Como ponto de partida, é importante compreender que a ordem econômica, uma vez colocada em um altar pela Constituição Federal, legitima o Estado a regular ou a intervir em espaços onde a autorregulação econômica se mostre insuficiente para a solidez e a transparência do mercado, ou, até mesmo em casos em que fluxos econômicos devam se orientar também sob o prisma de uma programação social, o que, nos coloca diante de um problema que se relaciona à possível missão atribuída ao direito penal como instrumento para auxiliar essa tutela. A doutrina apresenta três critérios epistemológicos distintos, utilizados para delimitar o horizonte cognitivo do direito penal econômico: um critério criminológico, um critério processual e, por fim, um critério através do bem jurídico. O primeiro – critério criminológico – surgiu a partir da definição de white-collar crimes, desenvolvido por Edwin Sutherland, em 1939.[1] Muito embora essa relação entre criminalização secundária e processos de seletividade social não tenha sido descoberta por ele, a inauguração da teoria da associação diferenciada, uma crítica ao princípio da culpabilidade, enquanto exigência geral do desvalor social da conduta, lhe é atribuída. Por meio de um estudo estatístico, Edwin Sutherland concluiu que pessoas com elevadas condições econômicas também praticavam crimes – do ponto de vista criminológico não importa o ilícito-típico realizado – entretanto, conseguiam de alguma maneira escapar do processo de criminalização. Ele percebeu que normalmente os sujeitos ativos desse tipo de delito eram pessoas com notoriedade ou que ocupavam uma posição privilegiada, e supostamente deveriam servir como exemplo de respeitabilidade para todos.[2] Um fato que preocupa sobremaneira os doutrinadores e pesquisadores acerca desse tema, é que os crimes de “colarinho branco” ou corporativos são uma consequência inevitável do capitalismo. Asseguram, que os grandes empresários quando precisam enfrentar uma situação em que a legislação veta sua atuação, utilizam-se de meios ilegais para manter ou aumentar seu faturamento, valendo-se, como fundamento, da velha máxima de que “negócios são negócios”.[3] Através deste critério, o sujeito ativo equivale àquele de classe social alta, que goza de boa reputação e que pratica o delito no bojo de sua profissão com habitualidade. Ainda que fosse verdade que a figura desse "sujeito ativo" desenhado por Edwin Surtherland seja recorrente, em se tratando de delitos econômicos, nota-se que não há nenhuma regra no Direito Penal Econômico que exija um perfil de sujeito ativo com essas características. Podemos encontrar crimes atentatórios à ordem econômica sem que seu autor seja pessoa abastada.[4] Portanto, a "denúncia criminológica" de Sutherland, embora possa servir de um instrumento de crítica, a dogmática penal clássica estruturada a partir da tutela de direitos individuais, não possui, por óbvio, capacidade suficiente para delimitar o objeto do direito penal econômico.[5] Isso porque o direito penal econômico acabaria por se confundir com todos os crimes em espécie definidos pelo direito penal.[6] Contudo Hermann Mannheim critica o conceito proposto por Edwin Sutherland afirmando que o pesquisador incide em dois erros que tornam o seu conceito vulnerável por conta de sua vagueza e heterodoxia, aludindo às expressões "pessoa respeitável" e "elevado status social", e questionando em que a medida do elevado status social implicaria ou não em uma ideia de respeitabilidade. Isso porque, esses termos não apresentam um conceito fechado, são termos com um caráter predominantemente valorativo e por isso, de difícil conversão em estatística, ou até mesmo de ser trabalhado objetivamente na dogmática penal. Ainda, Hermann Mannheim critica o fato de Edwin Sutherland afirmar que os crimes de colarinho branco sempre se concentram "no peixe graúdo". Algumas – raras – vezes podemos estar diante de situações onde o sujeito ativo é um delinquente de colarinho branco e que comete na vida privada algumas infrações conexas com seus negócios, como por exemplo a evasão fiscal nas declarações de imposto de renda.[7] Um segundo critério delimitador do campo do direito penal econômico é visto como critério processual, isto é, normativo. Esse, de ordem processual, aduz que haveria a necessidade de especialização – verticalização – do conhecimento por parte dos agentes estatais que conduziriam um processo relativo à ordem econômica, até para garantir a concretização e efetividade da persecução desta classe de delitos, uma vez que há necessidade de um aprofundamento no tocante ao funcionamento dos mercados financeiros e de capitais, bem como às regras de contabilidade, administração de conglomerados, etc.[8] Nesse sentido, Miguel Bajo e Silvina Bacigalupo defendem inclusive a necessidade de o magistrado responsável pela persecução dispor de um grupo auxiliar especializado na matéria, capaz de examinar a contabilidade, balancetes e de fato compreender a gestão empresarial, sob risco de o magistrado não conseguir seguir com os atos de instrução processual entendendo perfeitamente o valor de determinadas provas que poderiam ser decisivas.[9] Igualmente, Figueiredo Dias afirma que a autonomia do direito penal econômico decorre da particularidade do ilícito, da particularidade tendencial de suas sanções e também, da particularidade das condições de sua aplicação.[10] Inclusive Linares Estrella considera esse critério processual insustentável, na medida em que é absolutamente inquestionável no campo do direito penal econômico a existência de bens jurídicos coletivos ou supraindividuais que determinam soluções dogmáticas particulares, como por exemplo a renúncia de um sócio a ser informado sobre um determinado extremo da sociedade pode ser irrelevante se o interesse tutelado através do dever de informação ao sócio é supraindividual.[11] Um dos primeiros países a codificar as infrações econômicos foi Portugal, através da edição do Decreto-Lei nº 41.204, de 1954, que definia as infrações contra a saúde pública e as infrações antieconômicas. Posteriormente, foi revogado pelo Decreto-Lei nº 28, de 1984, sendo mantida a estrutura codificada – ainda que não exauriente – das modalidades delitivas e do rito processual respectivo. Na Espanha, houve um movimento codificador mais amplo e, com a entrada em vigor em 1995 do Código Penal espanhol, é que se fez a previsão dos Delitos contra o patrimônio e contra a ordem econômica (artigos 234/304) e dos delitos contra a Fazenda Pública e a Segurança Social (artigos 304/310).[12] Na Itália, na França e no Brasil, os crimes denominados "econômicos" estão previstos em legislação fragmentada.[13] A saber, o direito penal econômico seria delimitado sob um viés processual, mais ainda, de competência. Portanto, deveria haver um juiz especializado em crimes econômicos e logo, a matéria relativa ao Direito Penal Econômico seria sempre colocada sob atribuição desse magistrado. O último critério – que toda a doutrina costuma se debruçar – é o de delimitação do campo do direito penal econômico através da matéria especificamente tutelada, ou seja, a eventual autonomia do bem jurídico tutelado – Ordem Econômica.[14] Assim, toda vez que um delito viesse ofender a ordem econômica estaríamos diante de delitos penais econômicos, isto é, a uma área adstrita ao Direito Penal Econômico. Com isso, há que se fazer uma série de ajustes principiológicos que devem obrigatoriamente passar desde a teoria do delito até, inclusive, a teoria da pena. Isso porque, quando um delito é posto no catálogo de direito penal econômico, trabalha-se com considerações dogmáticas e principiológicas típicas do direito penal econômico. Desde que Kurt Lindemann, em 1930, estabeleceu que o direito penal econômico seria o ramo jurídico voltado à defesa penal da economia nacional em conjunto, ou das suas instituições fundamentais, e Eberhard Schmidt, em 1950, estabeleceu que o direito penal econômico incidisse no espaço dos interesses vitais econômico-sociais, a doutrina penal europeia passa a expor a autonomia e peculiaridade do bem jurídico, protegidas pela normal penal econômica.[15] Ainda, com a intensificação de conhecimento tecnológico, com o grande processo de industrialização – que ainda existe –, e com a inflação de pessoas nas grandes cidades, aumentam significativamente as oportunidades para delinquir em um âmbito de estrutura socioeconômica, o que exige, por parte do estado uma proteção mais efetiva dos bens jurídicos supraindividuais.[16] Fernando Martins Maria Sobrinho Mestre em Direito pelo Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA. Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade Positivo. Pós Graduado em Direito Penal e Processo Penal pelo Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA. Bacharel em Direito pela Universidade Positivo. Advogado. Membro da Comissão de Advocacia Criminal da OAB/PR. Professor de Direito Penal do Curso Jurídico. [1] SUTHERLAND, Edwin H. El delito de Cuello Blanco. Trad. Laura Belloqui. Buenos Aires: IBdeF, 2009. p. 47. [2] SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direito penal econômico: parte geral. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 68-69. [3] M MORGAN, Rod. The Oxford Handbook of Criminology. 4. ed. New York: Oxford University Press, 2007. p. 738–747. [4] VOLK, Klaus. Criminalità Economica: Problemi Criminologici, Politico-criminali e Dommatici Sistema Penale e Criminalità Economica. I rapporti tra dommatica, politica criminale e processo. Napoli: Scientifiche Italiane, 1998. p. 30-32. [5] FARIA COSTA, José de. Direito Penal Económico. Coimbra: Quarteto, 2003. p. 81-83. [6] TIEDEMANN, Klaus. Manual de Derecho Penal Económico.2. ed. Valencia: Tirand lo Blanch, 2010. p. 125. [7] MANNHEIM, Hermann. Criminologia comparada. Trad. J. F. Faria Costae M. Costa Andrade. Lisboa: Dundação Calouste Gulbenkian, 1984. p. 720. [8]CASTELLAR, João Carlos. Direito penal econômico versus direito penal convencional: a engenhosa arte de criminalizar os ricos para punir os pobres. Rio de Janeiro: Revan, 2013. p. 206. [9]CASTELLAR, João Carlos. Direito penal econômico versus direito penal convencional: a engenhosa arte de criminalizar os ricos para punir os pobres. Rio de Janeiro: Revan, 2013. p. 208. [10] FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Sobre o fundamento, o sentido e a aplicação das penas em direito penal econômico. In: CORREIA, Eduardo; PINTO, Frederico de Lacerda da Costa; FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito Penal Econômico e Europeu: Textos Doutrinários. Coimbra: Coimbra, 1998. p. 376.[11] LINARES ESTRELLA, Ángel. Un problema de parte general del derecho español y cubano. Granada: Colmares/Facultad de Derecho de la Universidade de Granada, 2002. p. 40. [12] SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direito penal econômico: parte geral. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 74. [13] Como por exemplo, no Brasil: Lei nº 7.492/1986 (Lei que prevê os crimes contra o sistema financeiro nacional), Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), Lei nº 8.137/90 (Lei que prevê crimes contra a ordem tributária e econômica). Na Itália: Decreto-Legislativo 74/2000 (reati in materia di imposte sui redditi e sul valore aggiunto"), Decreto-Legislativo 58/98 (reati in materia di intermediazione finanziaria"). [14] SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direito penal econômico: parte geral. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 75. [15] SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direito penal econômico: parte geral. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 75. [16] BAJO FERNÁNDEZ; Miguel; BACIGALUPO, Silvina. Derecho Penal Económico. Madrid: Centro de Estudios Ramón Areces S.A, 2001. p. 12. 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