OS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS E O HABEAS CORPUS 124.306 NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL[1]7/9/2018
As sociedades democráticas contemporâneas deram início a um grande movimento político de reivindicação de direitos na esfera da sexualidade e reprodução a partir de uma perspectiva emancipatória. A construção dos direitos sexuais e reprodutivos está vinculada aos movimentos sociais, principalmente os das mulheres, que se voltaram inicialmente contra as políticas verticais de natalidade e posteriormente ao debate para o exercício pleno da sexualidade e reprodução, que passavam a ser introduzidas no discurso político não mais como necessidade biológica, mas como um conjunto de direitos.[2]
Os direitos humanos são um conjunto mínimo de direitos necessários para assegurar uma vida baseada na liberdade e dignidade do ser humano. Os direitos fundamentais são assim considerados porque sem eles a pessoa humana não consegue existir e não será capaz de se desenvolver e viver plenamente.[3]Os direitos sexuais e reprodutivos são os mais humanos de todos os direitos, que precisam ser reconhecidos, mas também vividos e transcendidos pela humanidade. Os direitos sexuais e reprodutivos[4]são inseparáveis, pois, garantem o livre exercício da sexualidade e autonomia para decisões no que se refere à vida sexual e reprodução, bem como em assumir as responsabilidades por essas decisões, baseadas numa ética pessoal e social, que assegurem a integridade e a saúde.[5] Os direitos reprodutivos referem-se ao direito de decidir livre e responsavelmente sobre o número, espaçamento, oportunidade de ter filhos e o acesso à informação e aos meios para a tomada dessa decisão. Os direitos sexuais dizem respeito ao direito de exercer a sexualidade e a reprodução livre da discriminação, coerção e violência. São direitos que estão inter-relacionados, pois o exercício da sexualidade de forma livre e segura só é possível se a prática sexual estiver desvinculada da reprodução.[6]Refere-se ainda a vida, a sobrevivência, a saúde sexual e reprodutiva, aos benefícios do progresso cientifico nessa área, a liberdade e a segurança, a não discriminação e o respeito às escolhas, educação e informação para a tomada de decisões e autodeterminação.[7] A atual concepção dos direitos reprodutivos não se limita a simples proteção da procriação humana, mas também envolve a realização conjunta dos direito individuais e sociais por meio de leis e políticas públicas que estabeleçam a equidade das relações nesse âmbito. Essa equidade reivindica não apenas a igualdade formal (perante a lei), mas uma igualdade de fato (material), que seja construída socialmente ou por meio de lei e politicas afirmativas. Para o alcance dessa equidade nas relações, é necessário identificar as desigualdades que dificultam ou impedem a efetivação desses direitos por determinada pessoa ou seguimento de pessoas.[8] A efetivação dos direitos reprodutivos envolve assegurar direitos relativos à autonomia e autodeterminação das funções reprodutivas reconhecidas nos Pactos e Convenções de Direitos Humanos e na lei constitucional brasileira, que tem como finalidade proporcionar os meios e condições necessários para a prática livre, saudável e segura das funções reprodutivas e da sexualidade.[9] Sobre os direitos reprodutivos que foram afirmados gradativamente no âmbito internacional, destacam-se os principais documentos e dispositivos legais que asseguram tais direitos: em 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos garantiu que ninguém estará sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar (art. XII) e que homens e mulheres têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família, sem qualquer resistência, exceto uma idade mínima para contraí-lo (art. XVI). A Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965, garantiu o direito à liberdade (artigo 5), à igualdade no acesso à saúde (artigo 5, letra e, n. IV), à igualdade no casamento e na constituição da família (artigo 5, letra d, IV). Em 1966 o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos garantiu o direito à vida e à liberdade (artigo 6) e a igualdade entre homens e mulheres (artigo 3). No mesmo ano, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais ratifica os princípios da igualdade e da liberdade, e obriga os Estados a reconhecerem o direito de proteção especial às mães por um período de tempo razoável antes e depois do parto (artigo 12).[10] Em 1984, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher reiterou o princípio da igualdade entre os sexos e a obrigatoriedade de adotar ações afirmativas para assegurar essa igualdade. Dentre os direitos a serem assegurados pelos Estados, destacam-se a obrigatoriedade que os Estados fixem uma idade mínima para o consentimento matrimonial (art. 16). A Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, reconheceu que crianças e adolescentes de ambos os sexos são sujeitos sociais, portadores plenos de direito e garantias próprias, independentes de seus pais e/ou familiares e do próprio Estado, respeitada sua peculiar condição de desenvolvimento, merecedores de cuidados especiais e prioridade absoluta nas políticas públicas. Dentre os direitos assegurados, destaca-se o direito a não discriminação por motivo de sexo ou qualquer outro (artigo 2 inciso 1 e 2). Em 2006 a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência trouxe um avanço significativo ao fazer referência expressa à saúde sexual e reprodutiva, no art. 25 letras “a” e “b”, quando afirma que os países devem oferecer às pessoas com deficiência programas e atenção à saúde, inclusive na área de saúde sexual e reprodutiva, propiciando que essas pessoas tenham acesso aos serviços e insumos que necessitam especificamente por causa de sua deficiência, inclusive diagnóstico e intervenção precoces.[11] Outro marco importante para a afirmação dos direito sexuais e reprodutivos no âmbito internacional foram as Conferências realizadas pela ONU. Na I Conferência Mundial de Direitos Humanos, em 1968, realizada em Teerã, que a história dos direitos reprodutivos como direitos humanos, com enfoque na autonomia reprodutiva da mulher, supostamente começou. Nessa Conferência adotou-se o que viria a ser o núcleo dos direitos reprodutivos, foi proclamado que os genitores têm o direito fundamental de determinar livremente o número de filhos e o intervalo entre seus nascimentos.[12]Teerã faz menção à questão da família, dos filhos e dos direitos reprodutivos, mas não faz referência aos direitos sexuais.