Dia desses, o intimorato colega e valoroso amigo Claudio Dalledone Junior postou no facebook trecho de uma peroração sua, durante os debates perante o Tribunal do Júri de Guaratuba. Inflamado, o advogado vociferou as seguintes palavras no plenário popular:
Dalledone tem razão. Com efeito, existe um prazer mórbido que se oculta em certas pessoas quando testemunham um episódio traumático. As tragédias que envolvem sangue parecem fazer despertar uma espécie de deleite secreto, no recôndito íntimo de alguns indivíduos que se regozijam em assumir um protagonismo travestido sob a roupagem de suposta solidariedade. Em quase todos os casos criminais, surgem esses personagens que, de espectadores, querem tornar-se protagonistas, de testemunhas, justiceiros, engendrando falsos enredos, na quimera de suas ilusões. Mal e mal os fatos se passaram, ainda sob crepitar fumegante dos acontecimentos, já surgem esses curiosos supostamente solidários com o infortúnio, formando aquele burburinho típico no local do crime, não raro destilando comentários ambíguos que transitam entre a suposta solidariedade e o mal disfarçado gozo com a desventura acontecida. Se a imprensa chega em seguida, então, a combinação se torna explosiva: capturados sob os holofotes das câmeras, esses solidários de plantão não se contêm ao se precipitar perante os microfones para destilar suas fantasias. Mais tarde, em casa, poderão se vangloriar no sofá, mostrando a todos como foram solícitos àquele momento de dor, quando, a bem da verdade, não havia nada de solicitude, mas sim um doentio prazer inconfessável pelo sabor amargo do sofrimento alheio. Não é de hoje que a psicologia forense tem explicado esses testemunhos mendazes. Já no começo do século passado, o Professor Luigi Battistelli, da Universidade de Roma, denunciava essa tendência atávica à mentira, no seu primoroso estudo “A Mentira nos Tribunais”. Não são mitômanos compulsivos ou psicopatas, nem portadores de transtornos psicológicos perceptíveis, tampouco sugestionados por falsas memórias. São pessoas tidas como normais, pais de família, aposentados, executivos, indivíduos que, não raro, desfrutam de um bom conceito social, mas, que, por uma razão ou por outra, quando se deparam diante de um evento infausto e pungente, geralmente envolvendo violência e morte, aflora-se um instinto irrefreável que o compele a assumir o centro das atenções. Fazem isso a troco de quê? De nada. Não são pessoas que trocam a mentira por uma contrapartida, no escambo da verdade. Mentem para agigantar a relevância do evento fatídico. Quanto mais trágica e dolorosa for a estória, mais poderão saciar essa ânsia incontida pelo sofrimento. Talvez não queiram voltar à mediocridade de suas vidas vazias, mesquinhas e insossas, sem protagonizar algo importante, agudizado por sangue e lágrimas. Para isso, inventam estórias fantasiosas, porém invariavelmente fantásticas e mirabolantes. O pior é que essas falsas versões, malgrado fantásticas e mirabolantes, não são completamente desconectadas da realidade. Normalmente, esses enredos mentirosos são parcialmente reais, o que confere uma roupagem de verossimilhança às falsas versões. Quando são convocadas a depor em juízo, há um verdadeiro frenesi que invade o espírito dessas pessoas. Se forem chamadas a um eventual júri popular, o objetivo terá sido alcançado, será a consagração das fantasias urdidas, o momento de particular euforia. Sob uma fisionomia austera e congestionada, a pessoa comparecerá para assumir o centro do espetáculo e, assim, teatralizar o enredo de mentiras construídas, no afã de dar ao caso uma dimensão maior do que a que ele efetivamente tem. Nessas condições, esses indivíduos abandonam a condição passiva de espectadores para se engajar numa cruzada de proatividade. Quando a polícia científica chega ao local do crime, são essas pessoas quem, normalmente, se voluntariam a prestar a primeira versão dos fatos, tomando as rédeas da situação, no entorno dos acontecimentos. De mãos dadas com investigadores, essas aves de mal agouro mobilizam uma aparente solidariedade em “fazer justiça” e “esclarecer a verdade”, desde que – é claro – a verdade seja o mais sangrenta e repugnante possível, porque é de sangue e tragédia que se alimentam os abutres da desgraça alheia. Adriano Bretas Advogado Criminal Professor de Processo Penal Comments are closed.
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