As bases que estruturam as sociedades como se conhece identificam, todas elas, uma sustentação assentada num poder absoluto e irresistível. Dificilmente nessa condição mudanças ocorrem dentro de um definido sistema político ou no interior das coletividades, uma vez que a massa dominante compõe, por meio de sufrágio e de um poder oriundo nas bases de sua herança, as vontades e os caminhos que devem seguir cada sociedade. Dominando dessa forma a cultura, os saberes, os ensinamentos, a economia, os debates e efetivamente, o poder inerente do Estado que controla/comanda.
No meio disso tudo há, grosso modo, uma partícula social que se preserva por meio de ações galgadas por individualidades e que determinam o tempo que se vive hoje como uma formação idiossincrática que se pauta na estruturação de ilhas de semelhança. (Wacquant) Destarte, aqueles que dominam e controlam estão, de toda forma, mantendo ações de expansão econômica e intelectual dentro de padrões aceitáveis ao domínio e ao controle. Num êxtase de formas e diferenças, as sociedades formadas por cidadãos distintos entre si, formam sua própria maneira de também controlar e do mesmo jeito, dominar outros. Essa experiência (Elias e Scotsson) nos mostra que dentro de uma comunidade os desígnios de todos diferem todavia, e engendrar o encontro entre iguais é determinante para a formação da segurança social e das formações de igualdade que se encontram e se fundem. Essas relações maquinam e controlam, deixando os desiguais, diferentes, imigrantes, pobres, miseráveis, ex presidiários, estigmatizados frente aos demais, em uma condição de extrema desigualdade. Numa análise fria toda essa diferença é vista pelos comandantes ou pelo poder irresistível como a própria distinção cabal e natural que deve ser realizada, uma vez que ele próprio, poder do Estado, realiza estas mesmas distinções na visão de seus comandantes, que são os políticos que enfileiram uma classe social distinta, por sua vez. O que se define como mudança no meio político e estrutural são realizadas por partidos que detêm uma maior força organizacional e conseguem controlar cada vez mais pessoas por intermédio de favores e trocas que são vistas como essência da política atual, percebendo salários avantajados e surreais tendo a realidade da maioria da população abandonada aos cortiços e às filas inacabáveis de emprego, do SUS e dos transportes públicos que vagam por ruas esburacadas. Essa distinção realizada não pela classe abastada dos políticos e domínio do estado, mas pelas pessoas entre si, causam uma ruptura naquilo que antes se entendia como humanidade, entrelaçando vários tipos de humanidades, definidas em castas que devem ser reconhecidas pejorativamente e mantidas no domínio e no controle. Octavio Ianni revela que a estratificação social chega a um ápice que, além de ser reconhecido por autoridades oficiais passa a ser aceito pela própria classe estratificada de forma natural, uma vez que predominam no pensamento das pessoas as condições de diferenças entre um grupo e outro grupo. Ao legitimar dessa forma as diferenças e ao aceitar trato desigual perante outros, a classe separada age distintamente em prol de sua ramificação no status da sociedade, considerando a si mesmo, subclasse. Dentro dessas classes e no eterno combate engendrado pelo medo e pela insegurança é que se definem os novos estamentos. As antigas castas, na sociedade feudal, eram bem definidas por suas condições de hierarquia entre si. Na França do século XVIII em meio à vigília pela revolução, as castas eram definidas por três tipos diferentes de estados entre si: a nobreza, o clero e o um terceiro estado reconhecido pelos trabalhadores, comerciantes e camponeses. Nesse cenário, definir humanidades que se diferem não é difícil e talvez ultrapasse as linhas que apenas se limitam a definir o preconceito, ativando mais uma questão de casta do que de discriminação racial. Assim, se o nascimento da pessoa se der na casta privilegiada pela nobreza é por esse caminho que irá trilhar, da mesma forma, se o nascimento se dá no terceiro estado, é muito provável que a condição que defina a diferença sofra, com o passar do tempo, como sofreu deveras, mutações e chegue nos dias após revolução francesa destacando diferenças singulares entre uns e outros, por intermédio de grupos que se definem por sua diferença perante aos controladores e