[13] Em 1974 foi realizada, em Bucareste, na Romênia, a Conferência de População, na qual se reconhecem dois elementos centrais: o direito de casais e indivíduos determinarem o número de filhos e seu espaçamento e o papel do Estado na garantia desses direitos, incluindo-se a informação e o acesso a métodos de controle da natalidade. Em 1975 realizou-se, no México, a Conferência Mundial do Ano Internacional da Mulher, que deu início ao Decênio da Mulher, no qual se reconheceu o direito à integridade física e às decisões sobre o próprio corpo, o direito a diferentes orientações sexuais e os direitos reprodutivos. Em 1978 realizou-se a Conferência de Alma Ata (atual Cazaquistão) em que foi emitida a Declaração de Alma Ata sobre Atenção Primária, que reconheceu as vantagens de um enfoque holístico dos temas de saúde reprodutiva, vinculando os temas de saúde à vida das mulheres.[14] O termo “direitos reprodutivos” tornou-se público no I Encontro Internacional de Saúde da Mulher, realizado em Amsterdã, Holanda, em 1984. Houve consenso global que o termo trazia um conceito mais completo do que “saúde da mulher”, para a ampla pauta da autodeterminação reprodutiva das mulheres, como a desconstrução da maternidade como um dever, a luta pelo direito ao aborto e a anticoncepção.[15] A Conferência de Viena sobre os Direitos Humanos, realizada em 1993, onde se acordou que os direitos humanos das mulheres incluem o direito a ter controle sobre a sua sexualidade e a decidir livremente, sem discriminação nem violência.[16] Foi a Declaração de Direitos Humanos de Viena, que afirmou de forma explícita em seu §18 que os direitos humanos das mulheres e meninas são parte integral, inalienável e indivisível dos direitos humanos universais. O legado de Viena é duplo, pois, endossa a universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos invocada pela Declaração Universal de 1948 e também confere visibilidade aos direitos das mulheres e meninas.[17] Com a Conferência de Viena, pela primeira vez o termo sexual foi introduzido na linguagem internacional dos direitos humanos. Infelizmente o termo enfatizou apenas a violência sexual sofrida pelas mulheres, deixando de produzir uma representação mais ampla e positiva da sexualidade. Recorreu-se aos Estados para eliminar a violência baseada no gênero e todas as formas de abuso sexual, enfatizando a violação aos direitos sexuais, em detrimento de uma perspectiva afirmativa e prazerosa da sexualidade. A Conferência de Viena foi importante não apenas porque reconheceu a violência sexual como violação dos direitos humanos, mas também porque inseriu pela primeira vez o termo sexual na gramática dos direitos humanos.[18] Foi na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, de 05 a 13 de setembro de 1994 que, pela primeira vez, a saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos passaram a constituir os aspectos principais de um acordo central sobre população.[19]Enfrentou-se, então, a questão dos direitos sexuais e reprodutivos, estabelecendo-se princípios éticos relevantes relacionados com tais direitos e afirmando o direito da mulher a ter controle sobre as questões relativas à sexualidade, saúde sexual e reprodutiva assim como a decisão livre de coerção, violência e discriminação, como um direito fundamental. Enfatizou, ainda, que o livre exercício dos direitos sexuais e reprodutivos demanda políticas públicas que assegurem tais direitos. Apesar da advertência explicitada no Preâmbulo do documento, de que a Conferência do Cairo não criava novos tipos de direitos humanos, seu Programa de Ação inovou justamente ao explicitar os direitos reprodutivos.[20] Nessa Conferência a questão demográfica relativa aos aspectos da reprodução humana é deslocada para o âmbito dos direitos humanos, reconhecendo-se os direitos reprodutivos como direitos fundamentais para o desenvolvimento das nações e como parte dos direitos humanos básicos que devem orientar as políticas relacionadas à população. Um aspecto importante do Plano de Ação do Cairo é a relação estabelecida entre os direitos reprodutivos e os direitos das mulheres voltados para as relações equitativas entre os gêneros sob a ótica dos direitos humanos, estabelecendo objetivos e metas que envolvem a educação, a igualdade entre os sexos, a redução da mortalidade infantil e materna e o acesso universal aos serviços de saúde reprodutiva, familiar e sexual.[21]Na Conferência, o termo sexual deixa de ser mencionado apenas no plano da violência e passa a ter um sentido positivo que compõe o bem estar individual, ainda que a terminologia centrada na reprodução tenha prevalecido em relação à sexualidade.[22] A IV Conferência Mundial da Mulher, realizada em Pequim no ano de 1995, coincidia com os 50 anos da ONU e tinha como objetivo central preparar uma Plataforma de Ação para o final do século com os subtemas “igualdade, desenvolvimento e paz”. Assim como as três conferências precedentes sobre a temática, também reafirmou o compromisso com os direitos humanos das mulheres, dando continuidade à agenda global para o progresso e fortalecimento da condição feminina no mundo.[23] O resultado dos trabalhos da Conferência foi a Plataforma de Ação e a Declaração de Beijing, elaboradas com base no que havia sido firmado sobre o assunto nas conferências sociais precedentes. Reafirmou as conquistas em relação aos direitos reprodutivos e também avançou na formulação dos direitos sexuais como parte dos direitos humanos, e pela primeira vez as mulheres foram consideradas seres sexuais, além de reprodutivos.[24]A plataforma considera que a emancipação da mulher é uma condição básica para existência da justiça social, e não deve ser encarada como um problema apenas das mulheres, mas um dever de toda a sociedade.[25] A Conferência do Cairo e a Conferência de Pequim foram decisivas para inscrever os direitos reprodutivos no cenário dos direitos humanos e para inserir a temática dos direitos sexuais.Enfatizaram a igualdade de gênero e formularam um conceito referente aos direitos sexuais, enquanto direitos humanos, numa perspectiva positiva da sexualidade. Reconheceram a necessidade de criar propostas para a solução da pobreza, que acaba inviabilizando as politicas públicas para a promoção dos direitos sexuais e reprodutivos. As Conferências do Cairo e Pequim foram relevantes, pois, em nenhum documento anterior conseguiu-se uma definição tão representativa dos direitos sexuais e reprodutivos.