Em artigo anterior para a presente coluna, foi mencionado acerca do contrato social em Hobbes, bem como a exclusão de indivíduos que se desviam do caminho preestabelecido pela sociedade através do contrato social.
Foi mencionado que o indivíduo quando excluído da sociedade ou do pacto social, adquire o status de inimigo do Estado, e, consequentemente, seus direitos lhe são negados. Estando fora do pacto social, o indivíduo não terá que obedecer as regras anteriormente estabelecidas pelo Estado, sendo que os excluídos do pacto poderão se associar entre si para resistir as forças do Estado que quer neutralizá-los ou eliminá-los, criando um poder paralelo ao Estado, ou seja, a criação das organizações criminosas. É neste ponto que o presente artigo seguirá, tentando elucidar o questionamento feito no artigo anterior, qual seja: Seria esse um novo pacto social entre os excluídos? Por certo que tal escrito não abarcará (se que isso é possível) de forma completa a forma como as pessoas ingressam em organizações criminosas, mas tentará se propor a mencionar um dos possíveis resultados de uma política de inimigo ao Estado no que se refere aos crimes de entorpecentes. Pois bem, antes mesmo de se adentrar na questão da possibilidade deste novo pacto entre indivíduos, cabe analisar a teoria funcionalista da anomia e teoria das subculturas criminais. Cumpre-se salientar primeiramente, que a teoria funcionalista da anomia rompe com a ideia da escola clássica no que se refere ao estudo do indivíduo que se desvia do caminho estabelecido pela sociedade, passando a ter como foco de estudo os fatores sociais e culturais do crime, sendo que conforme BARATTA menciona, para tal teoria o desvio é considerado normal em qualquer sociedade, sendo considerado negativo aquele que coloca a existência do desenvolvimento social em risco.[1] DURKHEIM foi responsável pela introdução de tal teoria, sendo que para ele, o desvio é essencial e normal para a sociedade, seja para sua evolução ou desenvolvimento. No mesmo sentido, ao que se verifica, a criminalização ou atuação repressiva do Estado dependerá da reação social diante daquela conduta considerada desviante, e assim, sustentara a autoridade do Estado para uma possível punição ao indivíduo. [2] Ademais, DURKHEIM assenta seu raciocínio no sentido de que os estudos acerca das causas da criminalidade não podem ser voltados ao indivíduo em si, como uma causa patológica do seu ser, mas sim, nas circunstâncias em torno deste, como sua cultura, fatores sociais e econômicos, dentre outros aspectos. Segundo BARATTA, DURKHEIN assentou sua teoria tendo por base que as causas da criminalidade eram formadas nos fatores intrínsecos ao sistema socioeconômico do capitalismo.[3] Assim, ao que se verifica, a teoria funcionalista da anomia tinha como foco os fenômenos da sociedade e causas socioeconômicas, pois o crime já não era mais considerado anormal, mas sim inerente a toda sociedade, e, consequentemente, o indivíduo deixava de ser o foco de estudo, já que a causa do crime não estava ligada tão somente ao ser desviante. Por sua vez, outro doutrinador responsável por desenvolver a teoria introduzida por Émile Durkheim foi Robert Merton, sendo que para este último foi proposto o estudo acerca da criminalidade sob dois prismas, a estrutura social e a cultura. [4] Para MERTON, compreende-se a cultura como as metas que a sociedade estabelece para ser atingido o bem-estar ou sucesso econômico, para que se possa motivar o comportamento dos indivíduos dentro da mesma sociedade, para buscarem para si um nível de satisfação pessoal e coletivo. Ainda, estabelecido o nível de bem-estar ou objetivo a ser alcançado, há necessidade da criação de meios legítimos para que os indivíduos possam alcançar a meta estabelecida.[5] Neste tear, na associação das ideias das metas estabelecidas e os meios legítimos para alcançá-las é que se encontra a explicação dada por MERTON acerca dos desvios ocorridos no seio da sociedade. BARATTA afirma que para MERTON, os desvios cometidos estão interligados na medida da desproporção entre “os fins culturalmente reconhecidos como válidos e os meios legítimos, à disposição do indivíduo para alcançá-los”. [6] Portanto, é possível estabelecer que na teoria funcionalista da anomia desenvolvida por MERTON, a anomia corresponde: Aquela crise da estrutura cultural, que se verifica especialmente quando ocorre uma forte discrepância entre normas e fins culturais, por um lado, e as possibilidades socialmente estruturadas de agir em conformidade com aquelas, por outro lado.[7] Assim, quanto maior a estratificação social (distância entre a classe mais baixa para a classe mais alta) e mais alto for o nível de bem-estar culturalmente estabelecido, mais facilmente será explicado o fenômeno do desvio cometido pelo indivíduo, vez que é negado ao indivíduo pertencente a estratificação social mais baixa o alcance do bem-estar estabelecido culturalmente através dos meios legítimos, sendo compreensível a utilização dos meios ilegítimos para alcançar as metas estabelecidas.[8] PAVARINI esclarece com maestria acerca desta discrepância entre os fins culturalmente estabelecidos, meios legítimos e estratificação social como causas do desvio:
O problema de tal teoria está ligada ao fato de que não explica os delitos de colarinho branco, vez que comumente estes crimes possui como atores principais membros pertencentes ao estrato social mais alto da sociedade, sendo que para estes é normalmente oportunizado o acesso as metas estabelecidas pelos meios legítimos.[10] Neste ponto é que se coloca a teoria da subcultura criminal, sendo que tal teoria não representa uma negação da teoria funcionalista da anomia, mas sim sua ampliação conforme se verá a seguir.[11] A teoria das subculturas criminais debruça seus estudos na questão da aprendizagem de um sujeito com os outros indivíduos pertencentes a mesma estratificação social, podendo estes aprenderem desde valores morais da sociedade até as condutas consideradas desviantes. Interessa-nos para o presente escrito a segunda opção, na qual os indivíduos aprendem com os outros as condutas consideradas desviantes. Assim, ao que se verifica, os indivíduos que são e possuem contato com a estratificação mais baixa da sociedade possuem a destreza e modelos de comportamento aptos a realizar determinados delitos, bem como os que estão alocados na classe média e mais alta da estratificação, possuem a destreza e conhecimento para cometer outros tipos de delitos.[12] A teoria da subcultura vai além do sistema de aprendizagem e a estrutura socioeconômica, ela revela que o indivíduo, quando em contato com outro, e este outro comete delitos, nos casos em que ignora o acesso legítimo, aprenderá com este outro indivíduo a cometer os delitos. E justamente esta conduta desviante associada ao desvalor que o indivíduo possui pela norma, que se forma o sistema de crenças e valores, o que explica o fenômeno dos grupos das subculturas criminais, ou como no caso do estudo de Albert Cohen acerca dos bandos juvenis.[13] Conforme menciona BARATTA, para COHEN os bandos juvenis são, em sua grande maioria, formados por jovens pertencentes ao mesmo estrato socioeconômico, com consequente formação do sistema de crenças e valores destes indivíduos, e desta forma, a negação a norma, ou o desvalor empregado as normas, explicam o sistema de aprendizagem entre estes.[14] Frise-se neste ponto que tal teoria não descreve que somente as classes mais baixas cometem delitos, mas sim todas as classes (adotando o sistema da teoria funcionalista da anomia no que concerne o crime como normal em toda sociedade). Ainda relembrando das metas estabelecidas e os meios legítimos a serem alcançados e a aprendizagem, neste ponto válido a menção de PAVARINI:
É justamente nesta citação que o presente escrito se abraça e forma seu raciocínio acerca das possibilidades, conforme se verá a seguir e iniciando a exposição acerca dos aqui chamados “subpactos sociais”. Retornando ao ponto central do presente artigo, a questão proposta foi: quando os indivíduos são excluídos do pacto social, e vistos como um inimigo do Estado, estes não estarão mais submissos as regras do contrato social anteriormente estabelecido, e, consequentemente, serão caçados pelo Estado seja para sua neutralização ou para eliminação. Nesta perspectiva, os indivíduos, agora fora do pacto social estabelecido, tenderão a se unir e organizar para sobreviver as margens do Estado, bem como resistir as forças repressivas, ou seja, o que se quer dizer é que surgirá uma nova classe de subcultura criminal, a dos excluídos da sociedade. Há que se acrescentar que as metas estabelecidas ainda continuam vigentes dentro dessa nova subcultura criminal, a grande problemática que se põe é justamente os meios legítimos que anteriormente foram impostos, uma vez que, se o indivíduo não está mais inserido no antigo pacto social, e, portanto, desobrigado de utilizar-se dos meios legítimos para alcançar os fins culturalmente estabelecidos. Assim, uma vez excluídos do pacto social, os indivíduos se associarão entre si, e neste contexto, irá ocorrer o fenômeno da aprendizagem e união entre eles. E a cada cidadão excluído pelo Estado, fortalece o estado paralelo, situação comum nos delitos relacionados