direito fundado em parâmetros de humanidade e solidariedade, tal qual é o nosso país. Rafael Corrêa Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público, com ênfase em Direito Constitucional, pela Escola de Magistratura Federal do Estado do Paraná (ESMAFE/PR) e UniBrasil. Bacharel em Direito pela Faculdade Dom Bosco (Paraná). Professor das Disciplinas de Obrigações, Responsabilidade Civil, Direito do Consumidor, Linguagem & Estratégia Contratual e Ações Constitucionais do Centro Universitário Opet - UniOpet (Curitiba/PR). Professor dos Cursos de Pós-Graduação em Direito Civil, do Consumo e Processo, bem como de Direito Imobiliário da Universidade Positivo. Editor e Coordenador Editorial da ÂNIMA: Revista do Curso de Direito do Centro Universitário Opet - UniOpet (2017/2018). Professor Convidado da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção do Paraná (ESA - OAB/PR - 2018). Pesquisador integrante do Núcleo de Estudos em Direito Civil-Constitucional da Universidade Federal do Paraná (Virada de Copérnico/UFPR) no eixo de Relações Jurídicas Contratuais e Responsabilidade Civil. Autor e colaborador de diversos artigos publicados nos principais periódicos jurídicos do país. Assessor Jurídico no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. [1] HARARI, Yuval Noah. Na Batalha Contra o Coronavírus, Faltam Líderes à Humanidade. Ensaio. [Livro Eletrônico]. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. [2] STF – ADI 6341 – Decisão Monocrática. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=5880765>. Acesso em 19/04/2020. [3] LÖEWENSTEIN, Karl. Teoria de La Constitucion. 2ª Ed. Barcelona: Ariel, 1970. [4] AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA CAUTELAR. LEI ESTADUAL 4.650/2015. INSTALAÇÃO DE EQUIPAMENTOS TECNOLÓGICOS PARA BLOQUEAR SINAL DE TELECOMUNICAÇÕES E/OU RADIOCOMUNICAÇÕES NOS ESTABELECIMENTOS PENAIS E CENTROS DE SOCIOEDUCAÇÃO. CONSTITUCIONALIDADE DA LEI ESTADUAL. EXERCÍCIO LEGÍTIMO DA COMPETÊNCIA CONCORRENTE. INDEFERIMENTO DO PEDIDO CAUTELAR. [5] RECURSO EXTRAORDINÁRIO. LEI MUNICIPAL 4.253/85 DO MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE. PREVISÃO DE IMPOSIÇÃO DE MULTA DECORRENTE DA EMISSÃO DE FUMAÇA ACIMA DOS PADRÕES ACEITOS. ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OFENSA À REGRA CONSTITUCIONAL DE REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS FEDERATIVAS. INOCORRÊNCIA. NORMA RECEPCIONADA PELO TEXTO VIGENTE. RECURSO EXTRAORDINÁRIO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. (RE 194704, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 29/06/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-261 DIVULG 16-11-2017 PUBLIC 17-11-2017) [6] “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: [...] f) as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta.” [7] Tal fenômeno bem ponderado e apresentado pelo Professor José Arthur de Castillo Macedo em sua tese de doutoramento no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, intitulada “Encruzilhadas do federalismo: transfederalismo, cooperação, constitucionalismo e democracia”. Disponível em: < https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/63219>. Acesso em 19/04/2020. [8] MACEDO, José Arthur de Castillo. Coronavírus e federalismo: o cálculo político do conflito no combate à pandemia. Disponível em: < https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/coronavirus-e-federalismo-o-calculo-politico-do-conflito-no-combate-a-pandemia-08042020#sdfootnote2sym>. Acesso em 19/04/2020. [9] HARARI, Yuval Noah. Na Batalha Contra o Coronavírus, Faltam Líderes à Humanidade. Ensaio. [Livro Eletrônico]. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. Comments are closed.
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