[26] Ainda que as Declarações e os Programas e Plataformas de Ação das Conferencias Internacionais não tenham caráter vinculante como os tratados e convenções de direitos humanos, são compromissos morais dos Estados signatários, que resultam em pressões externas para que se cumpra o acordo e, eventualmente um constrangimento político para o Estado em caso de descumprimento.[27] Sobre os documentos internacionais vinculantes, em 1979, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) fundamentou-se na dupla obrigação de eliminar a discriminação e assegurar a igualdade.[28]O artigo 16 da CEDAW dispõe que os Estados-partes adotarão todas as medidas adequadas para eliminar a discriminação contra a mulher em todos os assuntos relativos ao casamento e às relações familiares e, em particular, com base na igualdade entre homens e mulheres, assegurarão os mesmos direitos e responsabilidades como pais, qualquer que seja seu estado civil, em matérias pertinentes aos filhos.[29]A premissa básica da Convenção é a de que a mulher deve ter a mesma liberdade que o homem para fazer escolhas tanto na vida pública quanto na vida privada. E pela primeira vez, os Estados se obrigam a tomar medidas para a eliminação dessa discriminação em todos os âmbitos da sociedade.[30] Na II Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena em 1993, é afirmado que os direitos humanos das mulheres e meninas são inalienáveis e constituem parte integral e indivisível dos direitos humanos, recomendando aos Estados a intensificação dos esforços na proteção e promoção de direitos com o objetivo de reduzir e eliminar as violações no campo da sexualidade e reprodução.[31] Em Viena, a sexualidade das mulheres foi pela primeira vez invocada. Nos parágrafos 18 e 38 do programa de ação consolidam o entendimento de que os Direitos Humanos das mulheres e das crianças do sexo feminino constituem uma parte inalienável, integral e indivisível dos Direitos Humanos universais. A participação plena das mulheres, em condições de igualdade, na vida política, civil, econômica, social e cultural, aos níveis nacional, regional e internacional, bem como a erradicação de todas as formas de discriminação com base no sexo, constituem objetivos prioritários da comunidade internacional. Isto pode ser alcançado através de medidas de caráter legislativo e da ação nacional e cooperação internacional em áreas tais como o desenvolvimento socioeconômico, a educação, a maternidade segura e os cuidados de saúde, e a assistência social. O artigo 38 aponta a importância de se trabalhar no sentido da eliminação da violência contra as mulheres na vida pública e privada, da eliminação de certas práticas tradicionais ou consuetudinárias, preconceitos culturais e extremismos religiosos. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos insta os Estados a combaterem a violência contra as mulheres em conformidade com as disposições contidas na declaração.[32] Tanto a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher quanto a Conferência de Viena, recorrem aos Estados para a eliminação da violência baseada no gênero e todas as formas de abuso e exploração sexual.[33] A Declaração Sobre a Eliminação da Violência Contra a Mulher, adotada em 1993, conceituou no artigo 2º as diversas formas de violência contra as mulheres abrange, embora não se limite aos mesmos, a violência física, sexual e psicológica ocorrida no seio da família, praticada na comunidade em geral ou tolerada pelo Estado, onde quer que ocorra. Essa declaração serviu de base para Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), aprovada pela OEA em 1994, cujo conteúdo é juridicamente vinculante aos países que a retificaram.[34]A Convenção de Belém do Pará é o primeiro tratado internacional a reconhecer, de forma enfática, a violência contra a mulher e alega que esta constitui uma violação dos direitos e liberdades fundamentais e destrói ou compromete o gozo, por parte das mulheres, de tais direitos e liberdades.[35] Os direitos sexuais apesar de terem conquistado relevância nos debates internacionais como parte indivisível dos direitos humanos ainda são tratados de forma incipiente no âmbito jurídico.[36]O conceito de direitos sexuais ainda não tem o reconhecimento na sua extensão ideal. Esses direitos, quando mencionados, são feitos de forma conjunta, “direitos sexuais e reprodutivos”; a crítica a esta forma de abordagem se dá pelo fato de que ela restringe a formulação dos direitos dos direitos sexuais, e de fato, há um atraso na discussão e dificuldades para a formulação positiva, autônoma e mais ampla dos direitos sexuais.[37]O desenvolvimento do conceito de direitos sexuais só foi possível de forma negativa, enunciando o direito de não ser objeto de abuso ou exploração e não em um sentido positivo emancipatório.[38] A noção de saúde sexual está inserida muitas vezes no conceito de saúde reprodutiva. Esses conceitos devem ser diferenciados, uma vez que sexualidade e reprodução dizem respeito a representações distintas e não são mais indissociáveis como prescrevia o modelo de sexualidade baseado no binômio “sexualidade-procriação”. Ao utilizar a mesma terminologia para ambas as concepções, há uma maximização da esfera reprodutiva em detrimento da esfera sexual, quando o objetivo é analisar essas duas esferas, em especial a sexualidade, que é omitida nos contextos jurídicos e políticos.[39] A Sessão Especial da Assembleia Geral da ONU, realizada em Nova York em junho de 2000, tinha como objetivo avaliar e reafirmar os compromissos assumidos nas Conferências do Cairo e de Pequim (Pequim + 5) e revelou a dificuldade do pleno reconhecimento dos direitos sexuais. Nessa ocasião, apesar das propostas, não foi reconhecida a orientação sexual como base de discriminação, tampouco se tratou do estupro marital, que demonstra a impunidade da violência doméstica.[40] Os direitos sexuais e reprodutivos estão amplamente previstos em documentos internacionais, sendo o Brasil signatário de diversos deles, que constituem importantes recomendações para os Estados na condução de políticas públicas, além de estabelecer um comprometimento moral entre os Estados.O Direito absorveu alguns princípios éticos, judicializando-os e estabeleceu outros, exigindo a observância deles por parte dos juristas quando da criação e aplicação das normas jurídicas, o que inclui também o comprometimento estatal. A Constituição impõe a redução das desigualdades e o respeito à dignidade humana, como determinantes na atuação político-social do Estado Democrático de Direito. Essa leitura, contudo, tem sua eficácia atrelada às interpretações e instituições políticas que se faz a partir do texto constitucional.[41] O desenvolvimento e afirmação dos direitos reprodutivos no Brasil O desenvolvimento dos direitos reprodutivos no Brasil é marcado por uma cultura religiosa, predominantemente cristã, que ao longo da história transpõe para as normas jurídicas e sociais, seus dogmas religiosos, como a obediência e servidão da mulher em relação ao homem e a procriação de tantos filhos quantos Deus e a natureza determinassem. No século XX a legislação acolheu o direito de proteção da maternidade e ao trabalho da mulher introduzido na Consolidação das Leis do Trabalho, em 1940. O Código Penal proíbe o aborto, mas excepciona em caso de gravidez resultante de estupro e risco de morte para a mãe. O Código Civil de 1916, revogado em 2002, possuí artigos que colocavam a mulher em situação desigual em relação ao homem, que detinha o pátrio-poder e a guarda dos filhos em favor da mãe era mantida e protegida desde que esta fosse “honesta”, e impunha o dever de alimentar exclusivamente ao homem, reafirmando no plano legal, o papel da mulher como cuidadora e do homem como provedor da família.[42] No início da Assembleia Constituinte, a “Carta da Mulher Brasileira aos Constituintes”, elaborada em 1986, buscava a garantia de a mulher decidir sobre o seu próprio corpo, pelo direito à livre opção pela maternidade, assistência médica tanto no pré-natal quanto na interrupção da gravidez. Em contrapartida à articulação feminista, parlamentares contrários ao aborto, defenderam que devia constar a definição constitucional do direito à vida desde a concepção, o que não se realizou no texto final.[43] A Constituição de 1988 encerrou o longo período autoritário instituído pelo golpe de 64, espelhando, portanto, as particularidades do processo de democratização que teve início no final da década de 70. Assim como em outros países latino-americanos, a luta pelo reestabelecimento dos direitos políticos clássicos foi conjugada com as outras demandas por uma agenda mais ampla de direitos humanos, trazida pela ação de novos sujeitos políticos que se organizaram em torno das problemáticas de gênero e sexualidade, e dessa maneira, além dos direitos sexuais também foram trazidos à tona os direitos reprodutivos das mulheres e os direitos de diferentes minorias sexuais.[44] As articulações promovidas por militantes e organizações feministas na década de 70, em conjunto com movimentações mais amplas pela democratização do país, desempenharam um papel crucial na inscrição de demandas pela igualdade de gênero na estrutura jurídico-normativa do país. Mediante essas articulações foram trazidas à cena política discussões sobre a complexidade das relações de gênero e, em especial, sobre a relevância da sexualidade e da reprodução como vitais para a autonomia das mulheres em relação a decisões que envolvam seus próprios corpos.[45] A Constituição Federal de 1988 é o marco politico institucional e jurídico que reordenou todo o sistema brasileiro e impôs a adequação de todas as normas internas aos parâmetros dos direitos humanos e é comprometida com os direito humanos e implementação de compromissos firmados nos tratados internacionais e é, portanto, ponto fundamental a partir do qual a sexualidade e a reprodução se instituíram como campo legítimo de exercício de direitos no Brasil. A existência de diferentes movimentos sociais que buscaram transportar para a esfera pública questões que antes eram consideradas de âmbito privado trouxe, em alguns casos, transformações expressivas como a formulação da equidade de gênero como direito constitucional e o reconhecimento legal da existência de diversas formas de família, reflexos claros da força de grupos feministas e de mulheres.[46] Essa movimentação interna articulava-se a um quadro internacional mais amplo, como a instituição por parte das Nações Unidas do ano de 1975 como o “Ano Internacional da Mulher” permitindo maior legitimidade e visibilidade aos grupos de mulheres (Movimento Feminino Pela Anistia, Brasil Mulher, Nós Mulheres). A década de 1980 foi marcada pelo destaque para a temática da violência contra a mulher e da saúde da mulher. Em 1985, foi criado o Conselho Nacional de Direitos da Mulher e a primeira Delegacia Especial de Atendimento à Mulher em São Paulo, que depois se estenderia para todo país.[47] Na década de 1990, procedeu-se no Brasil uma extensa produção normativa voltada para a promoção dos direitos constitucionais, com avanço significativo para os direitos das mulheres e para os direitos reprodutivos. Em 1993 o Programa de Saúde Materno-Infantil foi substituído pelo Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), que superou o binômio do programa anterior trazendo uma visão mais integrada da saúde, enfatizando a necessidade de atender a mulher em todas as fases da vida e destacando a importância do acesso à informação e planejamento familiar.[48] Leis posteriores ampliaram o direito à licença maternidade, a criminalização do assedio sexual e o afastamento do agressor em caso de violência doméstica, contudo, apenas em 2002 foi reconhecido o direito à licença maternidade em casos de adoção ou guarda de crianças, evidenciando os pressupostos “biologizantes” que ainda permeiam os direitos reprodutivos.[49]O avanço dos debates e da legislação entre 1985 e 1994 permitiu que o Brasil levasse para a Conferência do Cairo em 1994, e de Pequim em 1995, uma linguagem avançada e bem construída dos direitos reprodutivos.[50] Segundo o artigo 226 § 7º da CF/88, a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado e fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. A Lei 9.263/96 regulamentou o planejamento familiar, definido como um conjunto de ações de regulação de fecundidade que garante direitos iguais de constituição, limitação ou aumento de prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal, e para tanto, o acesso igualitário a informação, meios, métodos e técnicas disponíveis. Em dezembro de 2004 foi lançado o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, que era claramente ancorado nos compromissos firmados na Conferência do Cairo e na Conferência de Pequim.[51] A legalização do aborto permanece como ponto nevrálgico na construção dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, a legislação vigente ainda considera o aborto como crime, albergando poucas exceções.[52] Sobre o aborto, inicialmente, os movimentos feministas e de mulheres apelaram aos organismos regionais e internacionais de direitos humanos e denunciaram os Estados por seu descumprimento da norma vigente sobre aborto e pela falta de atenção às mulheres nesses casos.