Khalil Aquim abraçando o caos e nos brindando com poesia. ''A arte existe porque a vida não basta'', já afirmou Ferreira Gullar. Em tempos de de distanciamento social, ela se faz ainda mais necessária para o cuidado com a própria sanidade mental. Felizmente, há arte, de toda sorte, por toda parte. Não deixemos de vê-la, de apreciá-la, de reconhecê-la''. Por Khalil Aquim Com enorme alegria, recebi, há algumas semanas, o imerecido convite feito pelo amigo Paulo Silas para subscrever uma coluna neste Sala de Aula Criminal. Muito mais pela amizade do que por qualquer mérito, eu sei. Afinal, num grupo de gigantes colunistas e colaboradores, só posso entrar pela amizade. André Pontarolli, Paulo Incott, Adriano Bretas, Marion Bach, Paulo Eduardo Oliveira, Edson Facchi, Carla Tortato, Paula Abiko, Bryan Lechenakoski, Guilherme Zorzi, Mariana Cantú, Fernando Sobrinho, para citar os amigos.
Nessa perspectiva, me vendo assim, entre bons amigos que são imensamente mais qualificados do que eu para seus escritos e ensinamentos, como definir esta singela coluna num canal deste calibre? Como contribuir, de qualquer forma, sem deixar evidente o desnível desta coluna perto das demais? Refletindo um pouco sobre, algumas ideias vieram à mente. A primeira é dar um tema específico à coluna, como os muitos colegas fazem com maestria. O júri seria, por razões óbvias, a primeira opção. Já há, porém, pessoas e muito mais qualificadas do que eu escrevendo sobre, como a Carla Tortato e o Adriano Bretas. O mesmo ocorre com Direito Penal e Processo Penal, com Direito e Literatura… A opção, portanto, perde no argumento. A segunda ideia seria fazer desta uma coluna de provocações. Temas polêmicos, políticos ou não. Críticas a projetos de lei, a posicionamentos judiciais, casuísticos e de teses perante o Supremo. Fogo no parquinho, dizem em memes os jovens. Para alguém que está iniciando uma coluna pela gentileza dos amigos, porém, não convém começar já atiçando inimizades gratuitamente. A terceira seria uma coluna de casos e de causos. Histórias de plenários, dos vistos e dos vividos. Dos calotes e das violações de prerrogativas; dos perrengues de início da carreira, os que passei e os que presenciei no tempo em que estive na presidência da Comissão de Advocacia Iniciante da OAB/PR. Mas como escrever crônicas perto de Marion Bach? Também não parece uma decisão sensata. Nos dias em que passei pensando sobre qual seria o tema da coluna que me cederam, li “Somos Todos Canalhas”, de Clóvis de Barros Filho e Júlio Pompeu, e fez lembrar outras obras de provocações filosóficas (ainda que algumas delas caiam, por descuido, nas seções de autoajuda das livrarias). E também de Platão. A(s) obra(s) se faz(em) em diálogos. Esse é o ponto, a genialidade. O foco é precisamente a dialética, potencializando as divergências e as convergências para o aprimoramento do conhecimento. Mas esta é uma coluna, de modo que o espaço é - e deve ser - curto. Não há exatamente espaço ou tempo, portanto, para tanto. E vem a pandemia. Altera rotinas, meios, modos, medos e anseios. Amigos, me esforcei. Tentei de diversas formas pensar em como manter uma linearidade na coluna. Mas não consegui encontrar uma linha mestra que garanta qualidade viável neste espaço de colegas tão mais qualificados que eu. Haveria, assim, alguma solução possível? Arrisco: abraçar o caos. Este espaço, portanto, vai ser dedicado a um pouco de tudo, e a nada em especial. Dogmática jurídico-penal; temas contemporâneos; pequenas grandes reflexões filosóficas; críticas a leis, a projetos de lei e a decisões judiciais; histórias de plenário e de advocacia iniciante; séries e filmes e músicas e livros. Pedras, noites e poemas. Principalmente, porém, na medida do que este curto espaço permitir, a ideia é possibilitar aqui um canal de diálogo. Nos próprios textos a serem publicados aqui e, em especial, a partir deles, com quem ler e quiser dialogar. E assim, com algum atraso e uma introdução desmedida, inicia esta coluna focada no caos. Nas aleatoriedades da vida. Nas entranhas dos processos penais, dos sistemas de justiça criminal, nas vicissitudes de tudo que aqui e com isto se relacionar. Propostas de reflexão e temas não nos faltarão. O ex-juiz federal Sergio Moro