O livro “O Pequeno Príncipe” de Antoine de Saint-Exupéry é um clássico. Um gigante que figura entre os livros mais traduzidos na história da literatura mundial. Um texto singelo e delicado que induz um potencial de sentidos capaz de emocionar até os mais álgidos leitores.
A obra oferece um conjunto de metáforas sobre alguns dos maiores vícios e desafios da existência humana. Descreve a viagem de um Pequeno Príncipe por planetas (mundos) reduzidos que representam o espaço potencial de compreensão de estereótipos viciosos de personalidade. Refere-se aos planetas de um rei, de um vaidoso, de um bêbado, de um homem de negócios, de um acendedor de lampião e de um geógrafo, mas, principalmente, narra os dramas do Pequeno Príncipe em relação ao seu próprio planeta. Dentre as metáforas contidas no livro, há uma em especial que pode contribuir para a compreensão da origem do que podemos chamar de ideologia penal. No capítulo cinco da obra, a voz do narrador diz o seguinte:
Compreendemos as coisas a partir do nosso mundo. Um mundo que deve ser percebido – aqui neste texto – como potencial compreensivo e não como um planeta em si ou um conjunto de coisas fisicamente dispostas no espaço. Trata-se do horizonte de nossa capacidade de compreender as coisas. Algo que se dá na e pela linguagem, mas que com ela não deve ser confundido. Essa ideia de mundo – enquanto potencial compreensivo – é o que está por trás das metáforas ilustradas pelos planetas visitados pelo Pequeno Príncipe. São potenciais compreensivos de personalidades problemáticas que despertam a reflexão crítica do menino em relação ao seu próprio mundo. Por incrível que pareça, não temos controle sobre nossa compreensão das coisas. Não podemos olhar para uma maçã e ver um abacaxi. Nosso mundo não nos permite. Podemos olhar para a maçã, ver a maçã e dizer que estamos vendo um abacaxi. Temos controle sobre a fala, mas não sobre a compreensão. A fala está no âmbito da interpretação. A interpretação é a manifestação do compreendido. Compreendemos para depois interpretar. Há um espaço entre compreensão e interpretação. Um espaço onde está a discricionariedade interpretativa. O lugar onde nascem a verdade e a mentira. Cada mundo se constitui pelo conjunto de vivências de seu habitante. Essas vivências geram uma espécie de energia potencial de sentidos, que, quando acionada por estímulos sensoriais (visão, audição, memória, etc.), entrega um conjunto de sentidos, de algo que se sente e que, portanto, é sentido enquanto particípio do verbo sentir. Aprendemos que maçã é maçã pelas vivências. Depois que aprendemos isso, por mais que alguém tente nos dizer que uma maçã é um abacaxi, nosso mundo não nos permitirá aceitar essa proposta. As vivências equivalem às sementes da metáfora dos baobás. Cada vivência é uma semente que pode ou não germinar e crescer no solo do mundo onde ela caiu. São imperceptíveis enquanto sementes, mas devem ser monitoradas logo que se tornem “raminhos”, pois ao se transformarem em árvores, enraízam-se no mundo, influenciando a geração de sentidos. Vivências ruins são como sementes de plantas daninhas que, quando grandes, geram efeitos nocivos. A ideologia penal é um fenômeno cultural que também pode ser identificado como instinto punitivo ou cultura da punição. Algo essencialmente humano e não natural. Uma energia que contamina o imaginário das pessoas, gerando a ilusão de que a punição soluciona a criminalidade e que sua eficácia está diretamente relacionada ao rigor da pena. Não temos controle sobre a compreensão (geração de sentidos) e a ideologia penal é como um grande baobá enraizado em nosso mundo. Difícil de ser cortada, ela influencia nocivamente a geração de sentidos, prejudicando nossa compreensão das coisas. Suas sementes são as mídias de massa que propagam a cultura do ódio e da punição como remédio para a criminalidade. Um bombardeio inconsequente de sementes de baobás. Leoclícia Alves, ao escrever o posfácio sobre a vida de Saint-Exupéry na edição que serviu de base para redação deste texto, apoiou-se na metáfora dos baobás para afirmar – sob outra perspectiva – que o Autor era:
Sabemos que a cultura da punição vem causando cada vez mais mal para a sociedade. Quanto mais a população carcerária aumenta, mais o problema da criminalidade se agrava. Mas a maioria de nós não vê isso, pois habita um mundo de compreensão rachado por raízes de enormes baobás. O descuido com as sementes plantadas pela propaganda do ódio permitiu o crescimento dos baobás da ideologia penal e a contaminação do potencial compreensivo. Quem habita um planeta dominado pelos baobás da ideologia penal não consegue enxergar além do punitivismo. Arrancar os gigantescos baobás é quase impossível. O cuidado com as sementes é o melhor caminho. Sementes plantadas pela cultura do ódio. Uma tarefa para pessoas virtuosas que se sabem responsáveis “por si mesmo, mas também por todo o mundo”. Claudio Melim Mestre e Doutorando em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI Possui graduação em Direito e Ciência da Computação pela mesma instituição Advogado. E-mail: <[email protected]>. Obra pesquisada: SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O pequeno príncipe. Tradução de Frei Betto. São Paulo: Geração Editorial, 2015. [versão e-book] Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |