Michael Sandel em sua obra denominada “O que o dinheiro não compra?: Os limites morais do mercado”, faz uma excelente reflexão sobre a era do triunfalismo de mercado e a lógica econômica em todos os setores da sociedade. Uma de suas primeiras indagações aduz: ‘’ há coisas que o dinheiro não compra, mas atualmente, não muitas. Hoje, quase tudo está à venda’’[1] Nesse sentido, o autor demonstra diversas situações nas quais com poder aquisitivo é possível obter praticamente todos os benefícios possíveis, como exemplos utiliza os presos no sistema carcerário em Santa Ana na Califórnia, no qual aqueles que possuem condições de arcar por melhores acomodações e limpeza em suas celas podem obter o serviço pagando aproximadamente US$ 82 dólares por noite[2]. Nos congestionamentos de trânsito, algumas cidades tem possibilitado utilizar as pistas reservadas pagando taxas de US$ 8 dólares nas horas de maior movimento. Alguns casais indianos que almejam ter filhos, cada dia mais buscam na Índia barrigas de aluguel no qual o valor estipulado é de US$ 6.250 dólares. Na África do Sul, foi autorizada a caça de animais ameaçados de extinção como o rinoceronte negro por aproximadamente US$ 150.000 dólares[3]. Os exemplos são inúmeros, desde garantir lugares privilegiados em filas, direito a lançar poluentes na atmosfera, matrícula dos filhos em universidades de prestígio, servir como cobaia para experimentos científicos e medicamentos, sendo questões que refletem na sociedade em sua totalidade bem como na aplicação processual penal, a partir do momento que a busca por eficiência e celeridade começa a ser discutida como necessidade no momento atual. Nesse sentido aduz Sandel[4]: ‘’ vivemos numa época em que quase tudo pode ser comprado e vendido. Nas três últimas décadas, os mercados e os valores de mercado passaram a governar nossa vida como nunca. Não chegamos a essa situação por escolha deliberada. É quase como se a coisa tivesse se abatido sobre nós’’. Dessa forma, o autor aborda a era do triunfalismo do mercado denotando todas as reflexões de uma sociedade guiada pelos ditames econômicos, no qual a crise financeira demonstrou a potencialidade dos mercados de gerir os riscos com eficácia e eficiência, mas não somente isso, demonstrou que os mercados não possuem vinculação com a moral ou preocupação com essas questões, ensejando discussões atuais do mundo globalizado e demonstrando a ausência de limites na expansão negocial, qualquer que seja o interesse e área. Essas questões tornam-se demasiadamente preocupantes quando refletimos sobre a conjuntura da sociedade atual, em seus aspectos econômicos, políticos e sociais, pois caminhando a sociedade rumo onde tudo está à venda, a vida obviamente privilegia aqueles que possuem bens aquisitivos contribuindo para a potencialização da desigualdade social e o aumento da corrupção[5]. Nesse sentido: ‘’ os economistas costumam partir do princípio de que os mercados são inertes, de que não afetam os bens neles trocados. Mas não é verdade. Os mercados deixam sua marca. Às vezes, os valores de mercado são responsáveis pelo descarte de princípios que, não vinculados aos mercados, devem ser respeitados’’[6]. Dessa forma, vislumbra-se os problemas decorrentes de uma sociedade pautada pelos ditames do mercado, na busca incessante pelos lucros e eficiência sem refletir sobre as consequências dessas questões. Torna-se fundamental portanto, analisar os limites morais do mercado dentro da conjuntura atual para a atribuição de valor aos bens sociais. No ordenamento jurídico brasileiro um instituto alvo de diversas discussões doutrinárias é a colaboração premiada e seus reflexos no direito processual penal. A busca pela eficiência e celeridade processual demonstram a busca pela resolução prática em diversos casos concretos, primordialmente na esfera econômica, demonstrando a influência do mercado em questões atinentes a persecução criminal. O ordenamento jurídico brasileiro cada dia mais prevê dispositivos e leis que abrangem de forma mais ampla a negociação no processo penal. A colaboração premiada possui previsão nas Leis nº 9.034/95, revogada posteriormente pela Lei nº 12.850/2013 (Lei do Crime Organizado), Lei nº 9.080/1995 referente aos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, crimes contra ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, Lei nº 9.613/1998 referente aos crimes de lavagem de dinheiro e ocultação de bens, direitos e valores, Lei nº 9.807/99 referente a proteção de vítimas e testemunhas que tenham colaborado com o processo penal, Lei nº 10.149/2000, no que tange a infrações contra ordem econômica e Lei nº 11.343/2006, relativa a Lei de drogas[7]. Conforme Alexandre Morais da Rosa[8]: ‘’o movimento da análise econômica do direito é polifônico, com muitas escolas, abordagens, dissidências. Propõe a leitura do direito para além da razão abstrata e legal, mediante a abordagem interdisciplinar, com protagonismo da economia’’. Observa-se nesse sentido a interdisciplinaridade do direito e da economia e sua relação no contexto atual, bem como a necessidade de ampla reflexão sobre o tema. No que tange o instituto da colaboração a mesma é: ‘’a troca de informações qualificadas e benefícios processuais ou penais pelo acusado e o Estado, na linha do mercado da barganha’’[9]. As negociações possuem um procedimento específico conforme disposição da lei nº 12.850/2013, no qual aduz sobre os requisitos, procedimentos, fases de negociação, recebimento dos benefícios e prêmios oriundos das colaborações. Demonstra-se nesse sentido a expansão da justiça criminal negocial no país seguindo os ditames econômicos, almejando a eficiência e celeridade processual sendo fundamental refletir sobre seus impactos no contexto social atual. Esse modelo possui influência no sistema de negociação norte americano denominado plea bargainingno qual boa parte dos processos são resolvidos por negociações. Assim ‘’ as bases do common law clássico surgiram das decisões inglesas dos séculos XVII, XVIII e primeira metade do XIX, criando verdadeiro corpo jurisprudencial cristalizado (axiomas fixos, inquestionáveis), pelo qual as bases fundamentais da ordem jurídica eram deduzidas em um sistema racional e lógico, incidindo a metodologia da observação, análise e classificação do material’’[10]. Os efeitos da barganha no processo penal são a redução de casos objetivando a eficiência nos processos de maior complexidade. Na aplicação do plea bargaingnos Estados Unidos, estima-se que aproximadamente 90% dos casos são resolvidos por negociações[11]. O debate sobre a análise econômica do direito e sua aplicação enseja diversas discussões pelas razões expostas, nas quais em demasiados momentos a busca pela celeridade e eficiência processual se contrapõem aos direitos fundamentais conforme preceitua a constituição. Ainda, na perspectiva da análise econômica do direito no entendimento de Richard Posner, preceitua Michelle Brito[12]:
Assim, torna-se fundamental refletir sobre os impactos e influência da economia na persecução criminal, tendo em vista a clara expansão da justiça criminal negocial, não só no nosso país, mas com previsões em diversas legislações do mundo como Espanha, Itália, Estados Unidos, Alemanha, sendo fundamental refletir sobre os impactos sociais nos casos concretos. Como ilustra Casara, um dos problemas do Estado pós democrático é o desaparecimento dos limites e a busca pela eficiência, sendo esse o ponto central de discussão. Nesse entendimento:
Diante do exposto, vislumbra-se a necessidade de refletir sobre os impactos econômicos, a busca pela eficácia e eficiência na persecução criminal, objetivando a aplicação penal dentro dos princípios basilares de um Estado Democrático de direito, pois conforme aduz Sandel: ‘’ não chegamos a essa situação por escolha deliberada. Está na hora de perguntarmos se queremos viver assim’’. Paula Yurie Abiko Graduanda Centro Universitário Franciscano do Paraná – FAE Estagiária do Ministério Público Federal Membro do grupo de pesquisa O mal estar no Direito Modernas Tendências do Sistema Criminal Trial by Jury e Literatura Shakesperiana Membro do International Center for Criminal Studies e da Comissão de Criminologia Crítica do Canal Ciências Criminais Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRITO, Michelle. Delação premiada e decisão penal. Da eficiência à integridade. D’ plácido. 2ª edição. Belo Horizonte. 2017. CASARA, Rubens. Estado Pós Democrático, neo obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Civilização brasileira, Rio de Janeiro, 2017. ROSA, Alexandre Morais. Para entender a delação premiada conforme a teoria dos jogos: Táticas e estratégias do negócio jurídico. Empório Modara. Florianópolis, 2018. SANDEL, Michael. O que o dinheiro não compra, os limites morais do mercado. 8ª edição, tradução: Clóvis Marques. Civilização brasileira, Rio de Janeiro, 2017. [1]SANDEL, Michael. O que o dinheiro não compra, os limites morais do mercado. 8ª edição, tradução: Clóvis Marques. Civilização brasileira, Rio de Janeiro, 2017. p. 9. [2]SANDEL, Michael. O que o dinheiro não compra, os limites morais do mercado. 8ª edição, tradução: Clóvis Marques. Civilização brasileira, Rio de Janeiro, 2017. p. 9. [3]SANDEL, Michael. O que o dinheiro não compra, os limites morais do mercado. 8ª edição, tradução: Clóvis Marques. Civilização brasileira, Rio de Janeiro, 2017. p. 9. [4]SANDEL, Michael. O que o dinheiro não compra, os limites morais do mercado. 8ª edição, tradução: Clóvis Marques. Civilização brasileira, Rio de Janeiro, 2017. p. 11. [5]SANDEL, Michael. O que o dinheiro não compra, os limites morais do mercado. 8ª edição, tradução: Clóvis Marques. Civilização brasileira, Rio de Janeiro, 2017. p. 14. [6]SANDEL, Michael. O que o dinheiro não compra, os limites morais do mercado. 8ª edição, tradução: Clóvis Marques. Civilização brasileira, Rio de Janeiro, 2017. p. 15. [7]BRITO, Michelle. Delação premiada e decisão penal. Da eficiência à integridade. D’ plácido. 2ª edição. Belo Horizonte. 2017. p. 90. [8]ROSA, Alexandre Morais. Para entender a delação premiada conforme a teoria dos jogos: Táticas e estratégias do negócio jurídico. Empório Modara. Florianópolis, 2018. p. 118. [9]ROSA, Alexandre Morais. Para entender a delação premiada conforme a teoria dos jogos: Táticas e estratégias do negócio jurídico. Empório Modara. Florianópolis, 2018. p. 135. [10]ROSA, Alexandre Morais. Para entender a delação premiada conforme a teoria dos jogos: Táticas e estratégias do negócio jurídico. Empório Modara. Florianópolis, 2018. p. 104. [11]ROSA, Alexandre Morais. Para entender a delação premiada conforme a teoria dos jogos: Táticas e estratégias do negócio jurídico. Empório Modara. Florianópolis, 2018. p. 123. [12]BRITO, Michelle. Delação premiada e decisão penal. Da eficiência à integridade. D’ plácido. 2ª edição. Belo Horizonte. 2017. p. 112. [13]CASARA, Rubens. Estado Pós Democrático, neo obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Civilização brasileira, Rio de Janeiro, 2017. p. 66 e 67. Comments are closed.
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