é agora também ex-ministro. Em breve será testemunha, e há quem pretenda vê-lo tornado réu. O presidente da República foi denunciado perante o Tribunal Penal Internacional, é alvo de inquérito policial e de diversos pedidos de impedimento. Não esqueçamos a pandemia. As discussões sobre os crimes dos artigos 267 e 268 do Código Penal. A Recomendação nº 62/2020 do CNJ, e a discussão ventilada no pedido incidental protocolizado pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa nos autos da ADPF 347. As suspensões de prazos processuais, os atos por videoconferência, as inovações de relações processuais - e da vida - diante deste novo contexto mundial. Tantas inovações legislativas. A Lei Anticrime, que ainda demanda muitas análises e carece de delimitação jurisprudencial em tantos pontos polêmicos. A Lei de Abuso de Autoridade, igualmente polêmica. As alterações na Lei Maria da Penha. A proposta legislativa enviada pelo CNJ ao Congresso para alterações no rito do júri. Para começar aqui, portanto, me valho das inspirações do anfitrião Paulo Silas, e trago algumas considerações a partir da arte. Em sentido lato, claro, porque o direito se relaciona a tantos campos que não se restringem à literatura, ainda que dela não se deva olvidar. Afinal, apoiado nas palavras de Vargas Llosa, “las novelas mienten --no pueden hacer otra cosa— pero ésa es sólo una parte de la historia. La otra es que, mintiendo, expresan una curiosa verdad, que sólo puede expresarse encubierta, disfrazada de lo que no es”[1]. São as alegorias que nos fazem compreender melhor o mundo a nosso redor. Por vezes, também são leituras a partir das quais conseguimos relacionar personagens, sentimentos e personalidades. Nas reiteradas ironias em que a arte imita a vida não menos com que a vida imita a arte. Exemplos não nos faltam. Não podemos deixar de mencionar os imprescindíveis Kafka, Shakespeare, Machado de Assis e Victor Hugo, que alguns afirmam estarem batidos de tão referidos por tantos quando aberta a temática direito e literatura, mas cuja atualidade reforça a absoluta impossibilidade de se renegar a tais leituras. No atual contexto político brasileiro, por exemplo, as releituras dos clássicos “Crônica de uma Morte Anunciada” e “Memórias de um Sargento de Milícias” são exemplos de obras que trazem ponderações extremamente interessantes[2], para dizer o mínimo. Mas falamos de arte, em sentido amplo. Filmes que nos fazem pensar a sociedade e o sistema de justiça criminal não nos faltam. Desde clássicos como “12 Homens e uma Sentença” aos contemporâneos “Luta por Justiça” (inspirado em fatos reais) e “Milagre na Cela 7” (a versão turca, disponível na plataforma Netflix, inspirada no original homônimo sul-coreano), a sétima arte tem inúmeros títulos aptos a fazer refletir de forma direta sobre o sistema de justiça criminal. E não apenas o cinema. Popularizadas a partir dos serviços de streaming, séries também se revestem de enorme valor. Das ficções jurídicas menos ou mais fiéis à realidade (como “Irmandade”, “Suits”, “The Good Wife”, “Better Call Saul”) às inspiradas em fatos reais, documentais ou não (“Making a Murderer”, “American Crime Story”, “Olhos que condenam”), o enorme catálogo traz aos maratonistas de episódios várias opções para (re)conhecer situações de falhas e abusos, estratégias processuais sagazes e até desleais. É necessário, porém, ir além. “O poço”, “Parasita”, “Bacurau”. “13 Reasons Why”, “3%”, “Black Mirror”, “Merlì”. A indústria audiovisual nos traz um sem-fim de títulos que nos fazem refletir a sociedade e as relações humanas e jurídicas. Até mesmo nas obras que não tem o propósito direto de produzir tais reflexões. Quem acompanha o universo cinematográfico Marvel pôde perceber com o final do grande ciclo em “Vingadores: Guerra Infinita” o posicionamento (político, por evidente) do vilão Thanos, que reflete(-se em) personagens reais do atual contexto brasileiro. O universo dos super heróis, por sinal, é um mundo à parte. Da “Guerra Civil” dos heróis da Marvel à batalha de “Batman x Superman” da concorrente DC, o dilema recorrente: como o controlar os superpoderes? “Quis custodiet ipsos custodes?” escrevia Juvenal em sua sexta sátira, e escreviam populares nas paredes da Nova Iorque distópica descrita em Watchmen - outro grupo de heróis da DC. E permeia toda a problemática tratada na série “The Boys” (disponível na Amazon Prime). Assim como permeia tantas discussões necessárias sobre controles de poderes, tais quais as relativas à nova Lei de Abuso de Autoridade. E por falar em abuso de autoridade, lembremos de outra expressão de arte ainda não mencionada aqui: música. Chico Buarque e seu “Hino de Duran” se mostram ainda e sempre atuais, mesmo três décadas após o fim do regime ditatorial que inspirou a canção. E tantas outras canções que expunham, em letras abertas ou censuradas, as agruras da ditadura militar e se fazem tão presentes hoje. O que não quer dizer que a música dos dias atuais seja menos necessária. Há alguns anos, a obra dos Racionais (“Diário de um Detento” e “Negro Drama” são necessárias) tomou protagonismo na correlação direta para estudo e prática das ciências penais, assim como outros artistas de rap. Mas também não se esgota aí. O sertanejo jurídico, exposto em memes diversos na internet, tem ganhado força. Se valendo de conceitos equivocados e termos mal utilizados sob a ótica da dogmática mais restritiva, mas elastecendo de modo alegórico noções jurídicas. Assim são as analogias: quantas anedotas não comparam o casamento à prisão? Assim, quando umas tantas milhões de pessoas escutam “Contrato” da dupla Jorge e Mateus e outras tantas milhões ouvem Simone e Simaria cantando “Regime Fechado”, é necessário reforçar-mos os conhecimentos técnicos para apontar as distinções, mas também impende ter a sensibilidade necessária para vislumbrar as eventuais semelhanças, para também facilitar o traquejo linguístico que possibilita efetiva e eficaz comunicação de termos e situações jurídicas para e com leigos. Nos sambas e nos pagodes, que versam muitas vezes sobre as paixões e os abusos, exemplos do romantismo e de reflexos de violência doméstica (Amélia que o diga). Nas letras de funk, o reflexo da liberdade sexual e do uso recreativo de drogas. Com e sem violência. Com ou sem censura. Com ou sem prisões, como no caso do DJ Rennan da Penha. Claro que me vali de estereótipos acerca de cada gênero musical, e igualmente claro é o fato de que, como todo estereótipo, não reflete a totalidade. Há canções de todos os gêneros, do rock ao pop, do gospel ao funk, que nos fazem refletir e que refletem cenários necessários de serem pensados e compreendidos. “A arte existe porque a vida não basta” já afirmou Ferreira Gullar. Em tempos de distanciamento social, ela se faz ainda mais necessária para o cuidado com a própria sanidade mental. Felizmente, há arte, de toda sorte, por toda parte. Não deixemos de vê-la, de apreciá-la, de reconhecê-la. As ciências criminais lidam com o que há de mais humano, com as falhas, os erros, as fragilidades. Os vícios, os engodos, os ardis. Os medos, os anseios, os despreparos e os desesperos. E apenas a arte pode nos auxiliar a perceber e experienciar melhor toda a plenitude de sentimentos demasiadamente humanos. A atuação na esfera criminal, portanto, recepciona muito bem tantos instrumentos de conhecimento e de diálogo. Assim como Leminski escrevera sobre a luta de classes, também para a advocacia criminal vale a lição: todas las armas son buenas piedras noches poemas Khalil Vieira Proença Aquim Advogado Criminalista Professor de Direito Penal da Faculdade Inspirar; Mestrando em Teoria e História da Jurisdição na Uninter; Membro do Conselho Estadual da Associação Paranaense dos Advogados Criminalistas - Apacrimi; Ex-presidente da Comissão de Advogados Iniciantes da OAB/PR (gestão 2016/2018). NOTAS: [1] “La verdad de las mentiras”. Mario Vargas Llosa. Ed. Punto de Lectura, Madrid, 2007. Pág. 16. [2] Lembrando ao leitor desavisado que milícias, no contexto da época, eram as tropas auxiliares quem compunham as forças militares portuguesas, extintas por lei de 18 de agosto de 1831, não se confundindo com as milícias do atual contexto brasileiro. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-37497-18-agosto-1831-564307-publicacaooriginal-88297-pl.html
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Mineiro
5/7/2020 11:11:24 pm
Muito interessante e inteligente
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