[53] Alguns exemplos de casos, em âmbito internacional, que foram favoráveis às mulheres são a decisão do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas em 2005, que decidiu contra o Estado Peruano por não garantir o acesso ao aborto em um caso de anencefalia; o caso Paulina no México, resolvido em 2007 através de um acordo com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Estado Mexicano por não garantir o direito ao aborto em caso de violação e a decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU contra a Argentina em 2001, por não prover acesso ao aborto no caso de uma mulher jovem com um grau de deficiência mental que tinha sido violada. Esses casos se tornaram referencias na defesa legal do aborto na América Latina, a e as decisões constituem pontos de referência fundamental para toda demanda relacionada ao direito ao aborto na região.[54] A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), constitui um marco importante no que se refere ao aborto, à saúde e aos direitos reprodutivos no âmbito internacional dos direitos humanos. O Programa de Ação do Cairo é extenso e contém mais de duzentas recomendações, com quinze objetivos nas áreas de saúde, desenvolvimento e bem-estar social. Uma característica essencial do programa é a recomendação de proporcionar atenção integral à saúde reprodutiva que abarque inclusive o aborto, este programa definiu, pela primeira vez, aspectos fundamentais sobre saúde reprodutiva em um documento normativo internacional.[55]A Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a mulher (CEDAW) não se refere expressamente ao aborto, mas chama os Estados partes à adotar medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher na esfera de atenção médica, o que inclui o planejamento familiar e também as leis penais sobre o aborto, que tanto ameaçam a saúde da mulher.[56] O acesso das mulheres ao aborto sob certas circunstâncias está ganhando reconhecimento como um direito humano, na medida em que este direito nada mais é do que o direito de ser protegida contra abortos perigosos, o que se entende como um aspecto do direito das mulheres à saúde e à vida.[57] No direito interno, nos últimos anos, houve reformas que liberalizaram, ainda que em distintos graus e na maioria dos casos de maneira limitada, as regulações sobre aborto na Colômbia, México, Brasil, Argentina e Uruguai. No Brasil, em 2004, o Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (ANIS) apresentou ao Supremo Tribunal Federal uma ADPF que conduziu à legalização do aborto em casos de anencefalia em 2012.[58] Na Colômbia, em abril de 2005, a organização Women’s Link Worldwide, entrou com uma ação de inconstitucionalidade da lei (Código Penal) que penalizava completamente o aborto na Colômbia. Essa ação se fundamentava em grande medida no direito comparado, no direito internacional dos direitos humanos e em argumentos de saúde pública e tinha como meta principal descriminalizar o aborto em todas as circunstâncias.Em maio de 2006, a Corte, por meio da sentença C-355, concluiu que a norma que penalizava o aborto em qualquer circunstância impunha às mulheres uma carga desproporcional, que implicava um desconhecimento de direitos fundamentais reconhecidos na Constituição e em tratados internacionais sobre direitos humanos.[59]Referida ação de inconstitucionalidade levou à liberalização da lei penal sobre o aborto em casos de violação, risco de vida ou saúde da mulher e malformações fetais severas.[60] Os direitos humanos são incorporados nas leis constitucionais como direitos fundamentais e contam com proteções e garantias específicas e prioritárias, como as cláusulas pétreas. Nesse sentido, é importante a definição dos direitos reprodutivos como direitos humanos e para a sua efetivação é fundamental identificar os princípios e dispositivos legais que possam dar consistência normativa e aplicação adequada aos documentos internacionais de direitos humanos sobre o tema, no contexto social e jurídico local.[61] O principal objetivo é reduzir violações à autonomia pessoal, integridade física e psicológica e garantir os meios necessários para o ser humano alcançar seu bem estar sexual e reprodutivo. O primeiro passo é identificar no ordenamento jurídico nacional instituições, instrumentos e mecanismos que permitam a efetivação dos direitos reprodutivos. Essa identificação deve destacar dispositivos nas leis constitucionais, penais, civis e trabalhistas e também nas politicas publicas e aplica-las nas perspectivas dos direitos humanos.[62] A lei constitucional brasileira estabelece expressamente o direito à vida (não apenas no seu sentido biológico), o direito à igualdade e à liberdade, assim a Constituição de 1988 estabelece direitos e garantias relativos ao exercício dos direitos reprodutivos que deverão ser contemplados nos vários campos do direito.[63] Os direitos sexuais e reprodutivos no habeas corpus124.306 Ao consultar o site do Supremo Tribunal Federal, na aba jurisprudência, é possível pesquisar o termo “direitos sexuais e reprodutivos”. Esse termo traz apenas dois resultados, a ADPF 54 e o HC 124.306/RJ. Para os fins deste trabalho, analisaremos os fundamentos da decisão do Habeas Corpus 124.306/RJ e a relação com os direitos sexuais e reprodutivos. No Habeas Corpus 124.306/RJ julgado em 29 de novembro de 2016 no qual foi relator o ministro Marco Aurélio. A expressão “direitos sexuais e reprodutivos” consta onze vezes durante o inteiro teor desse julgado e aparece, inclusive, já na ementa do caso.[64] Ainda na ementa o ministro aponta a necessidade de interpretar conforme a Constituição os arts. 124 a 126 do Código Penal, que tipificam o crime de aborto, para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre, pois, a criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher. Acrescenta a isso o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres que não te acesso a médicos e clínicas privadas e acabam em clínicas clandestinas realizando o aborto de forma insegura. A tipificação penal viola também o princípio da proporcionalidade. É possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas. A criminalização do aborto é uma medida desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais superiores aos seus benefícios, como problemas de saúde pública, mortes e encarceramento.[65] No acórdão, um dos argumentos trazidos pelo ministro Roberto Barroso, redator do acórdão, é a violação a direitos fundamentais das mulheres. “Os direitos fundamentais vinculam todos os Poderes estatais, representam uma abertura do sistema jurídico perante o sistema moral e funcionam como uma reserva mínima de justiça assegurada a todas as pessoas. Deles resultam certos deveres abstenção e de atuação por parte do Estado e da sociedade”.[66] É dominante no mundo democrático a percepção de que a criminalização da interrupção voluntária da gestação atinge gravemente os direitos fundamentais das mulheres com reflexos na dignidade humana. Argumenta o ministro que ninguém em sã consciência suporá que um aborto é realizado por prazer ou diletantismo e que o Estado não precisa tornar a vida da mulher pior processando-a criminalmente. São elencados alguns direitos fundamentais afetados pela criminalização do aborto como a violação à autonomia da mulher, violação aos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, violação à igualdade de gênero, discriminação social e impacto desproporcional sobre mulheres pobres. O argumento da violação à autonomia da mulher guarda relação direta com os direitos sexuais e reprodutivos. A criminalização viola o núcleo essencial da liberdade individual, protegida pelo princípio da dignidade humana, disposta no artigo 1°, III da Constituição de 1988. A autonomia expressa a autodeterminação, o direito de fazerem suas escolhas existenciais e tomarem suas próprias decisões morais a propósito do rumo de sua vida e quando se trate de uma mulher, um aspecto central de sua autonomia é o poder de controlar o próprio corpo e de tomar as decisões a ele relacionadas, inclusive a de cessar ou não uma gravidez. E questiona-se, como pode o Estado impor a uma mulher, nas semanas iniciais da gestação, que a leve a termo, como se tratasse de um útero a serviço da sociedade, e não de uma pessoa autônoma, no gozo de plena capacidade de ser, pensar e viver a própria vida? [67] A criminalização afeta a integridade física e psíquica da mulher. O artigo 5° caput e inciso III da Constituição protege o direito à integridade psicofísica contra interferências indevidas e lesões aos corpos e mentes. A integridade física é abalada porque é o corpo da mulher que sofrerá as transformações, riscos e consequências da gestação. A integridade psíquica é afetada pela assunção de uma obrigação para toda a vida, que exige renúncia, dedicação e comprometimento profundo. O que seria uma bênção se decorresse de vontade própria, pode se transformar em provação quando decorra de uma imposição heterônoma.[68]Gerar um filho por determinação do direito penal constitui grave violação à integridade física e psíquica de uma mulher, o que, por consequência, conflita com o que dispõe a legislação internacional sobre direitos humanos, que protege o direito dos indivíduos em decidir livremente sobre a reprodução, planejamento familiar e o número e espaçamento dos filhos. Sobre a violação aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, o ministro Roberto Barroso argumenta que a criminalização viola, também, os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que incluem o direito de decidirsobre se e quando deseja ter filhos, sem discriminação, coerção eviolência, bem como de obter o maior grau possível de saúde sexual ereprodutiva. A sexualidade feminina, ao lado dos direitos reprodutivos,atravessou milênios de opressão. O direito das mulheres a uma vidasexual ativa e prazerosa, ainda é objeto de tabus, discriminações e preconceitos, parte dessas disfunções é fundamentada historicamente no papel das mulheres no processo reprodutivo. Mas justamente porque à mulher cabe o ônus da gravidez, sua vontade e seus direitos devem ser protegidos com maior intensidade.[69] A Conferência Internacional de População e Desenvolvimento e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em 1995, em Pequim desenvolveram a ideia de liberdade sexual feminina em sentido positivo e emancipatório. Nesse sentido, Roberto Barroso destaca o §73 do relatório da Conferência do Cairo que define direitos sexuais e reprodutivos como o direito de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre a sua reprodução livre de coerção e discriminação. O tratamento penal dado pelo Código Penal de 1940 afeta a capacidade de autodeterminação reprodutiva da mulher, ao retirar dela a possibilidade de decidir, sem coerção, sobre a maternidade, sendo obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada além de prejudicar sua saúde reprodutiva, aumentando os índices de mortalidade materna e outras complicações relacionadas à falta de acesso à assistência de saúde adequada.[70] A busca da igualdade de gênero também é uma preocupação internacional dentro dos direitos sexuais e reprodutivos. Essa temática também integrou o voto do ministro Roberto Barroso no julgamento do HC 124.306. Argumentou que a histórica posição de subordinação das mulheres em relação aos homens institucionalizou a desigualdade socioeconômica e promoveu visões excludentes, discriminatórias e estereotipadas da identidade feminina e do seu papel social. Exemplo disso é a visão idealizada em torno da experiência da maternidade. Na medida em que é a mulher que suporta o ônus integral da gravidez, e que o homem não engravida, somente haverá igualdade plena se a ela for reconhecido o direito de decidir acerca da sua manutenção ou não. O acórdão abordou também o impacto da descriminalização sobre as mulheres pobres. A pobreza e desigualdade social é um obste para o exercício integral dos direitos sexuais e reprodutivos, pois, as politicas públicas de promoção a esses direitos demandam recursos estatais e, via de regra, as mulheres pobres não têm acesso a meios alternativos de promoção a esses direitos. Quem mais sofre com a criminalização do aborto são as mulheres pobres, que recorrem a clínicas clandestinas enquanto as mulheres com recursos financeiros recorrem a clínicas particulares. Essa problemática foi apontada pelo relator do caso, “a tipificação penal produz também discriminação social, já que prejudica, de forma desproporcional, as mulheres pobres, que não têm acesso a médicos e clínicas particulares, nem podem se valer do sistema público de saúde para realizar o procedimento abortivo”.[71]Ao criminalizar o aborto o Estado retira da mulher a possibilidade de submissão a um procedimento médico seguro. Em muitos casos, mulheres pobres precisam recorrer a clínicas clandestinas, sem qualquer infraestrutura ou a procedimentos precários que lhes oferecem elevados riscos de lesões, mutilações e óbito.[72] A criminalização da interrupção da gestação no primeiro trimestre vulnera o núcleo essencial de um conjunto de direitos fundamentais da mulher. E afeta a quantidade de abortos seguros e o número de mulheres que tem complicações de saúde ou que morrem devido à realização do procedimento. É preciso verificar se há meio alternativo à criminalização que proteja igualmente o direito à vida do nascituro, mas que produza menor restrição aos direitos das mulheres. A criminalização do aborto viola a autonomia, a integridade física e psíquica e os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, a igualdade de gênero, e produz impacto discriminatório sobre as mulheres pobres.[73] A tese trazida pelo ministro Roberto Barroso é a de que a tipificação penal do aborto produz um grau elevado de restrição a direitos fundamentais das mulheres. E confere uma proteção deficiente aos direitos sexuais e reprodutivos com reflexos sobre a igualdade de gênero e impacto desproporcional sobre as mulheres mais pobres. A criminalização da mulher que deseja abortar gera custos sociais e para o sistema de saúde, que decorrem da necessidade de a mulher se submeter a procedimentos inseguros, com aumento da morbidade e da letalidade. Em seu voto, a ministra Rosa Weber reconheceu que o aborto sob a perspectiva constitucional no Brasil exige regulamentação jurídica que seja, ao mesmo tempo, conforme com os direitos do nascituro bem como em harmonia com o direito à liberdade e autonomia individual das mulheres, as quais devem ter seus direitos à autonomia reprodutiva e sexual, a não discriminação indireta de gênero tutelados.[74] Diante disso, a Corte não conheceu da impetração, mas concedeu a ordem, de ofício, nos termos do voto do Senhor Ministro Luís Roberto Barroso, Presidente e Redator para o acórdão, vencido o Senhor Ministro Marco Aurélio, Relator, que a concedia. Nota-se que os direitos reprodutivos estão largamente positivados no âmbito internacional; contudo, os direitos sexuais ainda precisam de maior atenção por parte de juristas e dos Estados, pois não há um conceito emancipatório de direitos sexuais, mas ainda uma mera referência a não ser objeto de violação - o que é bastante relevante no campo dos direitos humanos - entretanto, é preciso superar o conceito negativo de direitos sexuais e formular um conceito alargado, que abarque a proteção contra violações, mas também que garanta o exercício da sexualidade efetivamente como um direito humano, que contribua para uma vida plena e digna. LARISSA TOMAZONI Mestranda em Direito pelo Uninter Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Autônomo do Brasil – Unibrasil Pesquisadora do Núcleo de Estudos Filosóficos (NEFIL/UFPR) e do Grupo de estudos Jurisdição Constitucional Comparada: método, modelos e diálogos (Uninter) Advogada ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ BARBOZA Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade do Paraná Advogada Professora do programa de mestrado em Direito do Uninter e do departamento de Direito Público da UFPR REFERÊNCIAS ALVES, J. A. Lindgren. A Arquitetura Internacional dos Direitos Humanos. São Paulo: FTD, 1997. BRASIL. STF- ADPF 54 - Rel. Min. Marco Aurélio. 12-04-2012. Disponível em:< http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3707334>. Acesso em: 20 jan. 2017. BRASIL. STF- HABEAS CORPUS 124.306 /RJ - Rel. Min. Marco Aurélio. 29-11-2016. Disponível em:< http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=12580345 >. Acesso em: 20 jun. 2017. CARRARA, Sérgio; VIANA, Adriana. Os Direitos Sexuais e Reprodutivos no Brasil a partir da “Constituição Cidadã”. Disponível em: < http://www.clam.org.br/bibliotecadigital/uploads/publicacoes/924_511_direitossexuaisereprodutivosnaconstituicao.pdf> Acesso em: 20 jun. 2016. COLÔMBIA. Corte Constitucional- Sentencia C-355/2006. Disponível em:< http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2006/C-355-06.htm>. Acesso em: 20 jan. 2017. DÍAZ, Margarita; CABRAL, Francisco; SANTOS, Leandro. Os direitos sexuais e direitos reprodutivos. Disponível em: < http://adolescencia.org.br/upl/ckfinder/files/pdf/Os_direitos_sexuais_e_direitos_reprodutivos.pdf> Acesso em 15 jul. 2017. MATTAR, Laura Davis. Reconhecimento jurídico dos direitos sexuais: uma análise comparativa com os direitos reprodutivos. Disponível em: < http://www.producao.usp.br/handle/BDPI/12993> Acesso em: 20 jun. 2017. ONU.Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. 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TOMAZONI, Larissa Ribeiro; GOMES, Eduardo Biacchi.Afirmação histórica dos direitos humanos das mulheres no âmbito das Nações Unidas. Disponível em: < http://revistas.unibrasil.com.br/cadernosdireito/index.php/direito/article/view/847> Acesso em: 16 jul. 2017. VELÉZ, Ana Cristina González; MONSALVE, Viviana, Bohórquez. Estudo de caso da Colômbia: Normas sobre aborto para fazer avançar a agenda do Programa de Ação do Cairo. Disponível em: <http://www.conectas.org/pt/acoes/sur/edicao/19/1000481-estudo-de-caso-da-colombia-normas-sobre-aborto-para-fazer-avancar-a-agenda-do-programa-de-acao-do-cairo > Acesso em: 13 jun. 2017. VENTURA, Miriam. Direitos Reprodutivos no Brasil. 3.ed. Brasília: UNFPA, 2009. [1]Este artigo foi originalmente publicado em: TOMAZONI, Larissa; BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Os direitos sexuais e reprodutivos na ordem jurídica internacional e o habeas corpus 124.306 no Supremo Tribunal Federal. In: PAGLIARINI, Alexandre; CLETO, Vinicius Hsu. Direito e Jurisdições: Interna e Internacional. Curitiba: Intersaberes, 2018. [2]SCHIOCCHET, Taysa. Marcos normativos do direitos sexuais: uma perspectiva emancipatória. In: BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. (Org.) Biodireito e Gênero. Ijuí: Unijuí, 2007.p.61-62. [3]RAMOS, André de Carvalho. Direitos Humanos em juízo. São Paulo: Editora Max Limonad, 2001.p.22. [4]“Na perspectiva geracional dos direitos humanos, os direitos sexuais e reprodutivos abarcam direitos de primeira, segunda, terceira ou, ainda, quarta gerações. Eles incorporam a reivindicação por liberdades e garantias individuais, mas também por direitos sociais (saúde, educação, etc.) e políticas públicas destinadas a determinadas coletividades (com recorte geracional, social, étnico, de gênero, etc.). Os direitos sexuais e reprodutivos obrigam o Estado e terceiros a prestações (obrigações positivas) e, ao mesmo tempo, a abstenções (direitos negativos ou garantias contra a violação de direitos). Abarcam ainda os direitos relacionados ao desenvolvimento de biotecnologias (como aquelas ligadas à reprodução humana medicamente assistida)” SCHIOCCHET, Taysa. Op. cit., p. 82. [5]DÍAZ, Margarita; CABRAL, Francisco; SANTOS, Leandro. Os direitos sexuais e direitos reprodutivos. Disponível em: < http://adolescencia.org.br/upl/ckfinder/files/pdf/Os_direitos_sexuais_e_direitos_reprodutivos.pdf> Acesso em 15 jul. 2017.p.9-10. [6]MATTAR, Laura Davis. Reconhecimento jurídico dos direitos sexuais: uma análise comparativa com os direitos reprodutivos. Disponível em: < http://www.producao.usp.br/handle/BDPI/12993> Acesso em: 20 jun. 2017.p. 61. [7]VENTURA, Miriam. Direitos Reprodutivos no Brasil. 