Foi amplamente divulgado o vídeo em que o tatuador justiceiro gravava a sentença “eu sou ladrão e vacilão” na testa de seu prisioneiro. Muito se escreveu sobre o tema. Assustadoramente, muitos em apoio ao “juiz” que, além de praticar lesão, afirma que “todos os ladrões devem morrer”.
Dentre as manifestações mais sóbrias, surgiram as discussões dogmáticas, debatendo a extensão do conceito de tortura, classificação da lesão corporal de acordo com a reversibilidade das marcações e outros detalhes relevantes. Não pretendo entrar nesta seara. Desejo antes oferecer uma reflexão a partir da crítica sociológica do direito penal (criminologia crítica). O ponto central da questão será a natureza da pena. Antes disso, porém, gostaria de tratar de alguns pontos basilares para esta reflexão, fundados na noção de “cultura punitiva”. Quando se discute a questão da democracia, sua viabilidade e eficácia, é comum que cientistas políticos se utilizem do conceito de “cultura democrática”. Este conceito é apontado como condição de possibilidade para o estabelecimento e estabilidade do regime democrático. O que se entende por “cultura democrática”? Não há uma definição unívoca, mas a partir de diversas leituras é possível destacar as seguintes características: (i) capacidade generalizada para o convívio com escolhas existenciais diversas; (ii) ampla liberdade de expressão; (iii) pluralidade política; (iv) valorização substancial dos direitos e garantias fundamentais. Outros elementos podem ser aventados. De qualquer forma, costuma-se afirmar que onde estas características básicas não estão bem desenvolvidas, a democracia tende a ser meramente formal, restringindo-se ao processo de eleição dos representantes, ou mostra-se especialmente frágil e fugaz. De forma semelhante, pode-se afirmar que o estudo sociológico e político permite a percepção de que as sociedades, inclusive as democráticas, ostentam uma “cultura punitiva” ou uma “cultura libertária”. Obviamente não são categorias hermeticamente distintas, “puras” ou absolutas. Pode haver, dentro de uma mesma sociedade, setores mais conservadores, com tendências mais punitivas, convivendo com setores mais progressistas e libertários. Ainda assim, é seguro asseverar que uma análise geral permitirá determinar que dada sociedade possui em sua estrutura uma dessas expressões culturais mais exacerbada. O que se pretende definir como “cultura punitiva”? Mais uma vez um rol significativo de autores precisaria ser visitado e citado para uma compreensão plena do assunto. Um estudo sociológico sério, com pretensão de cientificidade, precisaria fazer uso dos métodos tradicionalmente aceitos para chegar a um diagnóstico e uma definição que se desejem “acadêmicos”. Não pretendo ir tão longe no momento. Entendo “cultura punitiva” como o conjunto de crenças, valores, atitudes e comportamentos predominantes em determinada sociedade que externalizam a visão de que o sistema penal deve servir precipuamente como meio legítimo de satisfação da necessidade de punição, de retribuição, de vingança contra aqueles que adotam condutas contrárias a (determinadas) leis penais, corroborando em opinião e atitude a possibilidade de que estas punições se concretizem à margem das garantias e preceitos legais, se necessário pelo uso de mecanismos como a tortura, degradação, humilhação, pena de morte, bem como a utilização de mecanismos inquisitoriais de investigação. Em que tipo de sociedades este modelo tende a ser mais persistente, não permitindo que os primados de uma democracia constitucional se internalizem nos valores e conceitos da população em geral? Da mesma forma como foi tratada a questão da democracia, apontam-se a seguir características peculiares, formadoras um quadro geral capaz de delinear as sociedades em que uma “cultura punitiva” é mais apta a se arraigar. São estas: (i) profunda diferenciação social; (ii) forte influência do pensamento fundamentalista, de cunho religioso (oriundo sobremaneira da cristandade); (iii) elevado consumo da cultura popular norte-americana; (iv) presença de uma maciça classe média, frustrada com as promessas não cumpridas da modernidade; (v) elevada corrupção das agências de repressão. Estas características funcionam como ingredientes básicos para formação da “cultura punitiva”. Mais uma vez, que fique claro que elas podem estar presentes em diferentes graus nas sociedades contemporâneas, produzindo resultados diferentes ao se misturarem a outras variáveis. Vale destacar também que a brevidade com que o assunto está sendo tratado aqui não permite a explanação detalhada das diversas fontes que contribuem para esta classificação. Justamente por isso, estas características são expressas apenas como bases de reflexão, a serem trabalhadas com maior vagar em outros estudos. Uma refutação que poderia ser oferecida diz respeito ao fato de que uma “cultura punitiva” pode ser identificada na humanidade muito antes das democracias constitucionais e parece pertencer à história das civilizações tanto quanto instituições primárias como a família e a religião. Não discordo. Porém, o que surpreende é o fato de que a pulsão punitiva não parece ter sido reduzida, mas apenas recalcada, com o advento da forte democratização vivenciada pelo ocidente no último século. Ao mesmo tempo em que direitos humanos e garantias de possibilidade de escolha existenciais ganharam notória concretização, em especial na segunda metade do século passado, os conceitos acerca de uma justiça restaurativa e de um sistema penal “racional” ou minimamente “humano” não parecem ter recebido o mínimo de introjeção cultural. Assim, vivemos um paradoxo: estamos sujeitos a um regime democrático, calcado numa constituição que prevê uma série de medidas e objetivos para o direito penal, afim de que este seja exercido com a maturidade social e o patamar civilizatório discursivamente alegado no preâmbulo desta; ao mesmo tempo em que naturalizamos uma série de violências cotidianas, “subterrâneas”, conhecidas por todos (e reconhecidas mesmo pelo STF, como quando decreta o sistema carcerário com um “estado de coisas inconstitucional”) e aceitas como “normais” ou “colaterais” pela grande maioria. Mais do que isso, com frequência nos deparamos com notícias de algum linchamento ou execução sumária com apoio dos mais diversos setores da sociedade. É onde chegamos no nosso tatuador. Mais uma vez se ressalte que não se trata de algo novo. O evento faz lembrar uma passagem fantástica da obra de Nathaniel Hawthorne, “A Letra Escarlate” (2010, pp. 68; 73):
A essência do castigo, eis a questão. Aquilo que queremos que não seja visto em nossos delitos, mas que desejamos que seja escancarado nos outros. O momento apical da hipocrisia na sociedade contemporânea, imersa na “cultura punitiva”. Por último, uma breve observação acerca da função da pena, contrapondo a dogmática (dever ser) à criminologia (ser). Diante do amplo fracasso da pena em cumprir com suas funções preventivas, sobra ao sistema penal o exercício de mera função retributiva. O preço a ser pago pelo delito. O castigo, enfim. Quanto retrocedemos, não? Será que algum dia avançamos? Ou apenas criamos belos discursos científicos, que terminaram por legitimar a barbárie que nossos sistemas penais sempre foram? Não seria a dogmática penal, ao menos em países marginais, apenas a ferramenta mais eficaz na aceitação e naturalização da “cultura punitiva”? Não seriam as vinganças pessoais que vêm à conhecimento público, como as do tatuador, apenas a forma mais “escrachada”, mais despudorada da realidade da pena? Não teria o tatuador apenas reproduzido, sem censuras, aquilo que desejam centenas, quem sabe milhares dos que nos cercam? Se a resposta a algumas dessas perguntas for afirmativa o sistema penal funciona como um relógio preciso. Ele é o suprassumo das micropunições, dos pequenos sistemas penais atuando à margem, que muitos desejam poder fazer uso quando lhes convém. Ele não se traduz na vingança da mitológica “guerra de todos contra todos”. Não é a primitiva vingança do talião ou do acerto de contas tribal. Ele é a sofisticação do sadismo. A referência modelar de uma cultura que aprendeu a gozar ao punir, ao castigar. Sociedade do castigo, então. Paulo R Incott Jr Mestrando em Direito pela UNINTER Pós graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Membro do IBCCRIM Membro da ABRACRIM Advogado Referências: HAWTHORNE, Nathaniel. A letra escarlate. São Paulo: Penguins Classics Companhia das Letras, 2010. Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |