Desde a década de 60, o discurso em torno do usuário de entorpecentes, em nível global, vem tomando forças no sentido do discurso médico-jurídico.[1]A Política de Drogas adotada pela lei 11.343/06, no que tange ao tratamento de usuário de drogas, confere ao usuário o tratamento como doente, e, assim, não deveria ser punido com o cárcere, mas sim receber tratamento.
Há que se ressaltar que o entendimento jurisprudencial ainda predominante, é que não houve a descriminalização do usuário de entorpecentes, mas sim a despenalização prisional[2]. Já na exposição de motivos da lei 11.343/06, é deixado claro o tratamento conferido aos usuários de entorpecentes, senão vejamos:
Porém, ao fazer uma rápida busca jurisprudencial acerca dos entendimentos dos tribunais pelo país, verifica-se que é comum os seguintes dizeres: “A condição de usuário de drogas não afasta a traficância, uma vez que é comumente sabido que dependentes químicos utilizam o tráfico de entorpecentes como meio de perpetuar o vício (...)”[4] Contudo, há um grave problema em tal afirmativa, senão vejamos. Se ao usuário de drogas é concedido o tratamento, sendo considerado um doente, sequer poderia ser penalizado. Há que se mencionar ainda o artigo 45 da lei 11.343/06, no qual insere-se a questão da imputabilidade do agente, sendo que este será isento de pena quando ao tempo da ação ou omissão, fosse inteiramente incapaz de entender seu caráter ilícito (inimputabilidade). Porém, ao analisar o Parágrafo único do referido artigo, temos que há necessidade de perícia para comprovação da inimputabilidade do agente, para que haja o encaminhamento ao atendimento médico necessário. No mesmo sentido, há uma causa de redução de pena prevista no artigo 46 da lei 11.343/06 quando o agente não possuía plena capacidade (capacidade relativa) de entender o caráter ilícito da conduta. Não se pode esconder também que os usuários de entorpecentes quando estiverem cumprindo pena privativa de liberdade ou medida de segurança, devem ter “garantido os serviços de atenção à sua saúde” conforme preconiza o art. 26 da lei 11.343/06. Em que pese a lei prever assistência à saúde para o preso, é cediço que não há estrutura nas penitenciárias para tal atendimento, conforme notícias.[5] Porém, há que se ressaltar que dificilmente haverá provas contundentes de que haverá efetivamente o tráfico, relembrando, inclusive, que é extremamente difícil a distinção entre o usuário e traficante conforme já escritos para a presente coluna.[6] Retornando ao questionamento e o entendimento jurisprudencial, verifica-se os seguintes “fundamentos” para embasar a condenação pelo delito de tráfico de entorpecentes: “dependentes químicos utilizam o tráfico de entorpecentes como meio de perpetuar o vício”. Ora seja, admite-se que o agente que é usuário de entorpecentes e viciado, ou seja, possui o consumo problemático com os entorpecentes, o tratamento conferido pela jurisprudência é o cárcere? Isso não contraria as próprias diretrizes estabelecidas na exposição de motivos quando da edição da lei 11.343/06 quando do tratamento conferido ao usuário? Vamos apresentar uma teoria defensiva alternativa ao delito de tráfico de drogas realizado pelo usuário de entorpecentes devido ao seu uso problemático e decorrente do seu vício. Admitindo que o usuário de entorpecentes só realiza a venda de drogas por causa do vício, salvo melhor juízo, quando não cabível a inimputabilidade penal, estamos diante de uma causa deinexigibilidade de conduta diversa, senão vejamos. Quando não há causas de inimputabilidade e há potencial consciência da ilicitude, para que a ação seja reprovável, é necessário que se exija que a conduta perpetrada pelo agente seja diversa da que realizou. A inexigibilidade de conduta diversa se desdobra em duas hipóteses previstas no art. 22 do Código Penal, como a coação moral irresistível, estrita obediência em ordem não manifestamente ilegal, ou de superior hierárquico. Nos concentraremos aqui na coação moral irresistível, que por sua vez se divide em duas: sendo a coação física irresistível e a coação moral irresistível. Na coação moral, PRADO determina:
