APRESENTAÇÃO
O processo penal, didaticamente falando, possui três grandes formas de apresentação e compreensão, cujo conhecimento e distinção se faz extremamente necessário. O operador do direito pode escolher (e escolhe) dentre as opções que melhor atenda suas necessidades (e interesses) e direcionar suas ações dentro das implicações que cada conceito possui. A medida que o tempo foi passando, o Direito, suas bases principiológicas e os limites dos seus objetos diretos de estudo, restaram insuficientes para abarcar, explicar e aplicar tudo o que o processo penal é e envolve. Primeiro modo: o processo, visto como procedimento ou sucessão de atos ordenados que visam a satisfação da pretensão punitiva ou absolutória, como é entendido e ensinado até então pela maioria dos Cursos de Direito e Manuais, com a lógica e a carga teórica importada do Direito Processual Civil[1], não corresponde mais, por si só, a realidade para além dos muros acadêmicos. No entanto, ainda é apresentado somente este conceito e o que dele decorre. É conveniente, visto que dessa forma, pautada na leitura e aplicação da norma como ela está e sem contestação, existe sistema misto, o juiz pode buscar a verdade e produzir provas, condenar mesmo com pleito acusatório absolutório. A ingenuidade e quem obtém vantagens dela encontram-se por aqui. Segundo modo: consiste em compreender o processo como um jogo, de modo que operar dentro do processo penal é jogar um jogo complexo de interações humanas, onde, a partir das regras (normas), as jogadas, táticas e estratégias são delimitadas e aplicadas com o objetivo de alcance a recompensa desejada que, não necessariamente é somente a pretensão condenatória ou absolutória. As partidas passadas, os jogadores diretos e indiretos, os subjogos, as variáveis, o humor, a fome, podem influenciar o grande jogo que é cada persecução penal. E aqui não há espaço para amadores. Entretanto, é preferível o amador que reconhece o processo penal para além de um simples procedimento, e não sabe ou não quer jogar, do que o ignorante que não sabe ou não quer enxergar a existência dos jogos processuais, os quais ocorrem caso ele queira/saiba ou não[2]. O terceiro modo: processo penal do espetáculo[3] seria a espetacularização do processo penal, ou seja, a ocorrência da mutação de instrumento democrático e de garantias fundamentais para peças teatrais dos julgamentos penais. Quando espetacularizado, a preocupação reside em agradar os espectadores e seus gostos, “o que ela quer assistir, como ela quer assistir, que finais irão aplaudir, a fim de obter a cada peça, uma maior venda de bilheteria e divulgação midiática”[4], norteados pelos interesses do diretor-julgador-espectador: O problema é que o processo penal, instrumento de racionalização do poder penal, para atender à finalidade de entreter, acaba por sofrer uma mutação. No processo penal voltado para o espetáculo não há espaço para garantir direitos fundamentais. O espetáculo, como percebeu Debord, “não deseja chegar a nada que não seja ele mesmo” (DEBORD, p. 17). A dimensão de garantia, inerente ao processo penal no Estado Democrático de Direito (marcado por limites ao exercício do poder), desaparece para ceder lugar à dimensão de entretenimento[5]. E, muitas vezes, a simples compra do bilhete (fase administrativa) ou o início do primeiro ato (da fase judicial), já se torna motivo suficiente para a antecipação, por parte dos espectadores, do fim do espetáculo, com comentários, apontamentos, pré-julgamentos, onde não rara as vezes, os suspeitos viram acusados, acusados condenados ou suspeitos são considerados culpados[6], até mesmo por fatos diferentes dos que estão sendo investigados contra ele, como será mostrado a seguir. Nesse sentido, a análise dos valores, interesses, comportamentos, atos dos processos findos e em andamento diz muito sobre o modo (primeiro, segundo ou terceiro) que está se construindo e dirigindo o processo penal, ou seja, se está sendo tratado como um conjunto de atos sucessivos normatizados, como um jogo processual ou como um espetáculo. A Operação Ouvidos Moucos, objeto de estudo e reflexão do presente trabalho no que diz respeito ao ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luis Carlos Cancellier de Olivo, trata-se clara e infelizmente de mais um trágico espetáculo penal assistido e aplaudido pela plateia brasileira em sua maioria. O objetivo do presente trabalho é, portanto, contribuir de maneira singela à esta obra, na tentativa de, acompanhado de críticas e reflexões, esclarecer os acontecimentos que culminaram no falecimento precoce do ex-reitor, e assim, incentivar uma leitura mais crítica, atenta e imparcial das notícias e “fatos” que acontecem ao redor, principalmente os divulgados pelos meios de comunicação. Apontar no próprio texto das reportagens, e comparando com outras, desde a Operação Ouvidos Moucos até o suicídio do Ex-Reitor Luis Carlos Cancellier, contradições, incoerências, demonstrando que não se pode tomar como verdade absoluta o conteúdo que as compõem. E dessa forma, fazer lembrar que o que é divulgado e como é divulgado possui interesses e intenções claras e obscuras – pergunte-se quem divulgou? Por que divulgou? Como divulgou? E jamais se contente com “o objetivo é informar” porque nunca é (só) este. PRIMEIRO ATO: OPERAÇÃO OUVIDOS MOUCOS CENA 1: INVESTIGAÇÕES E PRISÃO PREVENTIVA A Operação Ouvidos Moucos promovida pela Polícia Federal, cujo nome faz menção ao “silêncio” do Ex-reitor Cancellier com relação as investigações que visam verificar (pois ainda estão em andamento) supostos desvios de recursos e irregularidades no programa de EaD (Educação a Distância) da UFSC, financiado pela Capes, fundação vinculada ao Ministério da Educação[7]. A mesma notícia afirma que o Ex-Reitor foi interrogado por sete horas, e aqui, questiona-se: ele ficou sete horas em silêncio? Para quem ele silenciou e o que? No entanto, o Jornal O Globo, aponta como razão do nome dado à Operação pela Polícia Federal a desobediência reiterada da gestão da UFSC aos pedidos e recomendações dos órgãos de fiscalização e controle[8]. Pois bem, segundo a notícia publicada na Folha, a Controladoria Geral da União apontou que bolsas de tutoria foram “concedidas a pessoas sem qualquer vínculo com as atividades de magistério superior, inclusive parentes de docentes que integravam o programa” e que supostamente houve “direcionamento de licitações, com uso de empresas de fachada, para produção de falsas cotações de preços de serviços, em especial locação de veículos”. Uma auditoria da Capes apontou irregularidades como duplicidade de pagamentos e uso de verba de custeio para bolsas – total de R$ 372.000,00 em “gastos indevidos” [9]. O programa de Educação a Distância iniciou em 2006[10], deste ano até 2017 consta que foram repassados R$ 80.000.000,00 (oitenta milhões de reais), sendo que o montante foi efetivamente desviado ainda não se sabe, salientando-se que os supostos desvios datam de anos antes da posse do antigo Reitor Cancellier, o qual tomou posse, na UFSC, em 2016. A protagonista Delegada Erika Mialik Marena, comanda o caso que envolve a UFSC[11], após atuação na Operação Lava Jato, cujos feitos costumam ter ampla divulgação pela mídia de modo geral. Assim, em 14 de setembro de 2017, a prisão preventiva de Cancellier foi decretada[12], tendo sido solicitado por esta Autoridade Policial, a medida cautelar de proibição de “frequentar as dependências da Universidade”[13]. Necessário apontar tamanha desproporcionalidade na medida cautelar deferida, cujas razões estão para além do Direito, do que foi dito, do que se sabe. Motivações estas que, ocultas, sombrias, obscuras, assolam todos os momentos da persecução penal, tendo o poder de desencadear consequências aterrorizantes e perpetuar torturas físicas, psíquicas, emocionais, em todas as esferas da vida humana: não é de hoje que o processo penal mata[14] e faz matar[15]. CENA 2: AFINAL, SUSPEITO DE QUE? Em contraponto com as letras garrafais que chamam os leitores a leitura das notícias e aos títulos de manchetes como: “Reitor da UFSC é preso em operação de apura desvio de verba em cursos”[16], “Reitor da UFSC é preso em operação da PF que investiga desvio de recursos”[17], “Reitor da UFSC é um dos presos na Operação Ouvidos Moucos”[18], ao contrário do que quiseram parecer ser e do que foi tomado como verdade por aqueles que não leram as matérias completas, as letras pequenas, ou não tinham condições de entender, as quais estigmatizaram, diante do vazamento de informações sigilosas e excessiva divulgação de informações equivocadas pela Polícia Federal, todos os investigados, especialmente Luis Carlos Cancellier de Olivo, cujo nome fora o único citado[19]. Estigmatizado e exposto de forma propositalmente errônea pois atribuída pela autoridade presidente do inquérito e, posteriormente, pela mídia, a participação em desvio milionário, quando, na verdade, a única “acusação” era de tentativa de obstrução da investigação no âmbito administrativo da UFSC[20], ou melhor apontamento contra ele, visto que não havia ação judicial e nem poderia haver, pois, vale lembrar que obstrução administrativa, a qual nem provada foi, como será mostrado, não configura figura típica no ordenamento jurídico brasileiro. O jornal Folha de São Paulo, quase um mês após a divulgação da notícia original “Reitor da UFSC é preso em operação de apura desvio de verba em cursos”[21], no dia 06 de outubro de 2017, na época há exatos 04 dias da morte do Reitor, admitiu o erro da reportagem ao não informar que “o reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, era investigado por suspeita de interferir na apuração sobre o desvio de recursos na Universidade, E NÃO PELO DESVIO EM SI” (grifo da autora). No entanto, os títulos de todas as notícias permaneceram inalterados, de modo que chega a ser gritante o quanto destoado são do conteúdo das mesmas, do que realmente aconteceu. Pois bem, o que se tinha, com relação a suspeita de obstruir as investigações administrativas, em principal, era o depoimento do Corregedor-Geral da UFSC, Rodolfo Hickel do Prado, o qual afirmou que as – supostas – ameaças do Ex-Reitor Cancellier iniciaram após a sua posse a reitoria, e nas suas palavras, se deram “tom de conversa normal, nunca de maneira enfática ou grosseira, de forma alguma, [mas] em vários momentos que estivemos juntos dentro da reitoria, ou deslocando pela universidade”[22]. Além de outros, os quais, segundo a Polícia Federal, reforçaram a suspeita de que Luiz Carlos Cancellier tentou obtruir investigações internas e deixou de tomar medidas para coibir deficiências na fiscalização da aplicação dos recursos da Universidade[23], cabendo para tanto, apuração dos fatos e, caso cabível, sanções administrativas e tão somente estas. Não há que se confundir investigações as quais visam verificar se houve desvios de verbas destinadas à Educação, de competência federal, com uma possível tentativa de obstrução de apurações internas, e a ausência de ações para fiscalização de recursos, envolvendo uma ceara administrativa, referente ao cargo e gestão da própria Universidade. A confusão de institutos é perigosa, trágica, e por vezes fatal. SEGUNDO ATO: PRAZERES OCULTOS: AUTORES DE UMA MORTE INDIRETA CENA 1: SOCIEDADE Lacan já apontava a capacidade humana de amar e odiar[24]. Se é tão capaz de amar, quanto de odiar, capaz de amar o ódio, porque prazeroso, e odiar o amor, porque doloroso, e vice-versa. Vice-versa porque o prazer e a dor também conversam. Ambos possuem reações biológicas, descargas hormonais de natureza similar, podendo levar a encontros de dor no prazer e de prazer na dor, este último, residindo na dor em si mesmo, na dor que se causa no outro e/ou na dor do outro causada por outro. Abriu-se mão em favor do Estado, sob uma ótica contratualista, também da liberdade de poder ferir e gozar diante de qualquer situação. Entretanto, a existência do “freio ético”[25] o qual consiste em um impedimento de satisfação do desejo de e ao ódio, advindo da ruptura com o Estado de Natureza Hobbesiano[26], por vezes não dá conta de cumprir o papel a que se presta, pois, a natureza humana é a mesma. O prazer na dor continua (quase que) inevitável. Assim, quando algo é tido como potencialmente capaz de fazer doer, mais pode ser desejado que aconteça, ainda que inconscientemente, porém, inúmeras vezes de maneira discreta, porque do ponto de vista ético, é reprovável. Entretanto, apenas em um primeiro momento, visto que criadas são “licenças poéticas” à ética, permitindo e justificando comemorações, satisfações, desejos e prazeres doentios, de modo escancarado. No caso da persecução penal, aproximando-se do caso de Cancellier, pacífica é a ideia de que ser suspeito, acusado ou condenado, ou seja, figurar como foco em qualquer de suas fases, já é por si só uma punição, uma forma de fazer doer, para além da sanção que será ou foi imposta, porque realmente dói. E, por isso, aplaudida. Mas, por que se permitem os aplausos? Com base no Labelling Approach, consistido na, segundo Salo de Carvalho[27] e Alessandro Baratta[28], escolha, através de políticas criminais, de quais crimes serão perseguidos e dado maior atenção à sua repressão[29], isso porque, conforme Zaffaroni[30], não há como punir todas as condutas criminosas, de modo a também selecionar e etiquetar indivíduos que “preenchem requisitos lombrosianos de enquadramento à uma determinada aparência, origem, meio social[31], tendentes à criminalidade e criminalização, porque pré-destinados a ocupar tais papeis sociais dentro e fora da persecução penal. Soma-se ao Etiquetamento, o Direito Penal do Inimigo de Jakobs, o qual recai, preferencialmente, àqueles já selecionados e etiquetados: El enemigo es un individuo que, no sólo de manera incidental, en su comportamiento (delincuencia sexual[...]) o en su ocupación profesional (delincuencia económica, delincuencia organizada y también, especialmente, tráfico de drogas) o, principalmente, a través de su vinculación a uma organización (terrorismo, delincuencia organizada, nuevamente la delincuencia de drogas, [...]), es decir, en cualquier caso de forma presuntamente duradera, ha abandonado el Derecho, por consiguiente ya no garantiza el mínimo de seguridad cognitiva del comportamiento personal y lo manifiesta a través de su conducta [...][32] Nesse sentido, correlacionam-se de modo que podem ser compreendidas sequencialmente: Uma vez posta a etiqueta marginalizadora pelo Sistema, tal indivíduo é apresentado como aquele que abandonou o direito, pelo mesmo Sistema que o marginalizou, invertendo e mascarando a real sequência apresentada, pois primeiro etiqueta-se, e depois afirma o abandono, e não o contrário. Assim, “por conseguinte, não garante o mínimo de segurança cognitiva do comportamento pessoal e o manifesta por meio de sua conduta" (JAKOBS, 2003a, p. 43 e 57), tendo, assim, facilitada a sua identificação, a identificação do inimigo. A etiqueta marginalizadora leva à concepção e identificação quase que automática do inimigo, coexistindo, portanto, a etiqueta do inimigo[33]. A concepção de inimigo, o qual quer destruir a vós todos, remonta à uma lógica de guerra[34], de modo que diante do “ele ou eu”, é compreensível que se queira, torça e comemore a escolha pelo “ele”, e, portanto, das amarras do freio ético, liberta-se. No entanto, nem sempre o “eu” é a vítima do fato a ser analisado. Aliás, na maioria dos casos, não se conhece nenhum dos atores da peça penal informada pelos meios de comunicação. Então, questiona-se: o que faz com que se veja como inimigo um inimigo que não é seu, e coloque-se no lugar de vítima da vítima de um dano que não sofreu? René Girard, filósofo francês, “encarregado pelo estudo da dinâmica mimética da violência nas sociedades primitivas, relacionando-as nas sociedades contemporâneas, observa que o principal critério de eleição dos desejos do homem é fundamentado na imitação”[35]. E a resposta aos questionamentos, decorrente do pensamento de René Girard é exatamente esta: imita-se o inimigo, imita-se a vítima. Respectivamente, do imitar o inimigo (porque não é seu) nasce em si, porque também copiado do outro o medo, a hipervigilância, o estado de guerra, o “ele ou eu”, e do imitar a vítima (já que não é ela) surge em si, porque há no outro, o rancor, o ódio, o desejo de vingança, de retribuir o sofrimento, de ver sofrer e “pagar pelo que fez”. A partir das imitações, surgem sentimentos, sensações, vontades e desejos: O homem imita os desejos do outro e, por esta razão, está inclinado para aquilo que se entende por “rivalidade mimética” (aquilo que se produz na medida em que se toma o Outro como paradigma), processo que tende a se agravar pelo fato de essa imitação constantemente ricochetear entre os parceiros. Neste caso, “quanto mais eu desejo este objeto que tu já desejas, mais ele se te apresentará desejável e, em contrapartida, mais ele me parecerá desejável para mim”. A partir disso, gera-se uma tensão que culmina numa violência difusa (já que todas as pessoas tendem a desejar exatamente as mesmas coisas)[36]. Tomadas as dores, tem-se o prazer. E porque, agora pertencentes a ele, a licença estende-se, abarcando-o. Então, uma vez machucado, compreensível é o prazer em ver sofrer quem o machucou. E por isso permite-se as palmas, por isso permite-se o gozo. CENA 2: MÍDIA Conhecimento é poder. Conhecimento pode ser uma arma nas mãos daqueles que o possui. Os meios comunicativos têm, e não é de hoje, o poder de influência “na construção e compreensão da realidade ao transmitir acontecimentos e opiniões por meio da escrita, sons e imagens, exercendo uma espécie de controle social de forma indireta e informal”[37]. A partir do momento que, em segundos, tem-se conhecimento do que aconteceu, acontece e acontecerá, o dever de informação transforma-se em poder de determinação do modo de vida, pensamento, compreensão e visão da realidade que se quer ser enxergada, a partir do domínio do modo com que aquelas informações serão passadas à população. Há muito que os canais de comunicação, em detrimento de um conteúdo imparcial, fidedigno, com a preocupação de utilizar termos corretos quando de notícias referentes ao Direito Penal lato sensu (suspeito é suspeito, acusado é acusado, condenado é condenado), adotam posturas contrárias à direitos individuais, à privacidade, à dignidade humana, apoiando-se na falsa e ingênua ideia de transparência e função de informar. Na era dos holofotes, a mídia, uma vez observado e sabido o que é ou não motivo de aplauso e gozo populares, agora concentra seus esforços na cobertura de matérias a serem mais aplaudidas, porque mais dolorosas, chocantes, aumentando e garantindo-se a audiência. Dessa forma, a persecução penal, já espetacularizada, ganha transmissão e cobertura quase que “ao vivo”: [...] é possível perceber a mudança na intenção jornalística, que passou a ser a busca de audiência. Neste sentido, a mídia faz uso do impiedoso sensacionalismo, deixando de lado os escrúpulos que regem a prática da atividade, para veicular notícias tão somente com o escopo de lucrar em cima de uma falsa ou exagerada versão dos fatos. Desta feita, a imprensa inverte o seu papel na sociedade, prestando um desserviço de comunicação em massa, difundindo à sociedade uma falsa verdade criada por ela, gerando formações de opiniões livres de veracidade e conhecimento e eivadas, muitas vezes, de ódio e temor, seja pela divulgação superficial dos estigmas do Poder Judiciário, ao abordar sem fundamento jurídico válido, por exemplo, a morosidade ao julgar algumas ações criminosas[38]. Ultrapassando direitos e limites constitucionais, cega na busca incessante de mais telespectadores, investiga-se para além da Polícia, aponta e julga-se, muito antes de qualquer ato jurisdicional, cometendo graves erros, os quais muitas vezes um pedido de desculpas, uma errata, um adendo à notícia, cujas informações já atingiram seus objetivos, não têm o poder de consertar os estragos que produziram. Por vezes a verdade não se faz tão chamativa, não sendo diferente no caso em tela, visto que noticiar a prisão de um Reitor de uma Universidade Federal, dando a entender que fora preso, por suspeito ser, de desviar dinheiro da educação, é mais “excitante” porque mais repugnante, do que noticiar a decretação da prisão preventiva, de um Reitor de uma Universidade Federal suspeito de não colaborar com as investigações, em âmbito administrativo. É evidente. Nesse diapasão, comporta-se como um meio facilitador à imitação do outro, contribuinte da concessão de e para uma licença generalizada, transformando indivíduos suspeitos, acusados ou condenados em inimigos. E já que inimigo, passível de humilhação, dor, sofrimento, tortura, notícia, manchete, foto, filmagem, cobertura midiática, cujas consequências estão para além da persecução penal e das penas que dali poderiam sair. Tal prazer é insaciável e alimentá-lo é perigoso. Quando se acaba a graça, o prazer naquele espetáculo, naquele(s) inimigo(s), buscam-se novos. Até que, de repente e não surpreendente seria, fará rir quem hoje dá risada, dará prazer quem hoje o sente. TERCEIRO ATO: MORTE CENA FINAL: MINHA MORTE FOI DECRETADA QUANDO FUI BANIDO DA UNIVERSADE[39] A discussão acerca da ausência de fundamentação minimamente razoável em decisões que decretam ou mantém a prisão preventiva é corriqueira entre os operadores do direito. Isso porque, ainda que já pacificado entendimento de que a argumentação para estes fins (e todos os outros) deve ser exaustiva, de modo a demonstrar além do motivo, a forma que o indivíduo viria a desordenar a ordem pública, atrapalhar a instrução ou a aplicabilidade das sanções penais. Além disso, a desproporcionalidade dos fatos e medidas impostas, alinhada aos aplausos sociais e atenção midiática, pode acarretar consequências desastrosas e sem precedentes, as quais fogem do controle. No caso em tela, Luis Carlos Cancellier de Olivo, não só teve sua prisão preventiva decretada, como viu-se proibido de entrar na Universidade Federal de Santa Catarina, instituição esta que dedicou toda uma vida, a qual considerava extensão de sua casa[40]. Até hoje, não foram apontadas qualquer fundamentação ou finalidade para tal medida. E assim foram definidos o contexto, o cenário, os atores e seus papeis: mais uma peça penal a ser assistida, aplaudida socialmente. Os julgamentos e condenações prévios partidos de uma sociedade que aponta o dedo e não olha a si mesma, incitados pela divulgação de notícias precipitadas e destoadas da realidade, fizeram a reitoria da Universidade Federal de Santa Catarina amanhecer pichada com a frase: “ladrões devolvam os 80 milhões”[41]. Instalou-se, devido a todos esses acontecimentos, um quadro de depressão profunda. O dano causado à sua imagem foi irreversível[42]. E, de fato, Cancellier jamais voltou a frequentar as dependências da Universidade, em vida: no dia seguinte de sua morte, “seu caixão foi carregado por amigos e familiares e velado no mesmo auditório Garapuvu da sua posse”[43]. Com o pronunciamento do Procurador Geral do Estado de Santa Catarina, João dos Passos Martins Neto, encerra-se o presente retrato dessa peça; e que Cao seja sempre (mais) um grande motivo para (sobre)viver e lutar por dias melhores: Que o legado do Professor Luiz Carlos Cancellier de Olivo seja, em meio a tantos outros bens que nos deixou, também o de ter exposto ao País a perversidade de um sistema de justiça criminal sedento de luz e fama, especializado em antecipar penas e martirizar inocentes, sob o falso pretexto de garantir a eficácia de suas investigações[44]. Fim. Andressa Tomazini Graduanda em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina Pesquisadora Científica Conselheira Científica das Revistas Artigos Jurídicos e Direito em Debate e Direito, Cultura e Processo Colunista do Canal Ciências Criminais e do Sala de Aula Criminal [1] DUCLERC, Elmir. Por uma teoria do processo penal. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. [2] ROSA, Alexandre Morais da. Para entender a delação premiada pela teoria os jogos: táticas e estratégias do negócio jurídico. Florianópolis: Empório Modara, 2017. [3] CASARA, Rubens. Processo Penal do Espetáculo. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. [4] TOMAZINI, Andressa. Processo penal: de jogadores a atores, do campo ao palco e de jogo ao espetáculo. Empório do Direito, Florianópolis, 09 out 2017. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/backup/tag/andressa-tomazini/>. Acesso em: 08 jan 2018. [5] CASARA, Rubens R R. Processo penal do espetáculo. Justificando, 14 fev 2015. Disponível em: <http://justificando.com/2015/02/14/processo-penal-espetaculo/>. Acesso em: 08 jan 2018. [6] TOMAZINI, Andressa. Processo penal: de jogadores a atores, do campo ao palco e de jogo ao espetáculo. Empório do Direito, Florianópolis, 09 out 2017. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/backup/tag/andressa-tomazini/>. Acesso em: 08 jan 2018. [7] TORRES, Aline. O suicídio do reitor para quem prisão foi ultraje e sentença de morte. El País Brasil, Florianópolis, 4 out 2017. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/04/politica/1507084756_989166.html>. Acesso em: 18 jan 2018. [8] BURIGO, Fernanda; AVILA, Maria de e MARTINS, Valéria. Reitor da UFSC e outras seis pessoas são presas em operação contra desvio de recursos. G1 O Globo, 14 set 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/pf-faz-operacao-contra-desvios-de-recursos-na-ufsc.ghtml>. Acesso em: 18 jan 2018. [9] VALENTE, Rubens. Depoimentos reforçam suspeita da Polícia Federal sobre reitor da UFSC. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/12/1945326-depoimentos-reforcam-suspeita-da-policia-federal-sobre-reitor-da-ufsc.shtml>. Acesso em: 09 jan 2018. [10] BURIGO, Fernanda; AVILA, Maria de e MARTINS, Valéria. Reitor da UFSC e outras seis pessoas são presas em operação contra desvio de recursos. G1 O Globo, 14 set 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/pf-faz-operacao-contra-desvios-de-recursos-na-ufsc.ghtml>. Acesso em: 18 jan 2018. [11] VASQUES, Lucas. Delegada da PF que prendeu ex-reitor da UFSC é alvo de investigação na Justiça, a pedido da família Cancellier. Disponível em: <https://www.revistaforum.com.br/2017/12/03/delegada-da-pf-que-prendeu-ex-reitor-da-ufsc-e-alvo-de-investigacao-na-justica-pedido-da-familia-cancellier/>. Acesso em: 09 jan 2018. [12] VASQUES, Lucas. Delegada da PF que prendeu ex-reitor da UFSC é alvo de investigação na Justiça, a pedido da família Cancellier. Disponível em: <https://www.revistaforum.com.br/2017/12/03/delegada-da-pf-que-prendeu-ex-reitor-da-ufsc-e-alvo-de-investigacao-na-justica-pedido-da-familia-cancellier/>. Acesso em: 09 jan 2018. [13] VASQUES, Lucas. Delegada da PF que prendeu ex-reitor da UFSC é alvo de investigação na Justiça, a pedido da família Cancellier. Disponível em: <https://www.revistaforum.com.br/2017/12/03/delegada-da-pf-que-prendeu-ex-reitor-da-ufsc-e-alvo-de-investigacao-na-justica-pedido-da-familia-cancellier/>. Acesso em: 09 jan 2018. [14] BORBA, Bruna Roberta de e MINAGÉ, Thiago. O estranho poder de matar e as misérias do processo penal que há tempos Francesco Carnelutti anunciava. Empório do Direito, 05 out 2017. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/backup/o-estranho-poder-de-matar-e-as-miserias-do-processo-penal-que-ha-tempos-francesco-carnelutti-anunciava-por-bruna-roberta-de-borba-e-thiago-m-minage/>. Acesso em: 31 jan 2018. [15] TOMAZINI, Andressa. Processo penal: de jogadores a atores, do campo ao palco e de jogo ao espetáculo. Empório do Direito, Florianópolis, 09 out 2017. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/backup/tag/andressa-tomazini/>. Acesso em: 08 jan 2018. [16] Reitor da UFSC é preso em operação que apura desvio de verba em cursos. Folha de São Paulo, São Paulo, 14 set 2017. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2017/09/1918349-pf-faz-operacao-contra-desvios-de-recursos-na-ufsc.shtml>. Acesso em: 31 jan 2018. [17] Reitor da UFSC é preso em operação da PF que investiga desvio de recursos. Diário Catarinense, 14 set 2017. Disponível em: <http://dc.clicrbs.com.br/sc/noticias/noticia/2017/09/reitor-da-ufsc-e-preso-em-operacao-da-pf-que-investiga-desvio-de-recursos-9898899.html>. Acesso em: 31 jan 2018. [18] Reitor da UFSC é um dos presos na Operação Ouvidos Moucos. Agência Brasil, Brasília, 14 set 2017. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-09/reitor-da-ufsc-e-um-dos-presos-na-operacao-ouvidos-moucos>. Acesso em: 31 jan 2018. [19] BORBA, Bruna Roberta de e MINAGÉ, Thiago. O estranho poder de matar e as misérias do processo penal que há tempos Francesco Carnelutti anunciava. Empório do Direito, 05 out 2017. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/backup/o-estranho-poder-de-matar-e-as-miserias-do-processo-penal-que-ha-tempos-francesco-carnelutti-anunciava-por-bruna-roberta-de-borba-e-thiago-m-minage/>. Acesso em: 31 jan 2018. [20] VASQUES, Lucas. Delegada da PF que prendeu ex-reitor da UFSC é alvo de investigação na Justiça, a pedido da família Cancellier. Disponível em: <https://www.revistaforum.com.br/2017/12/03/delegada-da-pf-que-prendeu-ex-reitor-da-ufsc-e-alvo-de-investigacao-na-justica-pedido-da-familia-cancellier/>. Acesso em: 09 jan 2018. [21] Reitor da UFSC é preso em operação que apura desvio de verba em cursos. Folha de São Paulo, São Paulo, 14 set 2017. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2017/09/1918349-pf-faz-operacao-contra-desvios-de-recursos-na-ufsc.shtml>. Acesso em: 31 jan 2018. [22] SC, G1. As ameaças começaram após a posse do reitor', diz corregedor-geral que investiga desvio de verba de EaD na UFSC. Disponível em: <https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/as-ameacas-comecaram-apos-a-posse-do-reitor-diz-corregedor-geral-que-investiga-desvio-de-verba-de-ead-na-ufsc.ghtml>. Acesso em: 09 jan 2018. [23] VALENTE, Rubens. Depoimentos reforçam suspeita da Polícia Federal sobre reitor da UFSC. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/12/1945326-depoimentos-reforcam-suspeita-da-policia-federal-sobre-reitor-da-ufsc.shtml>. Acesso em: 09 jan 2018. [24] LACAN, Jacques. O seminário - Livro 4 - A relação de objeto. Rio de Janeiro: Zahar, 1995. [25] VILELA, Leonardo Marques. Por que gozamos com as prisões? Empório do Direito, 24 nov 2016. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/leitura/por-que-gozamos-com-as-prisoes-por-leonardo-marques-vilela>. Acesso em: 14 fev 2018. [26] HOBBES, Thomas de Malmesbury. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultural, 1997. [27] CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 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Acesso em: 28 jan 2018. [34] TZU, Sun. A arte da guerra. Tradução de Gilson Cesar Cardozo de Souza; Klauss Brandini Gerhardt e Samuel B Griffith. [S.l.]: Paz e Terra, 1997. [35] JUNIOR, Airto Chaves. Sobre o controle simbólico da violência: o desejo por punição é realmente seu? Justificando, 27 abr 2017. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2017/04/27/sobre-o-controle-simbolico-da-violencia-o-desejo-por-punicao-e-realmente-seu/>. Acesso em: 14 fev 2018. [36] JUNIOR, Airto Chaves. Sobre o controle simbólico da violência: o desejo por punição é realmente seu? Justificando, 27 abr 2017. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2017/04/27/sobre-o-controle-simbolico-da-violencia-o-desejo-por-punicao-e-realmente-seu/>. Acesso em: 14 fev 2018. [37] FERREIRA, Carla Danielle Lima Gomes. A influência da mídia no processo penal brasileiro e a ruptura dos direitos fundamentais sobre o acusado. Jurisway, 27 ago 2014. Disponível em: <https://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=13766>. Acesso em: 14 fev 2018. [38] FERNANDES, Maria Rayane de Oliveira. A influência da mídia nos casos de grande comoção social e no processo penal. Jus jul 2016. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/50786/a-influencia-da-midia-nos-casos-de-grande-comocao-social-e-no-processo-penal>. Acesso em: 14 fev 2018. [39] Texto do bilhete encontrado no bolso de Luis Carlos Cancellier após o suicídio. [40] VASQUES, Lucas. Delegada da PF que prendeu ex-reitor da UFSC é alvo de investigação na Justiça, a pedido da família Cancellier. Disponível em: <https://www.revistaforum.com.br/2017/12/03/delegada-da-pf-que-prendeu-ex-reitor-da-ufsc-e-alvo-de-investigacao-na-justica-pedido-da-familia-cancellier/>. Acesso em: 09 jan 2018. [41] TORRES, Aline. O suicídio do reitor para quem prisão foi ultraje e sentença de morte. El País Brasil, Florianópolis, 4 out 2017. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/04/politica/1507084756_989166.html>. Acesso em: 18 jan 2018. [42] Em nota, o atual Presidente da Ordem dos Advogados de Santa Catarina, que deu aulas para Cancellier na UFSC escreveu “reputações construídas duramente, ao longo de anos de trabalho e sacrifícios, podem ser completamente destruídas numa única manchete de jornal”. [43] TORRES, Aline. O suicídio do reitor para quem prisão foi ultraje e sentença de morte. El País Brasil, Florianópolis, 4 out 2017. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/04/politica/1507084756_989166.html>. Acesso em: 18 jan 2018. [44] TORRES, Aline. O suicídio do reitor para quem prisão foi ultraje e sentença de morte. El País Brasil, Florianópolis, 4 out 2017. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/04/politica/1507084756_989166.html>. Acesso em: 18 jan 2018. Comments are closed.
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