3.ed. Brasília: UNFPA, 2009.p.19. [8]Ibidem, p.20. [9]Ibidem, p.19-20. [10]Ibidem, p.23. [11]Idem. [12]MATTAR, Laura Davis. Op. cit.,p.67. [13]SCHIOCCHET, Taysa. Op. cit.,p.73. [14]DÍAZ, Margarita; CABRAL, Francisco; SANTOS, Leandro. Op. cit.,p.4-5. [15]MATTAR, Laura Davis. Op. cit.,p.63. [16]DÍAZ, Margarita; CABRAL, Francisco; SANTOS, Leandro. Op. cit.,p.4-5. [17]PIOVESAN, Flávia. A mulher e o debate sobre direitos humanos no Brasil. Crítica Jurídica, México, v. 23, p.77-85, 2004.p.78. §18. “Os Direitos do homem das mulheres e das crianças do sexo feminino constituem uma parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais. A participação plena e igual das mulheres na vida política, civil, económica, social e cultural, a nível nacional, regional e internacional, e a irradicação de todas as formas de discriminação com base no sexo constituem objetivos prioritários da comunidade internacional”. In: Conferência de Direitos Humanos - Viena – 1993 Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/viena/viena.htmlAcesso em: 22 jul. 2017 [18]SCHIOCCHET, Taysa. Op. cit.,p.74-75. [19]DÍAZ, Margarita; CABRAL, Francisco; SANTOS, Leandro. Op. cit.,p.4-5. [20]TOMAZONI, Larissa Ribeiro; GOMES, Eduardo Biacchi.Afirmação histórica dos direitos humanos das mulheres no âmbito das Nações Unidas. Disponível em: < http://revistas.unibrasil.com.br/cadernosdireito/index.php/direito/article/view/847> Acesso em: 16 jul. 2017.p.15. [21]VENTURA, Miriam. Op. cit.,p.22-23. [22]SCHIOCCHET, Taysa. Op. cit.,p.20. [23]TOMAZONI, Larissa Ribeiro; GOMES, Eduardo BiacchiOp. cit.,p.15. [24]MATTAR, Laura Davis. Op. cit.,p.69. [25]TOMAZONI, Larissa Ribeiro; GOMES, Eduardo Biacchi.Op. cit.,p.15. [26]SCHIOCCHET, Taysa. Op. cit.,p.75-78. [27]MATTAR, Laura Davis. Op. cit.,p.62. [28]Ibidem, p.68. [29]ONU.Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. Disponível em: < http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/discrimulher.htm> Acesso em: 15 jul. 2017. [30]ALVES, J. A. Lindgren. A Arquitetura Internacional dos Direitos Humanos. São Paulo: FTD, 1997.p.114. [31]VENTURA, Miriam. Op. cit.,p.25.
[33]MATTAR, Laura Davis. Op. cit.,p.68-69. [34]Ibidem, p.69.
[36]SCHIOCCHET, Taysa. Op. cit.,p.63. [37]VENTURA, Miriam. Op. cit.,p.21. [38]MATTAR, Laura Davis. Op. cit.,p.64. [39]SCHIOCCHET, Taysa. Op. cit.,p.78. [40]Ibidem, p.80. [41]Ibidem, p.83-85. [42]VENTURA, Miriam. Op. cit.,p.26-27. [43]CARRARA, Sérgio; VIANA, Adriana. Os Direitos Sexuais e Reprodutivos no Brasil a partir da “Constituição Cidadã”. Disponível em: < http://www.clam.org.br/bibliotecadigital/uploads/publicacoes/924_511_direitossexuaisereprodutivosnaconstituicao.pdf> Acesso em: 20 jun. 2016.p.339. [44]Ibidem, p.334. [45]Ibidem, p.335. [46]Ibidem, p.334-335. [47]Ibidem, p.336. [48]Ibidem, p.30-337. [49]Ibidem, p.337. [50]VENTURA, Miriam. Op. cit.,p.30. [51]CARRARA, Sérgio; VIANA, Adriana. Os Op. cit.,p.337-340. [52]Ibidem, p.339. [53]RUIBAL, Alba. Feminismo frente a fundamentos religiosos: mobilização e contramobilização em torno dos direitos reprodutivos na América Latina. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n14/0103-3352-rbcpol-14-00111.pdf> Acesso em: 20 jun. 2016. [54]Idem. [55]Idem. [56]SIEGEL, Reva. La dignidad y el debate del aborto. Disponível: < https://www.law.yale.edu/system/files/documents/pdf/Student_Organizations/SELA09_Siegel_Sp_PV_signed.pdf> Acesso em: 13 jun. 2017. [57]Idem. [58]BRASIL. STF- ADPF 54 - Rel. Min. Marco Aurélio. 12-04-2012. Disponível em:< http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3707334>. Acesso em: 20 jan. 2017. [59]VELÉZ, Ana Cristina González; MONSALVE, Viviana, Bohórquez. Estudo de caso da Colômbia: Normas sobre aborto para fazer avançar a agenda do Programa de Ação do Cairo. Disponível em: <http://www.conectas.org/pt/acoes/sur/edicao/19/1000481-estudo-de-caso-da-colombia-normas-sobre-aborto-para-fazer-avancar-a-agenda-do-programa-de-acao-do-cairo > Acesso em: 13 jun. 2017.p. [60]COLÔMBIA. Corte Constitucional- Sentencia C-355/2006. Disponível em:< http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2006/C-355-06.htm>. Acesso em: 20 jan. 2017. [61]VENTURA, Miriam. Op. cit.,p.56. [62]Idem. [63]Ibidem, p.57-58. [64]Ementa: DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PARA SUA DECRETAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO TIPO PENAL DO ABORTO NO CASO DE INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GESTAÇÃO NO PRIMEIRO TRIMESTRE. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.1. O habeas corpus não é cabível na hipótese. Todavia, é o caso de concessão da ordem de ofício, para o fim de desconstituir a prisão preventiva, com base em duas ordens de fundamentos.4. A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria (grifo nosso) In: BRASIL. STF- HABEAS CORPUS 124.306 /RJ - Rel. Min. Marco Aurélio. 29-11-2016. Disponível em:< http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=12580345 >. Acesso em: 20 jun. 2017. [65]Idem. [66]Idem. [67]Idem. [68]Idem. [69]Idem. [70]Idem. [71]Idem. [72]Idem. [73]Nessa toada o ministro aponta a necessidade de políticas publicas voltadas aos direitos reprodutivos e redução da desigualdade econômica e social: (...) o Estado deve atuar sobre os fatores econômicos e sociais que dão causa à gravidez indesejada ou que pressionam as mulheres a abortar. As duas razões mais comumente invocadas para o aborto são a impossibilidade de custear a criação dos filhos e a drástica mudança na vida da mãe (que a faria, e.g., perder oportunidades de carreira). Nessas situações, é importante a existência de uma rede de apoio à grávida e à sua família, como o acesso à creche e o direito à assistência social. Ademais, parcela das gestações não programadas está relacionada à falta de informação e de acesso a métodos contraceptivos. Isso pode ser revertido, por exemplo, com programas de planejamento familiar, com a distribuição gratuita de anticoncepcionais e assistência especializada à gestante e educação sexual. Idem. [74]Idem. Comments are closed.
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