De acordo com a política de drogas atual e entendimentos jurisprudenciais, utilizar entorpecentes ainda continua definido como crime, escrevemos sobre isso em artigo anterior [clique aqui]. Com a lei 11.343/06, o que ocorreu (ou deveria ter ocorrido) foi a descarcerização do usuário de entorpecentes, pois a tipificação do uso de drogas está prevista no artigo 28 da lei 11.343/06, o qual não atribui a pena do cárcere ao usuário.
Tal tratamento deriva da visão de que o usuário necessita de tratamento, e não de cárcere, haja vista que aos olhos da lei é considerado doente. Há diversos problemas na referida lei e a correta aplicação de suas diretrizes, os problemas na aplicação de suas diretrizes decorrem principalmente do alto grau de subjetividade e discricionariedade, principalmente na diferenciação entre usuário e traficante, sendo que por muitas vezes o usuário é condenado como traficante, recebendo a pena do cárcere. Contudo, há uma contrariedade na própria lei, que não se coaduna com suas próprias diretrizes, qual seja o uso compartilhado de substância entorpecente ilícita, senão vejamos. O artigo 33 da lei 11.343/06 versa sobre o tráfico de drogas, mas no presente escrito o que nos interessa é especificadamente o parágrafo §3º do referido artigo, que assim disciplina:
O parágrafo acima citado é o meio termo entre a condenação pelo tráfico e pelo uso de entorpecentes, porém estabelece alguns requisitos para sua configuração, quais sejam: a) Não haver objetivo de lucro; b) A eventualidade da conduta; c) Consumo em conjunto; d) A pessoa com a qual se utiliza entorpecente deve ser do círculo de relacionamento do agente. Sendo ausente qualquer um dos requisitos acima, a conduta deixa de ser o consumo compartilhado para passar a ser considerada como tráfico previsto no caput do artigo 33 da lei 11.343/06 (sem esquecer da aplicação do §4º, que trata do tráfico privilegiado). A alteração legislativa da lei 6368/76 para a lei 11.343/06, foi uma tentativa de dar atenção ao princípio da proporcionalidade, uma vez que antes não havia a figura do consumo compartilhado, sendo que recebia a pena de 03 (três) a 15 (quinze) anos de reclusão conforme art. 12 da lei 6368/76. A afirmativa acima também é justificada na Exposição de Motivos da Lei 11.343/06, que assim disciplina:
Por outro lado, a alteração legislativa adicionando a figura do “consumo compartilhado” ainda possui alguns problemas conforme leciona NUCCI:
A crítica estabelecida pelo autor acima descrita é extremamente válida, porém acreditamos não ser somente este defeito do referido parágrafo, senão vejamos. O dispositivo trata especificadamente de dois ou mais usuários de entorpecentes, sendo que o usuário que ofereceu a substância receberá a pena de detenção de 06 (seis) meses a 01 (um) ano, e ainda poderá receber as sanções atribuídas no art. 28 da lei 11.343/06. Por certo que a pena é mais branda que o delito de tráfico de entorpecentes prevista no caput do art. 33 da lei 11.343/06, contudo, se as próprias diretrizes da lei de acordo com a Exposição de Motivos da Lei 11.343/06 estabelecem que:
Não suficiente, o próprio artigo 3º, inc. I, da Lei 11.343/06, assim estabelece:
Veja que em nenhum momento se estabelece que as diretrizes da nova política de drogas é criminalizar ou encarcerar o usuário, mas sim prevenir a utilização de entorpecentes ilícitos, fornecer tratamento, bem como reinserir o usuário no âmbito social. Assim, peca o legislador ao criminalizar e atribuir a pena de detenção ao usuário que realiza o consumo compartilhado, pois está contrariando suas próprias diretrizes e propostas de tratamento ao usuário de entorpecentes ilícitos. Para o “consumo compartilhado” a lei estabelece a pena de detenção, desta forma, cabe diferenciar de forma sucinta a pena de reclusão da de detenção. A pena de reclusão “é uma espécie de pena privativa de liberdade que deve ser cumprida em regime fechado, semiaberto ou aberto (CP, art. 33, primeira parte)”[3]. Enquanto a pena de detenção, “é uma espécie de pena privativa de liberdade que deve ser cumprida em regime semiaberto ou aberto, salvo a hipótese de transferência para regime fechado (CP, art. 33, segunda parte).”[4] Desta forma, basicamente a diferença entre a pena de detenção e de reclusão está na atribuição da pena e ao regime nos delitos mais ou menos graves, bem como a proibição de fixação em regime inicial fechado nos delitos que culminem a pena de detenção. Contudo, há a possibilidade de regressão de regime nos casos estabelecidos no art. 118 da LEP:
Desta forma, o usuário de entorpecentes estará sujeito a pena de detenção, que de acordo com a pena atribuída ao delito, e uma leitura em conjunto com o artigo 33, §2º, alínea ‘c’, do Código Penal, o regime poderá ser o aberto em caso do usuário não ser reincidente. Porém, mesmo que o regime seja o aberto, mesmo que o usuário receba uma pena menor que o delito de tráfico de entorpecentes previsto no caput do art. 33 da Lei 11.343/06, isso não descaracteriza um fato: SE TRATA DE UM USUÁRIO, bem como não realizou a conduta de tráfico de entorpecentes, mas sim do CONSUMO compartilhado, e se a lei trata de consumo de entorpecentes como é o caso ora analisado, por certo que jamais deveria ser atribuída a pena de detenção ao agente. Veja que é completamente contraditório o referido dispositivo que trata do consumo compartilhado, quando associado com as diretrizes da Política de Drogas atual. No mesmo norte, verifica-se que beira ao absurdo a atribuição da referida pena e regime pelo “consumo compartilhado”, vez que em um exemplo hipotético, dois amigos estão utilizando uma substância entorpecente, porém cada qual comprou a sua substância, e estes são abordados e presos, a priori seriam enquadrados como usuários, e assim se aplicaria as disposições do art. 28 da lei 11.343/06. Contudo, se um dos amigos compartilha gratuitamente sua substância com outro, será incurso nas sanções do art. 33, §3º da lei 11.343/06, ou seja, será considerado como traficante. Desta forma, a atribuição da pena de detenção ao consumo compartilhado contraria as próprias diretrizes da lei, vez que claramente se está criminalizando um usuário de entorpecentes atribuindo uma pena privativa de liberdade, enquanto o Estado deveria dar assistência ao usuário de entorpecentes. Bryan Bueno Lechenakoski Advogado Criminalista Formado em Direito pela Universidade Positivo Pós-graduado em Direito Contemporâneo com Ênfase em Direito Público pelo Curso Jurídico Especialista em Direito Penal e Processo Penal Pela Academia Brasileira de Direito Constitucional Mestrando em Direito pela Uninter Referências DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 4ª ed. Colab. Alexandre Knopfholz e Gustavo Britta Scandelari. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2012. Legislação Informatizada - LEI Nº 11.343, DE 23 DE AGOSTO DE 2006 - Exposição de Motivos. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2006/lei-11343-23-agosto-2006-545399-exposicaodemotivos-150201-pl.html>. Acesso em: 09/07/2018. NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. Vol. 1. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Forense. 2015. [1] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. Vol. 1. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Forense. 2015. P. 357. [2] Legislação Informatizada - LEI Nº 11.343, DE 23 DE AGOSTO DE 2006 - Exposição de Motivos. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2006/lei-11343-23-agosto-2006-545399-exposicaodemotivos-150201-pl.html>. Acesso em: 09/07/2018. [3] DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 4ª ed. Colab. Alexandre Knopfholz e Gustavo Britta Scandelari. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2012. P. 547. [4] Idem. Comments are closed.
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