Crucificação: um método rápido e barato de eliminar indesejáveis e inimigos. Sexta-feira Santa é um dia excelente para refletir sobre o sistema penal. Afinal, a Paixão de Cristo representa verdadeiro retrato histórico do uso da punição estatal enquanto instrumento de neutralização e eliminação de pessoas que ameaçam, das mais variadas formas, a estrutura vigente de poder. Jesus, o Nazareno, foi supliciado, torturado e morto na cruz, pela ação (pseudo)legítima das instâncias oficiais do Estado, em virtude de suas manifestações ideológicas incômodas. O perigoso transgressor foi julgado por disseminar ideias absurdas e subversivas de amor ao próximo e perdão aos inimigos. A verdade é que o Cristo foi mais uma das vítimas da ação punitiva do Estado Romano, o qual, “observando” rito processual sumaríssimo (acusação, julgamento e execução em um só dia!), crucificou milhares de pessoas, não como instrumento “consensual alargado” de pacificação social, mas sim como mecanismo bélico de destruição de todos que se opusessem ao poder. Tanto é assim que a crucificação, por muito tempo (até o século IV), foi utilizada como um dos principais métodos punitivos (rápido e barato):
A crucificação continha todas as características de desumanidade que uma pena poderia ter: (a) suplício; (b) tortura; (c) humilhação; (d) morte. O método sancionador representava a exaltação da crueldade em praça pública, sob a euforia alienada da massa ignara. Os registros históricos dão conta de que, em um único dia, 6.000 pessoas chegaram a ser crucificadas:
Dificilmente alguém discordará da afirmação de que Jesus não foi tratado como cidadão, como igual, mas sim como inimigo público, indesejável, merecedor da destruição total, tão só por ter se posicionado de maneira desagradável ao poder. Vale aqui colacionar – a título de curiosidade – a suposta sentença aplicada ao Cristo, a qual circula pela rede e já foi transcrita em livros, mas sem que ninguém tenha conseguido atestar a sua veracidade documental:
O que se quer expor aqui, a partir do exemplo do Cristo, é a face oculta do sistema penal. Uma face nada bela de eliminação de inimigos e indesejáveis, através de punições que buscam humilhar e destruir, seja através da "célere" crucificação ou por meio de encarceramentos desumanos que eternizam o sofrimento. A crucificação é apenas um dos tantos meios cruéis de segregação e eliminação de indivíduos selecionados pelo sistema penal, mas inúmeros outros sobrevivem ainda hoje. A questão se torna ainda mais problemática quando há a combinação maliciosa de conceitos, ou seja, quando os detentores do poder, para dar vazão ao sistema de rotulação e eliminação, ludibriam o povo com a introjeção daquilo que Zaffaroni[3] denomina “discurso popularesco” (völkisch). Na hipótese, o que ocorre é o uso do discurso penal declarado, normalmente vestido com roupagens retóricas pomposas (“Lei e Ordem”, “Guerra ao Terror”), para legitimar enganosamente um sistema de perseguição de indesejáveis e de manutenção do poder, por vezes até para fins não só de manutenção, mas de usurpação do poder. A fim de garantir o poder, criam-se inimigos, incutem-se medos, despertam-se instintos primitivos, vende-se a pena como solução heroica para todos os problemas sociais. Explora-se o medo, oriundo de uma “sociedade de risco” (Beck)[4] para legitimar a caçada aos inimigos do poder. Escravatura, inquisição, nazismo, fascismo, ditadura têm em comum a característica do uso do sistema penal (tanto na criminalização primária, quanto na secundária) como instrumento de manutenção de poder, lapidado este por estruturas sociais prontas a destruir opositores e indesejáveis ao poder. A essência é a divisão: de um lado os iguais, detentores de direitos e da proteção do Estado; de outro lado os inimigos[5], seres desprezíveis, indesejáveis, que devem ser combatidos (Zaffaroni/Conde). Voltando ao exemplo do Cristo: de um lado os que gritam “crucifica-o”, de outro lado o que clama por amor ao próximo. Para ir adiante, seriam necessárias mais algumas dezenas de páginas, mas não é este o objetivo. O importante é registrar a ideia: precisamos falar sobre crucificação! André Pontarolli Coordenador do Sala de Aula Criminal Professor de Direito Penal e Criminologia Mestrando em Direito pela UNINTER Advogado Criminal Membro da Comissão de Estágio e Exame de Ordem da OAB/PR Membro da ABRACRIM [1] ASLAN, Reza. Zelota: a vida e a época de Jesus de Nazaré. Zahar, 2013. [2] MOURTHÉ, Arnaldo. História e colapso da civilização. Rio de Janeiro: Editora Mourthé, 2014. [3]ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. [4]BECK, Ulrich. Sociedade de risco – Rumo a outra modernidade. São Paulo : Editora 34, 2011. [5] CONDE, Francisco Muñoz. Direito Penal do Inimigo. Trad. de Karyna Batista Sposato. Curitiba: Juruá, 2012. Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |