A questão proposta como título, que parecia desgastada em virtude da ampla difusão dos enunciados da criminologia crítica ou da própria produção teórico-penal europeia que, regra geral, trabalha com pressupostos de redução ou concentração do direito penal (bens jurídicos coletivos), precisa ser novamente avivada em virtude de movimentos que se autoproclamam antigarantistas.
O problema do direito penal, desde há muito, é um problema de legitimidade. Dentro de democracias constitucionais o direito penal não pode ser valorado por critérios de eficiência ou custo/benefício. Vale lembrar que, durante muito tempo, ele foi aplicado com base nesta lógica – basta lembrar o uso do trabalho carcerário alguns séculos atrás. Ocorre que, dentro da estrutura do Estado Democrático de Direito, as escolhas políticas sensíveis, que formam os princípios sobre os quais o sistema de justiça criminal será engendrado, já foram feitas, sendo sedimentadas no texto constitucional. Significa dizer que a avaliação das funções da pena e, derradeiramente, da aplicação do direito penal, se voltará para o critério da legitimidade, não da eficiência. Essa escolha democrática é fruto de longo desenvolvimento histórico, como furto de experiências terríveis, que marcaram a consciência global com as consequências do autoritarismo, da violência estatal desmesurada. A incompreensão deste histórico mostra ser, quase que invariavelmente, irmã gêmea do clamor pelo fim (ou atenuação substancial) de garantias. Quando o aluno da graduação de direito frequenta suas primeiras aulas de direito penal, quase que invariavelmente é apresentado à noção de bens jurídicos. A afirmação de que direito penal volta-se para proteção destes é ofertada aos jovens alunos como se fosse um dado empírico, ou até um a priori da teoria do delito, ao menos no Brasil. Existem problemas sérios em construir o conhecimento de um aluno acerca do direito penal sobre o dogma de que o direito penal opera com o fim de “proteção subsidiária de bens jurídicos relevantes contra lesões significativas”. Ainda que esta seja uma bela teoria, os problemas perpassam, no mínimo, as seguintes constatações: não há prova empírica de que o direito penal consiga proteger bens jurídicos; um direito penal com fins exclusivamente preventivos anula o princípio constitucional de culpabilidade; o conceito de bens jurídicos não possui um grau de consenso doutrinário seguro, em especial após a expansão do direito penal para abarcar o que ficou conhecido como “direito penal secundário”. Comentam-se a seguir estes três pontos. A ausência de demonstração empírica da efetividade da ameaça penal em proteger bens jurídicos nunca foi enfrentada dentro de critérios científicos. É cediço que o direito penal não consegue oferecer nenhuma compensação ou solução em relação a bens jurídicos já lesados. Também não há nada que o direito penal possa fazer pelas vítimas. Estas precisam receber o auxílio estatal advindo de outras áreas – como a psicologia, o direito reparatório (civil) nos casos cabíveis, etc. Diante disso, o direito penal ficaria submetido a cumprir a função de proteção de bens jurídicos unicamente em seu viés preventivo geral positivo, já que a demonstração de sua capacidade em instrumentalizar a função preventiva geral negativa nunca foi realizada de modo satisfatoriamente coerente. Os fins de prevenção especial dispensam comentários, uma vez que ilegítimos em sua própria estrutura conceitual. A dificuldade da função preventivo especial é que sua demonstração é ainda mais complexa, senão impossível. Provar que a aplicação da pena gera um “sentimento” de fidelização geral à norma, ao confirmá-la como válida e efetiva, é o mesmo que dizer que a democracia é uma realidade porque “todos” possuem capacidade eleitoral ativa. A função da pena acaba, em virtude disso, retornando a sua feição retributiva – opera como institucionalização da vingança coletiva (estatal) contra uma parcela das condutas que despertam a atenção do radar do sistema de justiça criminal. Indo adiante, para enfrentar o próximo ponto: um direito penal que se paute, ainda que discursivamente, em fins unicamente preventivos, abrindo mão de demonstrar sua efetividade ou perseguir seus fins constitucionalmente delineados de ressocialização,[1] acaba por solapar um dos elementos fundamentais da teoria do delito – a culpabilidade. Isso porque, se a pena é aplicada com fins unicamente de reforço da fidelidade geral à norma, não importa saber sobre a real culpabilidade do indivíduo. Poderá o sistema de justiça criminal realizar o que costumeiramente se vê: declarar, nos casos em que o crime não choque a percepção subjetiva do magistrado ou de seu meio social, que “a culpabilidade é normal”. Nos casos em que esse juízo, bem afastado dos critérios legais de culpabilidade, for diferente disso, a culpabilidade será valorada como “grave” ou “elevada”, impactando a dosimetria da pena. Vale lembrar que a culpabilidade deveria operar como princípio-guia da aplicação da pena e não apenas uma “fase” da imputação. Por fim, destaque-se que a definição conceitual ou exemplificativa de bens jurídicos não se traduz em consenso mínimo na doutrina ou na jurisprudência. Muitas questões relevantes dão azo a respostas variadas e incongruentes: bens jurídicos coletivos são compatíveis com um direito penal de garantias (constitucional)? Ordem pública, sistema financeiro e ordem econômica são bens jurídicos? Em que medida? Bens jurídicos devem ser valorados de forma diferente, dependendo da relação da vítima com o agente? A relação do agente com o bem jurídico pode servir de alicerce para imputação, a despeito do nexo causal na lesão ou perigo concreto de lesão? Essas são apenas algumas perguntas para as quais nem a doutrina, nem a jurisprudência, fornecem-se uma resposta unívoca, segura. Com a expansão do direito penal, cada vez mais voltado para criminalidade econômica, ambiental e para os crimes omissivos, o terreno de conceituação dos bens jurídicos perdeu ainda mais sua capacidade de concentração, na tentativa de legitimar sua aplicação. Dado o exposto, não parece ser possível atestar nem mesmo um grau de legitimidade razoável ao direito penal, especialmente se levarmos em conta outros problemas próprios de países marginais. A única tentativa idônea capaz de justificar sua aplicação é a ausência da capacidade humana em resolver todos os seus conflitos de forma pacífica – volta-se ao enunciado de que o direito penal é um “mal necessário”. Não se pretende enfrentar, no momento, esta última assertiva. Cabe, por hora, afirmar que ela não pode ser tida como alicerce de legitimação, senão de mera justificação. Alguém que mata em legítima defesa não pode afirmar que cometeu uma violência legítima, exercendo um direito derivado diretamente da constituição. Pode, sim, afirmar que agiu de forma justificada pela lei penal. É de conhecimento geral que a legítima defesa não surge a partir de sua colocação no direito positivo, mas numa construção de longa data, fundada em concepções naturalistas do “instinto”[2] de autodefesa. Da mesma forma, o que pretende aquele que afirma a necessidade do direito penal é justifica-lo apesar de sua falta de legitimidade. De qualquer forma, mesmo tendo sido abordado apenas três dos muitos motivos pelos quais o direito penal precisa ser taxado de ilegítimo, fica claro que sua aplicação na sociedade contemporânea não condiz com o patamar civilizatório mínimo que o ocidente afirma ter alcançado. As explicações para isso passam por determinantes político-econômicas, que são trabalhadas de diferentes formas pela criminologia crítica. Finalizando esta breve análise, ressalte-se que o objetivo não foi, em si, fornecer uma resposta para pergunta que intitulou o texto, mas demonstrar que a resposta comumente dada na doutrina e, consequentemente, no ensino jurídico penal elementar, não pode se desprender da responsabilidade social de apontar os aspectos aqui descritos. Paulo R Incott Jr Mestrando em Direito pela Uninter Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Advogado Membro do IBCCRIM Referências: [1] Aqui é preciso entender que, para que essa função não seja vista como uma piada de mau gosto, é necessária a ressalva de que ela seria buscada não através da aplicação da pena, mas de medidas de política criminal tendentes a permitir alguma ressocialização [2] A depender da corrente a que se filie o estudioso da legítima defesa, diferentes palavras serão usadas, porém todas estarão atreladas ao sentido de um impulso (e depois um direito) “natural”, “universal”, “inato”. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 6 ed. Curitiba, PR: ICPC: 2014. TAVARES, Juarez. Teoria dos Crimes Omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2012. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das Penas Perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. Comments are closed.
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