dominadores: os novos estamentos. Tudo isso significa que se tomar uma posição libertária diante estes fatos está também legitimando, de toda forma, identificar desigualdades gritantes e mesmo assim considerar que há uma certa ordem no caos, deixando de pensar na situação em si devido ao seu próprio libertarismo. Se por outro lado, tomar uma atitude tradicionalista em virtude dos ensinamentos transmitidos por gerações, certifica então esse sistema vigente que em prol de alguns escarnece a humanidade de outros. Nascer em determinada casta torna o ser diferente e diferentes são suas passadas ao longo de toda uma vida, sempre próximo aos seus. Dessa forma, o tempo trouxe com o tilintar de sua passagem novas determinações de castas, confrontando e ao mesmo, se aliando ao antigo significado de diferença e desigualdade, se por um lado, há em razão de um forte determinismo a vigorosa maneira de distinguir e manter uma ordem padrão, por outro, há uma já reconhecida diferença e a aceitação de que de fato existem dissemelhantes tratos. É sabido que humanidade somente existe uma, um ser constituído e construído às bases de suas próprias evoluções e revoluções, de seus conhecimentos adquiridos através do tempo e que tem por base viver em sociedade, desde os primórdios. Dentro dessa perspectiva que trazemos, existem então outras formas de enxergar o humano, entre elas, uns mais humanos que outros. Assim, projetos de higienização se consolidaram na história, inclusive em países reconhecidamente libertários em sua concepção. Em grandes centros é imenso o crescimento da pobreza e é latente a difusão de pessoas entregues às ruas, ao vício e ao descaso. Para alguns, essa situação poderia ser revertida pelo esforço desses miseráveis, ou seja, por seu próprio trabalho. Para outros, as penas deveriam ser mais enérgicas e deveria o Estado (leia-se poder de polícia e direito das penas) usufruir de sua força e dar um propósito efetivo a esses condenados; como o trabalho forçado nas prisões empresas, ou seja, nas novas galés dos dias de hoje. Contudo, ainda existem os que defendem a extinção de certas humanidades que para eles, não são considerados tão humanos assim. Tome-se, como exemplo, uma noite de abril de 1997 o assassinato de um índio pataxó. Ao indagarem seus responsáveis, estes teriam dito que não sabiam se tratar de um índio, mas sim de um mendigo. Destarte, consideram que existe humanidade qualitativamente diferente entre o índio e o mendigo, sendo um mais humano que outro. Analisando assim, há a distinção que se baseia em ideia fixa de que diferenças sociais não são apenas inseridas na riqueza ou na pobreza, mas são diferenças de qualidade social das pessoas, como era nas castas ou na sociedade estamental. Mesma maneira o exemplo do extermínio dos judeus, índios, religiosos pelo mundo, entre tantos outros exemplos. Humanidades diferentes enxergadas de forma inescrupulosa, algumas convergem para o direito penal e o poder de polícia do Estado, outras para a própria segregação e descriminação entre as pessoas, que somente são iguais quando morrem, de fato. Dessa forma, tratar os diferentes que se aceitam assim e que assim são vistos pelos olhos dos cidadãos e aceitos pelo poder do Estado como "especiais" ou "puniveis", é que o Direito Penal se especializou. O "direito das dores" (Christie) mostra como é que se define, se destaca e se amolda em seus cantos mais obscuros as diferenças, e é lá que elas devem permanecer: nos novos estamentos, aceitando cada um sua casta forçada por um determinismo imposto pelo nascimento. Iverson Kech Ferreira Advogado especializado em Direito Penal Mestrando em Direito pela Uninter Pós-graduado pela Academia Brasileira de Direito Constitucional, PR, na área do Direito Penal e Direito Processual Penal Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário Internacional É pesquisador e desenvolve trabalhos acerca dos estudos envolvendo a Criminologia, com ênfase em Sociologia do Desvio, Criminologia Critica e Política Criminal Referências: CHRISTIE, Nils. O crime não existe. Rio de Janeiro: Revan 2011 ELIAS, Norbert. SCOTSSON, Jhon L. Os estabelecidos e os Outsiders: Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. IANNI, Octávio. O sistema de castas: Teoria da estratificaçao social. Sao Paulo: Nacional, 1973, p. 90 a 100 Comments are closed.
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