No mesmo sentido, a coação moral irresistível possui os seguintes requisitos:
Ainda, a consequência para tal coação, segundo ZAFFARONI e PIERANGELI: “Mas há vontade e, portanto, também conduta. Trata-se de hipóteses de justificação ou de ausência de culpabilidade e não de ausência de conduta.”[9] Ao que consta, o usuário problemático de entorpecentes (senão a única) é a maior vítima do tráfico de drogas, e, quando do uso problemático de drogas, para manter seu vício, muitas vezes é obrigado a vender entorpecentes para pagar a droga ou adquirir mais para seu uso. Assim, a partir do pressuposto de que o usuário realiza tráfico tão somente por causa do vício de entorpecentes, estamos diante de uma coação moral irresistível, seja ela feita pela dependência da substância entorpecente (hipótese em que necessita de dinheiro para comprar mais entorpecente), seja pela coação exercida pelo próprio traficante quando fica devendo dinheiro. Veja que se o uso problemático de entorpecentes de acordo com a Política de Drogas adotada atualmente, demanda um tratamento ao usuário de entorpecentes, para que futuramente possa se reinserir na sociedade, não poderá ser exigível comportamento diverso daquele adotado pelo agente, vez que o vício compromete a capacidade do indivíduo se autodeterminar e regular suas condutas conforme a lei. Outrossim, mesmo que se argumente de que deverá haver provas com relação a tal coação exercida pelo traficante, estamos novamente em um dilema, qual o risco e o medo que o usuário enfrentará entregando aquele que já na primeira vez o coagiu? Novamente estamos em um caso de inexigibilidade de conduta diversa. Por derradeiro, mesmo que não seja aplicada nenhuma das teorias acima citadas que se mostram na verdade como uma alternativa, por óbvio que a condenação de um usuário de drogas pelo delito de tráfico de entorpecentes está por contrariar expressamente as próprias diretrizes da lei 11.343/06, quando o usuário está acometido do uso problemático de entorpecentes, o que por si só já impediria a penalização do mesmo. Bryan Bueno Lechenakoski Advogado Criminalista Formado em Direito pela Universidade Positivo Pós-graduado em Direito Contemporâneo com Ênfase em Direito Público pelo Curso Jurídico Especialista em Direito Penal e Processo Penal Pela Academia Brasileira de Direito Constitucional Mestrando em Direito pela Uninter Referências: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo Nº 456. STF. MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE. 12 a 23 de Fevereiro de 2007. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo456.htm#> Conferir: (TJRS) Apelação Crime Nº 70076290410, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jayme Weingartner Neto, Julgado em 25/04/2018; (TJSP) Apelação Crime Nº 0002533-89.2016.8.26.0318. Quarta Câmara de Direito Criminal. Tribunal de Justiça de SP. Relator: Edison Brandão. Julgado em 24/04/2018; (TJSC) Apelação Crime Nº 0004308-35.2017.8.24.0036, Quarta Câmara Criminal. Tribunal de Justiça de SC. Relator: Sidney Eloy Dalabrida. Julgado em 03/05/2018. GALLO, Janaina Soares. Presos dependentes químicos. Disponível em: <https://ibccrim.jusbrasil.com.br/noticias/2901389/presos-dependentes-quimicos>. Acesso em: 07/05/2018. LECHENAKOSKI, Bryan Bueno. O CASO DO PERIGOSO TRAFICANTE DE 1 GRAMA DE MACONHA. Pub. 30/01/2018. Disponível em: < http://www.salacriminal.com/home/o-caso-do-perigoso-traficante-de-1-grama-de-maconha>. Acesso em: 07/05/2018. LECHENAKOSKI, Bryan Bueno. O DILEMA DO(A)MAGISTRADO(A). Pub. 18/07/2017. Disponível em: <http://www.salacriminal.com/home/o-dilema-doamagistradoa>. Acesso em: 07/05/2018. LECHENAKOSKI, Bryan Bueno. Titanic: A TESTEMUNHA como O ICEBERG DO PROCESSO PENAL DE GARANTIAS. Pub. 03/05/2017. Disponível em: <http://www.salacriminal.com/home/titanic-a-testemunha-como-o-iceberg-do-processo-penal-de-garantias>. Acesso em: 07/05/2018. LECHENAKOSKI, Bryan Bueno. USUÁRIO OU TRAFICANTE? QUEM É QUEM? – PARTE 02 – A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. Pub. 19/06/2016. Disponível em: <http://www.salacriminal.com/home/usuario-ou-traficante-quem-e-quem-parte-02-a-inversao-do-onus-da-prova>. Acesso em: 07/05/2018. LECHENAKOSKI, Bryan Bueno. USUÁRIO OU TRAFICANTE? QUEM É QUEM? BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O §2º DO ARTIGO 28 DA LEI 11.343/06. Pub. 31/05/2016. Disponível em: < http://www.salacriminal.com/home/usuario-ou-traficante-quem-e-quem-breves-consideracoes-sobre-o-2-do-artigo-28-da-lei-11343064210966>. Acesso em: 07/05/2018. LECHENAKOSKI, Bryan Bueno. USUÁRIO OU TRAFICANTE? QUEM É QUEM? UMA SÉRIE SEM FIM. A FORMA DE ACONDICIONAMENTO DA DROGA. Pub. 18/07/2016. Disponível em: <http://www.salacriminal.com/home/usuario-ou-traficante-quem-e-quem-uma-serie-sem-fim-a-forma-de-acondicionamento-da-droga> Acesso em: 07/05/2018. Legislação Informatizada - LEI Nº 11.343, DE 23 DE AGOSTO DE 2006 - Exposição de Motivos. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2006/lei-11343-23-agosto-2006-545399-exposicaodemotivos-150201-pl.html>. Acesso em: 07/05/2018. OLMO, Rosa del. Las Drogas Y Sus Discursos. In: J. H. Pierangeli, R. D. Olmo, A. B. Ipiña, & A. Oliveira. Direito Criminal (Vol. V, pp. 117-136). Belo Horizonte. Del Rey. 2003. PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 1. Parte Geral – Arts. 1º a 120. 6ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2006. Revista Consultor Jurídico. Dependente químico ganha liberdade provisória para se tratar. <https://www.conjur.com.br/2014-fev-14/dependente-quimico-ganha-liberdade-provisoria-tratamento-clinica> Acesso em: 07/05/2018. SCRIBONI, Marília. MP-MG pede que estado ofereça tratamento para presos. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2011-out-10/mp-mg-estado-ofereca-tratamento-presos-usuarios-drogas>. Acesso em: 07/05/2018. ZAFFARONI, Eugenio Raul e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Brasileiro. Vol 1 – Parte Geral. 9ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2011. [1]OLMO, Rosa del. Las Drogas Y Sus Discursos. In: J. H. Pierangeli, R. D. Olmo, A. B. Ipiña, & A. Oliveira. Direito Criminal (Vol. V, pp. 117-136). Belo Horizonte. Del Rey. 2003. P. 125 “[...] Se desarrollaría un discurso científico en términos de salud mental que se consolida en un doble discurso oficial que bien se puede calificar de médico-sanitario-jurídico, ya que se observa una clara separación entre el delincuente-traficante y el consumidor-enfermo.” [2]BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo Nº 456. STF. MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE. 12 a 23 de Fevereiro de 2007. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo456.htm#> Art. 28 da Lei 11.343/2006 e Despenalização. O órgão colegiado decide sobre o art. 28 da lei 11.343/2006 sobre divergências doutrinárias a respeito da criminalização do usuário, sendo adotado o critério de despenalização prisional e não uma descriminalização do uso. Como relator o Min. Sepúlveda Pertence. [3]Legislação Informatizada - LEI Nº 11.343, DE 23 DE AGOSTO DE 2006 - Exposição de Motivos. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2006/lei-11343-23-agosto-2006-545399-exposicaodemotivos-150201-pl.html>. Acesso em: 07/05/2018. [4]Conferir: (TJRS) Apelação Crime Nº 70076290410, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jayme Weingartner Neto, Julgado em 25/04/2018; (TJSP) Apelação Crime Nº 0002533-89.2016.8.26.0318. Quarta Câmara de Direito Criminal. Tribunal de Justiça de SP. Relator: Edison Brandão. Julgado em 24/04/2018; (TJSC) Apelação Crime Nº 0004308-35.2017.8.24.0036, Quarta Câmara Criminal. Tribunal de Justiça de SC. Relator: Sidney Eloy Dalabrida. Julgado em 03/05/2018. [5]GALLO, Janaina Soares. Presos dependentes químicos. Disponível em: <https://ibccrim.jusbrasil.com.br/noticias/2901389/presos-dependentes-quimicos>. Acesso em: 07/05/2018. SCRIBONI, Marília. MP-MG pede que estado ofereça tratamento para presos. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2011-out-10/mp-mg-estado-ofereca-tratamento-presos-usuarios-drogas>. Acesso em: 07/05/2018. Revista Consultor Jurídico. Dependente químico ganha liberdade provisória para se tratar. <https://www.conjur.com.br/2014-fev-14/dependente-quimico-ganha-liberdade-provisoria-tratamento-clinica> Acesso em: 07/05/2018 [6]LECHENAKOSKI, Bryan Bueno. Titanic: A TESTEMUNHA como O ICEBERG DO PROCESSO PENAL DE GARANTIAS. Pub. 03/05/2017. Disponível em: <http://www.salacriminal.com/home/titanic-a-testemunha-como-o-iceberg-do-processo-penal-de-garantias>. Acesso em: 07/05/2018. LECHENAKOSKI, Bryan Bueno. O CASO DO PERIGOSO TRAFICANTE DE 1 GRAMA DE MACONHA. Pub. 30/01/2018. Disponível em: < http://www.salacriminal.com/home/o-caso-do-perigoso-traficante-de-1-grama-de-maconha>. Acesso em: 07/05/2018. LECHENAKOSKI, Bryan Bueno. O DILEMA DO(A)MAGISTRADO(A). Pub. 18/07/2017. Disponível em: <http://www.salacriminal.com/home/o-dilema-doamagistradoa>. Acesso em: 07/05/2018. LECHENAKOSKI, Bryan Bueno. USUÁRIO OU TRAFICANTE? QUEM É QUEM? BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O §2º DO ARTIGO 28 DA LEI 11.343/06. Pub. 31/05/2016. Disponível em: < http://www.salacriminal.com/home/usuario-ou-traficante-quem-e-quem-breves-consideracoes-sobre-o-2-do-artigo-28-da-lei-11343064210966>. Acesso em: 07/05/2018. LECHENAKOSKI, Bryan Bueno. USUÁRIO OU TRAFICANTE? QUEM É QUEM? – PARTE 02 – A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. Pub. 19/06/2016. Disponível em: <http://www.salacriminal.com/home/usuario-ou-traficante-quem-e-quem-parte-02-a-inversao-do-onus-da-prova>. Acesso em: 07/05/2018. LECHENAKOSKI, Bryan Bueno. USUÁRIO OU TRAFICANTE? QUEM É QUEM? UMA SÉRIE SEM FIM. A FORMA DE ACONDICIONAMENTO DA DROGA. Pub. 18/07/2016. Disponível em: <http://www.salacriminal.com/home/usuario-ou-traficante-quem-e-quem-uma-serie-sem-fim-a-forma-de-acondicionamento-da-droga> Acesso em: 07/05/2018. [7]PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 1. Parte Geral – Arts. 1º a 120. 6ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2006. P. 427. [8]PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 1. Parte Geral – Arts. 1º a 120. 6ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2006. P. 427 e 428. [9]ZAFFARONI, Eugenio Raul e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Brasileiro. Vol 1 – Parte Geral. 9ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2011. p. 379. Comments are closed.
|
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |