Artigo do colunista Rafael Corrêa sobre a jurisdição constitucional no Brasil e o papel do Supremo Tribunal Federal, vale a leitura! ''Mas qual seria o papel do juiz desenhado pela Constituição da República Federativa do Brasil, principalmente no âmbito da jurisdição constitucional? A pergunta, a rigor, pode ser considerada como a base do cenário de crise que hoje se observa, ao mesmo passo que é o gatilho motriz das críticas antes referidas''. Por Rafael Corrêa Uma das reflexões mais caras ao contemporâneo estudo do Direito Constitucional brasileiro diz respeito à prática jurisdicional em si, principalmente no campo da jurisdição constitucional. Vale dizer: na tensão político-normativa hoje vista, a forma de atuação dos integrantes do Poder Judiciário (logo, a forma como julgam), principalmente no âmbito do Supremo Tribunal Federal, contribui para o elastecimento desse cenário de crise?
Como apontado em colunas anteriores, enxerga-se atualmente um conjunto de críticas ostensivas à forma de atuação do Poder Judiciário, principalmente no que tangencia ao exercício da jurisdição constitucional pelo Supremo Tribunal Federal. De um modo ou de outro, o que se visualiza hoje, ao menos em grande parte, é a crítica que Camus fez aos julgadores por meio de seu personagem Jean-Baptiste Clamence no monólogo “A Queda”: “Quem adere a uma lei, não teme o julgamento que o recoloca em uma ordem na qual crê. Mas o mais alto dos tormentos humanos é ser julgado sem lei. Nós vivemos, porém, esse tormento. Privados de seu freio natural, os juízes, soltos ao acaso, servem-se à vontade”.[1] De igual modo, é possível identificar outros apontamentos que, em certa dimensão, reforçam o indicativo acerca da extensa atuação do Poder Judiciário no Brasil, atrelando-se à ideia de ativismo judicial que tanto tem sido relacionada, por exemplo, ao Supremo Tribunal Federal. E um desses apontamentos decorre das ponderações de Eros Grau, que integrou a Corte Constitucional brasileira entre os anos de 2004 e 2010. Ao refletir sobre a ética da legalidade que deve marcar a ratio de aplicação do Direito, Eros Grau critica a instabilidade dos julgamentos permeada por densos juízos de valores e de ponderações de princípios em contraste com a aplicação da técnica legislativa, como se coubesse ao Poder Judiciário “corrigir” eventuais equívocos oriundos do Poder Legislativo. Eis um trecho que vale a colação: “O Poder Judiciário aqui, hoje, converte-se em um produtor de insegurança. [...] Estranhas e sinuosas vias são trilhadas nessa quase inconsciente procura de ius onde não há senão lex. Uma delas se expressa na produção multiplicada de textos sobre conflitos entre princípios e entre valores, o que em geral faz prova de ignorância a respeito da distinção entre o deontológico e o teleológico. Outra, na banalização dos ‘princípios’ (entre aspas) da proporcionalidade e da razoabilidade, em especial do primeiro, concebido como um princípio superior, aplicável a todo e qualquer caso concreto – o que conferiria ao Poder Judiciário a faculdade de ‘corrigir’ o legislador, invadindo a competência deste.”[2] Argumenta Eros Grau (e com razão) que o juiz também faz parte da lei, dado que é a sua interpretação que faz com que a realidade seja bem apreendida no momento de aplicação da norma; porém, não está autorizado ao juiz fazer a sua “justiça” (algo tão abstrato que deveria ser tratado pela filosofia ou pela história), estando ele vinculado objetivamente ao Direito (ordem jurídica e sua ratio) e ao papel a ele desenhado pela Constituição da República. Mas qual seria o papel do juiz desenhado pela Constituição da República Federativa do Brasil, principalmente no âmbito da jurisdição constitucional? A pergunta, a rigor, pode ser considerada como a base do cenário de crise que hoje se observa, ao mesmo passo que é o gatilho motriz das críticas antes referidas. Essa questão essencial vem sendo objeto de reflexão de diversos juristas, dentre eles alguns que se encontram hoje com as vestes de juiz constitucional no Supremo Tribunal Federal, com especial destaque ao ministro Luís Roberto Barroso, que tem publicado diversos trabalhos sobre a matéria. Em obra lançada no ano de 2018 e que sistematiza boa parte de sua percepção sobre a jurisdição constitucional e o papel do Supremo Tribunal Federal no Brasil, o ministro Luís Roberto Barroso defende a ideia de que a tríplice dimensão da democracia contemporânea (representativa, constitucional e deliberativa) exige do juiz (principalmente do juiz constitucional) um papel mais proativo do que aquele objetivamente atrelado à ratio técnica legislativa. Soma-se a isso alguns fenômenos que vincam a produção normativa no Brasil, como (i) a superação do formalismo jurídico, o (ii) advento de um “pós-positivismo” e o (iii) reconhecimento da centralidade da Constituição, que em conjunto impulsionam o destaque do papel da interpretação normativa e o viés criativo do juiz na estruturação do Direito. Em suas palavras: “O fato inafastável é que a interpretação jurídica, nos dias atuais, reserva ao juiz um papel muito mais proativo, que inclui a atribuição de sentido a princípios abstratos e conceitos jurídicos indeterminados, bem como a realização de ponderações. [...] Discricionariedade judicial, portanto, traduz o reconhecimento de que o juiz não é apenas a boca da lei, um mero exegeta que realiza operações formais. Existe uma dimensão subjetiva na sua atuação. Não a subjetividade da vontade política própria – que fique bem claro –, mas a que inequivocamente decorre da compreensão dos institutos jurídicos, da captação do sentimento social e do espírito de sua época.”[3] Disso deriva a compreensão que o ministro Barroso sustenta, então, sobre o Supremo Tribunal Federal: o de uma Corte Constitucional que tem como atribuição exercer um papel contramajoritário (ao invalidar atos do Legislativo e do Executivo), representativo (sendo a Corte uma representante argumentativa da sociedade, na esteira do pensamento de Alexy) e iluminista (exercendo o dever de impulsionar o avanço civilizatório da sociedade que representa). Essa percepção do papel reservado à Corte Constitucional está presente em diversos votos do ministro Barroso no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade, servindo como exemplo o seu posicionamento nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade nºs 43, 44 e 54, inerente a uma nova interpretação (que nominou de “mutação constitucional”) do art. 5º, inciso LVII da Constituição Federal para dispensar a preclusão máxima como elemento para formação da culpa e aplicação da sanção penal. Entretanto, ainda que o posicionamento do ministro Luís Roberto Barroso se assente em perspectivas doutrinárias rígidas, algumas ponderações podem ser vertidas. Especificamente quanto às Ações Declaratórias de Constitucionalidade nºs 43, 44 e 54, muito embora seu posicionamento tenha sido destinatário de aplausos, não se pode olvidar de uma crítica bastante clara: sua afirmação de que a condenação confirmada ou declarada em segundo grau de jurisdição estrutura um elemento de garantia da ordem pública apto a autorizar a segregação antes do trânsito em julgado não somente é uma afronta, balizada por argumento metajurídico, a um preceito constitucional sensível, como também confunde a sistemática da prisão preventiva, regulada no art. 312 CPP - cuja constitucionalidade, aliás, é duramente questionada tanto pela doutrina como pela jurisprudência do próprio Superior Tribunal de Justiça - como a modalidade de prisão decorrente de título condenatório efetivo, mote do art. 283 do CPP. De lado outro, o dito papel iluminista que atribui ao Supremo Tribunal Federal pode envidar em um desequilíbrio na democracia constitucional brasileira, que reserva especial atenção à separação de Poderes ainda que reconheça destaque na atuação do Poder Judiciário na guarda da Constituição da República. Isso se dá (ou ainda, pode se dar) uma vez que essa compreensão do papel iluminista seguramente poderá ser diluído aos demais integrantes do Poder Judiciário, que se arrogariam, então, na missão de “empurrar o processo civilizatório brasileiro adiante”, cada um à sua maneira. E aqui os apontamentos de Eros Grau podem nos servir de importante parâmetro reflexivo: “Hoje, tenho medo. [...] O que tínhamos, o que nos assistia – o direito moderno, a objetividade da lei – o Poder Judiciário aqui, hoje, coloca em risco”.[4] O Brasil está a atravessar um de seus mais delicados momentos históricos, onde, além dos fatores usuais, também a expansão pandêmica de uma grave doença que já ceifou mais de cem mil vidas contribui para potencializar a tensão entre os Poderes instituídos em nossa República. Dadas as motivações que hoje reverberam do Poder Executivo e levando em conta a histórica apatia do Poder Legislativo brasileiro, não é de todo forçoso crer que boa parte da solução dessa crise poderá ser alcançada por meio da atuação do Poder Judiciário. Entretanto, se assim o for, talvez não seja necessário que juízes sejam a nova mola que impulsionará a luz de nosso processo civilizatório. Se assim o for – e parece que assim mesmo será – necessitamos apenas que os juízes cumpram com o papel que lhe fora esboçado pela legalidade constitucional, nos termos do que fez constar a Constituição da República Federativa do Brasil. E talvez tenha mesmo razão Eros Grau: a justiça devemos deixar para a religião, a filosofia e a história – dos juízes, o que se exige é apenas a concretização do Direito. Rafael Corrêa Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público, com ênfase em Direito Constitucional, pela Escola de Magistratura Federal do Estado do Paraná (ESMAFE/PR) e UniBrasil. Bacharel em Direito pela Faculdade Dom Bosco (Paraná). Professor das Disciplinas de Obrigações, Responsabilidade Civil, Direito do Consumidor, Linguagem & Estratégia Contratual e Ações Constitucionais do Centro Universitário Opet - UniOpet (Curitiba/PR). Professor dos Cursos de Pós-Graduação em Direito Civil, do Consumo e Processo, bem como de Direito Imobiliário da Universidade Positivo. Editor e Coordenador Editorial da ÂNIMA: Revista do Curso de Direito do Centro Universitário Opet - UniOpet (2017/2018). Professor Convidado da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção do Paraná (ESA - OAB/PR - 2018). Pesquisador integrante do Núcleo de Estudos em Direito Civil-Constitucional da Universidade Federal do Paraná (Virada de Copérnico/UFPR) no eixo de Relações Jurídicas Contratuais e Responsabilidade Civil. Autor e colaborador de diversos artigos publicados nos principais periódicos jurídicos do país. Assessor Jurídico no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. NOTAS: [1] CAMUS, Albert. A Queda. 22ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 2019. p. 89. Não se ignora aqui, é importante frisar, que Camus faz alusão aos seus críticos algozes ao referenciar os ditos “juízes”, isso ante a discussão gerada pela publicação da obra “O Homem Revoltado” em 1951, que culminou com seu distanciamento e ruptura com o então amigo Jean-Paul Sartre. Inobstante isso, a alusão também aqui é pertinente dado cenário de crise que estamos atravessando. [2] GRAUS, Eros Roberto. Por Que Tenho Medo dos Juízes. A interpretação/aplicação do direito e os princípios. 9ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2018. p. 18 e 20. [3] BARROSO, Luís Roberto. A Judicialização da Vida e o Papel do Supremo Tribunal Federal. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 102. [4] GRAUS, Eros Roberto. Por Que Tenho Medo dos Juízes. A interpretação/aplicação do direito e os princípios. 9ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2018. p. 18 e 20.
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