A colheita de provas testemunhais vem sendo, ao longo dos anos, o método mais empregado no processo penal brasileiro, em especial, nos processos criminais, e, pari passu, o mais arriscado e de fácil manipulação, tornando-o pouco confiável.
Diante deste incomensurável paradoxo, cresce a crise de confiança existente em torno do processo penal e do próprio ritual judiciário, pois, inevitavelmente, em face desta fragilidade da prova testemunhal, a responsabilidade penal do réu é trazida, muitas vezes, ao processo por meio de boatos de autoria desconhecida e de rumores genéricos, materializados nos testemunho das chamadas “hearsay testimony” ou testemunhas indiretas, de ouvir dizer. Frente a estas informações, nasce uma imensa dúvida: um processo criminal baseado em um conjunto de provas alicerçadas em testemunhos de ouvir dizer é o bastante para impor uma condenação? E esta condenação não estará ferindo direitos fundamentais do ser humano? Para solucionar tais questionamentos se faz necessário uma breve análise no sistema de provas no Código de Processo Penal em face da Constituição da República Federativa do Brasil e do Tratado dos Direitos Humanos. Os direitos fundamentais do cidadão, embora este esteja na condição de réu, em um processo penal, deve ser observado durante todo o procedimento judicial, pois, caso não o seja, haverá riscos de lesões gravíssimas e irreparáveis a estes direitos fundamentais. A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, trata dos Direitos fundamentais, dos artigos 5º a 17, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, nos quais se dividem, de forma sistematizada em: Direitos Individuais e Coletivos, Direitos Sociais, Direitos à Nacionalidade, Direitos Políticos e Partidos Políticos. Observa-se que, esta Constituição de 1988, também chamada de Constituição Cidadã, dar grande ênfase aos direitos fundamentais do indivíduo, conforme informa Oliveira (2013, p. 32), “a afirmação da prevalência dos direitos fundamentais é vista não apenas como meta de política social, mas como critério de interpretação do direito e de modo especial do Direito Penal e Direito Processual Penal”. Ao analisar os princípios constitucionais, Celso Ribeiro Bastos (2001, p. 161) afirma:
É evidente que, a Constituição deve ser a linha mestra, traçada também, para o Processo Penal, o que, neste caso, estabelecerá os princípios que deverão ser seguidos, constituindo assim, diretrizes no nosso ordenamento jurídico. Este é o entendimento de José Cirilo VARGAS (1992, p.67) “o processo é que assegura a efetivação dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, quando violados, com base nas linhas principiológicas traçadas pela Constituição”. CINTRA, GRINOVER E DINAMARCO (2002, pág. 80) nos explica:
Em um Estado Democrático de Direito, o Processo Penal deve guiar-se pela efetiva aplicação dos princípios Constitucionais, de cunho nitidamente garantista. Nenhum ato processual pode ser contrário a Carta Maior. Diante disto, faz-se necessário analisar, no Código de Processo Penal, as exposições de motivos, que, explicitamente informam a aplicação do princípio do livre convencimento motivado, pelo magistrado, apresentando o seguinte:
Tal princípio, acima referido, materializa-se em nosso ordenamento jurídico, no art. 157 do CPP, ao dizer que “O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova”. Neste prisma, os arts. 239 e 408 do Código de Processo Penal também adotam o sistema de livre convicção. Sendo assim, é correto afirmar que, conforme o Código Processual Penal, o juiz fundamentará suas decisões, motivadas por qualquer meio de provas válidas, inclusive as testemunhais, através de sua livre convicção. Porém, é evidentemente perigoso, a formação deste livre convencimento baseado apenas em relatos de testemunhas indiretas, ou testemunhas de ouvir dizer. O testemunho de ouvir dizer, ou o chamado 'hearsay testimony', é um depoimento sobre fatos de que o depoente não tem conhecimento direto, mas que os conhece apenas porque alguém deles lhe falou. O nosso ordenamento jurídico não proíbe este tipo de depoimento, porém, devido sua fragilidade e pouca credibilidade, deveria, em termos de valoração, ser considerado imprestável, pois é de fácil manipulação, representando indubitavelmente uma ameaça a direitos fundamentais, como o contraditório. Fernando Tourinho (2005, p. 307/308) entende da seguinte forma, a testemunha por ouvir dizer:
Mazzine (1952, pg254), mantém sua posição, ao informar que:
No entender de Mazzini (1952), “testemunha somente é a pessoa que depõe sobre um fato presenciado”, por isso, o nobre doutrinador não aceitava que no processo penal, se valorasse a prova por meio de testemunhas indiretas, entendendo ser esta prova, mera informação, a partir da qual se poderia, embora não necessariamente, chegar à verdadeira testemunha. Diante da fragilidade dos testemunhos indiretos, “hearsay testimony”, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou da seguinte forma:
A aceitação e valoração deste tipo de prova testemunhal, evidentemente, coloca em grande insegurança a fundamentação do magistrado e consequentemente a decisão por ele tomada, pois a testemunha de “ouvi dizer” nada presenciou do fato e, consequentemente, não corresponde aos requisitos necessários para seu convencimento, tais como a objetividade e retrospectividade, na medida em que não teve a experiência probatória. Também, não se pode ignorar que, comentários anônimos, geradores de boatos, em determinados casos, estão impregnados de sugestões sem originalidade, sem nenhum grau de confiabilidade. ENRICO ALTAVILLA (1959, pág. 91), adverte sobre o perigo jurídico-penal do testemunho do “ouvi dizer”:
Sendo assim, é justo afirmar que, o princípio do livre convencimento como garantia fundamental institucional e funcional possui limites certos, pois, caso contrário, certamente outros princípios como, devido processo legal, ampla defesa, entre outros, estariam correndo sérios riscos à luz do direito penal e constitucional. Condenar um cidadão, baseando-se apenas em testemunho indiretos é um ato de má-fé, por parte do judiciário. É minimizar o princípio da paridade das armas, pois, é nítido que, existe uma real desigualdade entre os sujeitos envolvidos no processo penal, e, portanto, é inexoravelmente importante que, o Judiciário, e juntamente com todos estes sujeitos do processo, atuem de maneira ativa na efetivação das garantias penais e processuais do cidadão, para que, com isto, se tenha a paridade de armas no processo penal e consequentemente uma decisão jurídica legítima. Neste entendimento, Antônio Magalhães Gomes Filho (2001, p. 42-43), ensina:
O cidadão, embora na condição de réu, deve possuir a presunção de inocência, a qual, somente o devido Processo Legal, após a valoração das provas legais, se estas forem dirigidas a formação da culpabilidade indubitável deste mesmo réu, perderá, assim, seu estado de inocência. Os direitos e garantias do cidadão não significam que o Estado agirá com impunidade frente a criminalidade, mas sim, que o Estado buscará, através de um processo digno, legal e justo, a solução para cada caso concreto. Os princípios processuais penais e constitucionais, além de atuarem na defesa do cidadão perante as intervenções estatais, contribuem, para a efetivação e o real estabelecimento do Estado Democrático de Direito. Diante do exposto, torna-se evidente que, embora os testemunhos do “ouvir dizer”, não serem propriamente provas ilícitas, podem causar grandes danos aos princípios acima referidos. É certo também que, este tipo de testemunha trás inevitavelmente um elevado grau de contaminação e deturpação do fato, tornando-se apenas, simples repetidor de discurso alheio e muitas vezes desconhecidos. Portanto, devendo ser evitada pelo magistrado, como prova processual penal. Ozael Félix de Siqueira Graduando em Direito - Faculdades Integradas de Patos/PB REFERÊNCIAS ALTAVILLA, Enrico. “PSICOLOGIA JUDICIÁRIA”. Armênio Amado. Coimbra, vol. 4º. 2009. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. de 05 de outubro de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 10 de Out. 2017. BRASIL. Lei nº 11.689, de 9 de junho de 2008. Altera dispositivos do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal, relativos ao Tribunal do Júri, e dá outras providências. DOU, Brasília, DF, 10 jun. 2008. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 106.550/SP. Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 27/11/2008, DJe 23/03/2009. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. GOMES FILHO, Antônio Magalhães. A motivação das decisões penais. São Paulo: RT, 2001. LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2016. LOPES JÚNIOR, Aury. O Novo Regime Jurídico da Prisão Processual, Liberdade Provisória e Medidas Cautelares Diversas. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. MANZINI, Vincenzo. Trattato di diritto processuale penale italiano. v. 3. Turim: UTET, 1952.). NETO, Cândido Furtado Maia. Erro Judiciário, Prisão Ilegal e Direitos Humanos. Portal Jurídico Investidura, Florianópolis/SC, 06 Nov. 2008. Disponível em: investidura.com.br/biblioteca-juridica/artigos/direito-penal/1539-erro-judiciario-prisao-ilegal-e-direitos-humanos. Acesso em: 12 Out. 2017. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed., rev. e atual. 2. tir. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. TOURINHO. Fernando da Costa Filho. Processo Penal. vol. 3. 27ª Ed. ver. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2005. VARGAS, José Cirilo de. Processo Penal e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 1992. Os comentários estão fechados.
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