aos entorpecentes, onde a grande maioria dos envolvidos são tratados como traficantes, e, consequentemente, inimigo do Estado. Como já salientado em outros artigos, toda guerra pressupõe a criação de um inimigo, e como visto, o inimigo será excluído do pacto social, e, consequentemente, com tal exclusão, lhe são negados os seus direitos de cidadão. Desta forma, quando o Estado adota uma política de guerra às drogas, colocando o indivíduo relacionado com os entorpecentes como inimigo do Estado, mesmo àquele primário, negando seus direitos, favorece a criação das organizações criminosas. Veja, inclusive, que as organizações criminosas são dotadas de regras próprias, sejam morais, sejam “leis” estabelecidas para seus membros, sejam através da distribuição de funções dentro da referida organização, ou seja, há a criação de um novo pacto dentro da sociedade, o pacto daqueles que foram excluídos do contrato social. Deixa-se a seguinte reflexão acerca da política de guerra às drogas e o cárcere: Adotar uma política de guerra, considerando o indivíduo relacionado aos entorpecentes como inimigo, negando seus direitos, perseguindo-o, excluindo-o da sociedade e encaminhando-o ao sistema penitenciário, não seria uma forma de contribuir com o surgimento de um novo pacto social, favorecendo a aprendizagem e uma nova subcultura criminal, a subcultura das organizações criminosas? Por derradeiro, a mensagem que se quer passar no presente escrito é que diante de uma política criminal de guerra às drogas e os meios até então adotados, ao que se verifica na realidade é que não houve nenhum sucesso, pois, os objetivos jamais chegaram perto de serem alcançados, favorecendo tão somente o aumento desta guerra entre o Estado e o estado paralelo. Ainda, as consequências de tal guerra vão muito além do duelo entre mocinho e bandido, sendo que cada vez mais a sociedade está sendo atingida, e sofrendo as consequências como em qualquer guerra. Ademais, a legitimidade de toda guerra é colocada em discussão a partir do momento que atinge os demais cidadãos. O que o presente escrito se propõe é justamente repensar a política atual de adotar-se um inimigo, destituído de direitos, excluído da sociedade, pois, caso contrário, continuaremos perdendo esta guerra, que já está fadada ao fracasso desde seu início. Bryan Bueno Lechenakoski Advogado Criminalista Graduado em direito pela Universidade Positivo Pós-graduado em Direito Contemporâneo no Curso Jurídico Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Mestrando em Direito na UNINTER Rosimeire Marques Bueno Lechenakoski Advogada Criminalista Graduada em Direito pela UniOpet Pós-graduanda em Direito Penal e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (AbdConst) [1] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à Sociologia do Direito Penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 6ª Ed. 3ª Reimpressão. Rio de Janeiro: Revan. 2016. P. 59 [2] DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. Trad. Paulo Neves. 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes. 2007. P. 67/72. [3] Segundo BARATTA, Émile Durkheim: “tinha colocado o acento sobre fatores intrínsecos ao sistema socioeconômico do capitalismo, baseado sobre uma divisão social do trabalho muito mais deferenciada e coercitiva, com o nivelamento dos indivíduos e as crises econômicas e sociais que isso traz consigo”. BARATTA, Alessandro. Op. cit. P. 61. [4] Ibidem. P. 63. [5] Ibidem. P. 62 e 63. [6] Ibidem. P. 63. [7] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal – Introdução à Sociologia do Direito Penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 6ª Ed. 3ª Reimpressão. Rio de Janeiro: Revan. 2016. P. 63. [8] BARATTA, Alessandro. op. cit. P. 64 e 65. [9] PAVARINI, Massimo. Control y Dominación. Teorías criminológicas burguesas y proyecto hegemónico. Trad. Ignacio Muñagorri. Buenos Aires: Siglo XXI. 2002. P. 109 e 110 [10] BARATTA, Alessandro. op. cit. P. 65/67. [11] Ibidem. 69/70. [12] Idem. [13] Ibidem. P. 72. [14] Ibidem. P. 73. [15] PAVARINI, Massimo. Op. Cit. P. 112. Referências Bibliográficas BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à Sociologia do Direito Penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 6ª Ed. 3ª Reimpressão. Rio de Janeiro: Revan. 2016. DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. Trad. Paulo Neves. 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes. 2007. PAVARINI, Massimo. Control y Dominación. Teorías criminológicas burguesas y proyecto hegemónico. Trad. Ignacio Muñagorri. Buenos Aires: Siglo XXI. 2002. Comments are closed.
|
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |