Na semana passada esta coluna foi intitulada “Para que serve o Direito Penal”? Hoje, a questão se volta para o processo penal.
Se é correta a lendária afirmação que o Código de Processo Penal é o termômetro pelo qual se pode medir o patamar civilizatório de uma sociedade ou sua madureza democrática, fica claro que o processo não se resume a um mero conjunto de atos com um fim específico. As regras pelas quais uma sociedade decide imputar determinados fatos lesivos a determinadas pessoas e impor-lhes os castigos previamente definidos é fruto de uma decisão alimentada por uma série de influências e que precisa ser compreendida a partir de uma análise multifacetada – sociológica, antropológica, psicológica, histórica e, cada vez mais, política. Muitos hoje se manifestam no sentido de que o processo penal opera um entrave para punição, um mecanismo de garantia de impunidade, com seu extenso rol de exigências para efetivação do castigo. Não é difícil perceber que estas manifestações são fruto de uma profunda ignorância histórica e sociológica. Reside aí o motivo pelo qual o processo penal não pode ser pensado ou estudado simplesmente a partir dos enunciados normativos assentados em um código estruturado para concretização do castigo penal. Se olharmos para o passado, veremos que já houve um tempo em que punições coletivas eram aplicadas sem processo, ou com um processo meramente simbólico. Ninguém diria que a experiência foi um sucesso. Tal qual ocorre com a dogmática do direito penal material, a maneira mais correta de se visualizar um propósito para o desenvolvimento do processo penal é pensar neste como um instrumento de segurança. Para exemplificar a relevância dessa forma de compreensão, imagine-se na seguinte situação: você está sentado no aeroporto, aguardando para embarcar e alguém senta ao seu saldo, colocando uma mochila entre vocês dois. Passado alguns minutos a pessoa se ausenta, deixando a mochila no mesmo local. Depois de algum tempo você é convidado por dois policiais federais a acompanhá-los, juntamente com a mochila. Numa sala reservada você é informado de que a polícia recebeu notificação de que a mochila continha uma quantidade significativa de substâncias entorpecentes de uso/comércio proibido pela lei penal. Os policiais atribuem a você a propriedade do conteúdo, uma vez que a mochila com as descrições foi encontrada ao seu lado e continha de fato aquelas substâncias. Os policiais informam-lhe que é melhor admitir que são suas, senão as coisas podem piorar muito para você. Testemunhas foram ouvidas e afirmam ter visto você com a mochila ao seu lado por um bom tempo. O que você faria? Que instrumentos poderiam garantir-lhe capacidade real de fazer frente a este cenário e provar sua inocência? Com este exemplo simples pretende-se apontar para o fato de que o processo penal é uma das garantias mais sensíveis de que dispõem os cidadãos no que toca sua liberdade. Um processo penal bem estruturado não oferece obstáculos instransponíveis para responsabilização penal, mas permite que esta responsabilização seja submetida a um filtro mínimo de racionalidade e segurança. Com o propósito de não delongar esta digressão, já que o assunto é interessantíssimo e dá margem para muitas abordagens, reforce-se ainda que a luta por um processo penal que tenha por princípio fundante o papel do juiz como um terceiro afastado, núcleo de um sistema processual acusatório/dispositivo, é decorrência natural do avanço da percepção sobre a efetivação da democracia. Quando a Constituição de Weimar foi mantida em vigor em meio ao Terceiro Reich, descobriu-se, da maneira mais difícil possível, que a assentar um modelo de democracia numa bela carta constitucional não é suficiente. Democratizar o exercício do poder punitivo não se reduz à promulgação da constituição e nem mesmo se efetiva meramente, no caso brasileiro, pela alteração (urgente e necessária, mas não suficiente) do CPP. É imprescindível alterar o modo como o processo penal é visto, o modo como é instrumentalizado, o modo como é pensado a partir do ensino jurídico nas universidades. Enquanto a “efetividade” for o mote pelo qual se enxerga o exercício de poder punitivo o processo penal ficará reduzido a ser pensado como obstáculo para punição, o que está errado. É chegada a hora de abandonar essa visão antidemocrática e valorizar o processo penal como meio imprescindível de concretização da justiça, quer o resultado final de um processo seja a condenação, quer a absolvição. Ainda que a imprescindibilidade do processo, como é conhecido em nossa cultura jurídica, esteja sofrendo uma crescente relativização, pautada pela “necessidade” (celeridade, efetividade, desafogamento), calcada em medidas como a colaboração premiada e as transações penais, o “grosso” da aplicação do exercício do poder punitivo ainda depende de um processo penal que se constitucionalize. Mais do que isso, que passe a ser visto como fruto de uma vitória humanística de todos e não como uma pedra no sapato da ânsia coletiva por vingança. Paulo R Incott Jr Mestrando em Direito pela Uninter Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Advogado Membro do IBCCRIM Referências: LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. PRADO, Geraldo; MARTINS, Rui Cunha; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti C. Decisão judicial. A cultura jurídica brasileira na transição para democracia. São Paulo: Marcial Pons, 2012. 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