George Orwell presentou o mundo com “1984”, uma obra que apesar de se tratar de uma distopia não foge tanto à realidade. O romance é protagonizado por Winston, funcionário do Ministério da Verdade (responsável por controlar, suprimir e criar a história), que ousa atentar contra os ditames que regulam uma sociedade tirânica e opressora.Winston não pode ser livre, mas em seu íntimo assim intenta, quando aos poucos passa a externalizar através de atitudes concretas o seu anseio pela liberdade. Qual a razão de o Grande Irmão controlar o povo mediante várias privações? As punições para os insurgentes são severas, pois é necessário manter as pessoas sob controle. Passará Winston impune por buscar algo além daquilo que é doutrinado pelo Partido? O Estado em que Winston vive é opressor, o qual suprime direitos, orienta num único sentido, vende a verdade como única e apenas presente naquilo que é dito pelo Grande Irmão. Não há escapatória. Todos são reféns. Os termos estabelecidos devem ser acatados de modo irrefletido. Somente assim o cidadão pode ser feliz no mundo de “1984”. A abordagem que aqui faço se dá com base nos motes do Partido que comanda a sociedade de “1984”. Pautando-se em três axiomas o Estado justifica a si próprio. O poder embasando o próprio poder. O Grande Irmão, onipresente, lança as seguintes máximas:
A legitimação do Estado na obra se dá com base em tais motes. “Guerra é paz”, pois o conflito sempre existente seria necessário para manter uma vendida paz. “Liberdade é escravidão”, pois somente enquanto enclausurado nas amarras criadas pelo Grande Irmão é que o homem poderia desfrutar de uma ilusória liberdade. “Ignorância é força”, pois a condição necessária para a manutenção do poder do Partido é manter o povo na ignorância, já que assim impossibilitam-se eventuais questionamentos sobre o governo. Façamos uma singela análise comparativa dos motes do Partido com as decisões judiciais que atualmente estão em voga. Saiamos do romance e nos situemos no aqui, no agora. Num ambiente em que cada vez mais o protagonismo do Judiciário vem ganhando campo, algumas questões que restam residentes em diversos atos de decisionismo necessitam ser desveladas. Quem quiser se aprofundar na análise da questão, com base em situações concretas, certamente encontrará diversos exemplos em que os motes do Grande Irmão neles se aplicam. Sofremos com a problemática do senso comum (inclusive daquele teórico) quando do recebimento da notícia sobre a forma com a qual foram julgadas determinadas questões no cenário jurídico. Tomemos como exemplo o HC 126292/SP e as ADCs 43 e 44. O nefasto resultado foi amplamente aplaudido. Juristas ou não, massiva foi a parcela da população que celebrou o resultado desses decisórios. Os equívocos de tais julgados, entretanto, são perceptíveis para aqueles que de fato compreendem o “X” da questão. E aqui invoco o “Fator Julia Roberts” para dizer que o STF errou. Prossigo indagando: não estariam os motes do Partido do Grande Irmão umbilicados em decisões como essas? A partir do momento em que se mantém a sociedade num nível de incompreensão sobre os problemas advindos de resultados como os mencionados, dá-se a guarida necessária para que violações, frutos do decisionismo, continuem se perpetrando (“Ignorância é força”). A justificativa de que é preciso combater duramente os malfeitores da sociedade, convence (“Guerra é paz”). Faz-se necessário abdicar de algumas árduas conquistas a fim de que haja ordem (“Liberdade é escravidão”). E assim prosseguimos caminhando para a derrocada. O Grande Irmão está aí. E aos poucos vai ganhando cada vez mais corpo e espaço. O decisionismo (fenômeno irrefletido pela população e pelo senso comum teórico dos juristas) é mais um dos meios encontrados e utilizados pelo Partido. Como dito, a distopia “’1984” não chega a ser tanta ficção assim... Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos. 3ª Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. STRECK, Lenio Luiz. Compreender Direito: Como o senso comum pode nos enganar (Volume 2). 1ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.
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