Se você está lendo esta carta, saiba que ainda tem a chance de mudar o futuro. Pois é. Eu venho de um futuro não muito distante, no século XXI, no qual os advogados criminais não são mais advogados, agora são vistos como criminosos. No mundo em que vivo hoje, as pessoas que tanto nos julgaram e nos etiquetaram com inimigos da justiça, hoje padecem nas agruras da injustiça. Essas pessoas vivem sob o julgo de uma ditadura conduzida por magistrados e promotores/procuradores. Nem mesmo aqueles que foram eleitos pelo voto popular têm liberdade para tomar decisões. Tudo deve ser “abençoado” pelo judiciário. O pior é que o mundo da comunicação em massa é tão belo que a própria população atingida os apoia e não tem a menor noção do que está fazendo e apoiando.
Não existem mais garantias no futuro onde vivo. Garantias são “chicanas processuais”, dizem nossos governantes togados, e quem nada deve não tem motivos para temer ingerências – antes vistas como ilícitas – na sua vida privada ou intimidade. Conduções coercitivas são rotina, até porque, imaginem, se intimássemos com antecedência as pessoas, elas teriam tempo de se comunicar com seus advogados e se defenderem. Um verdadeiro absurdo em detrimento da “justiça”. Nosso processo penal até prevê alguma participação da defesa. É possível passar horas escrevendo uma petição, pesquisando historicamente os avanços e retrocessos da jurisprudência, apresentando o posicionamento da doutrina mais atualizada sobre o tema objeto do feito. Mas os nossos ditadores de toga não se importam muito, às vezes nem as lêem. O conhecimento e a verdade de todas as coisas já residem em suas íntimas convicções. Aqui no mundo onde vivo, os magistrados sequer fundamentam suas decisões em elementos concretos colacionados no processo. Isso é pura perfumaria. Isso tolhe a liberdade do juiz, dizem. Na verdade, aqui se julga pela experiência. Se o juiz compreende que alguém é culpado, isso já é perceptível antes mesmo da instrução processual – até porque ele tem experiência. É tolice realizar audiências, fomentar debates. O sujeito, pelo seu próprio feitio, já demonstra sua culpa e deve ser condenado. Pronto. Aqui todo mundo é inimigo até que se prove ao contrário. E você pensando que nada podia ser pior que o AI-5. No mundo em que vivo, por exemplo, em crimes de lavagem de dinheiro – talvez não compreenda bem, no seu tempo ainda discutem sobre ele – nem é preciso de prova do crime antecedente. Basta que a imprensa tenha um dia dito que o sujeito supostamente participou de um ato ilícito no passado. A presunção é absoluta. A partir da noticia pretérita, nem é preciso que o Ministério Público comprove a origem ilícita do patrimônio ou o crime anterior. E o que dizer sobre o Ministério Público? No mundo em que vivo, eles passaram a ser o quarto poder. Na verdade, passaram a ser, junto com o judiciário, um poder só. Aqui eles simplesmente defenestraram os demais poderes. Não bastasse isso, eles detêm o poder mais incrível. Eles podem negociar com qualquer pessoa o que compreenderem cabível. É mágico. Eles podem oferecer, num grande acordo ilegal, regime aberto a quem tem 5000 anos de pena prevista em lei, com cumprimento de dois anos em prisão domiciliar. Basta que o beneficiário entregue a “cabeça” de quem lhes interessa, não sendo muito relevante se a palavra do beneficiado é verdadeira ou não – na verdade, ele nem precisa provar nada. É incrível. Eles também podem prender pessoas sem qualquer requisito na tentativa de conseguir algo chamado aqui de “delação premiada”. Eles podem fazer passeatas nas ruas, ludibriando a população, informando que criaram a “fórmula mágica” contra a corrupção. Algo como dez medidas – que na verdade são muito mais – que nada tem a ver com a corrupção, mas, sim, com a supressão de toda e qualquer garantia de defesa. Acabou a “farra” dos recursos protelatórios dizem eles – o estranho é que eles continuam não tendo prazo para os atos processuais, mas os advogados, por exemplo, devem trabalhar no recesso judiciário e não podem perder o “gigantesco” prazo máximo de dez dias corridos. Lembra do Habeas Corpus, aquele instrumento que vocês tanto lutaram para concretizar, típico de um Estado Democrático de Direito? Então. Aqui, no novo tempo, ele simplesmente virou letra morta. Quase nunca ele é conhecido e quando o é, é somente para negar a ordem. Tudo, segundo nossos tribunais, exige incursão na prova, mesmo que o constrangimento ilegal seja flagrante. E nem pense em querer impetrar o “remédio heroico” – hoje está mais para vilânico – contra decisão que nega liminar. No século XXI, que vocês tanto acreditaram que seria a época dos avanços, o próprio Tribunal Supremo do país joga para a torcida. Se algum procurador da República escreve um artigo discordando da decisão judicial, nosso STF, quase que de ofício, a suspende. Tudo para não chatear a massa de cordeiros conduzidos pelos pastores do Ministério Público e do Poder Judiciário, sobretudo de uma cidade que, em sua época, era absolutamente provinciana, Curitiba – aliás, ela continua provinciana, mas agora carrega muito mais ódio do que antes. Temos ainda, nesse mundo do futuro, uma relação promíscua entre diversos interesses privados conduzidos por uma imprensa irresponsável e parcial que interferem diretamente na atividade dos magistrados. Poucos são os juízes, no século XXI, que atuam de maneira correta, dentro dos ditames constitucionais. O que importa mesmo é a imagem perante o povo. O que interessa é ser aplaudido no supermercado e ter suas frases de efeito – quase sempre regadas a moralismos conservadores – citadas nos meios de comunicação. Um exemplo disso está que, em 1988, após muita luta e sangue de seus contemporâneos, os constituintes previram como garantia inafastável do indivíduo a prisão como última medida cabível. Ou seja, prisão somente quando houvesse condenação definitiva e imutável. E isto está expresso no texto, sem qualquer margem de dúvida. Acredita que os magistrados do século XXI simplesmente o repudiaram, como se não estivessem vinculados ao texto da Constituição? Algo completamente anacrônico e ilógico. E vocês aí acreditando que o século XXI seria tão avançado que teríamos carros voadores... Enfim. A relação com a imprensa é o supra-sumo do século XXI. Os advogados, no mundo onde vivo, sequer sabem do que o ocorre no processo. Os elementos dos autos primeiro devem chegar à televisão, em especial numa emissora chamada Globo News. No seu tempo essa rede de televisão ainda é prematura, recém-nascida, mas será, junto aos magistrados e promotores, mais um dos poderes constituídos no Brasil. Ah, já ia me esquecendo... Sabe aqueles seus colegas advogados, aqueles que morreram na defesa das liberdades, que lutaram pelo direito de defesa pleno, que foram torturados? Será tudo em vão. Aliás, no mundo onde vivo, não é incomum ver os próprios advogados exaltando os referidos magistrados e promotores/procuradores que hoje nos governam – mesmo que esses sujeitos estejam rasgando, queimando e picotando (não necessariamente nesta ordem) a Constituição criada em 1988. Alguns colegas do século XXI, talvez por cretinice ou ignorância, preferem deixar aflorar o ódio partidário ou de classe social que reside dentro de cada um para defenderem o fim do direito e a ascensão do falso moralismo como norma fundamental. Estranho, não é mesmo? Advogados defendendo o fim do próprio instrumento de trabalho? Pois é. Sei que estão vivendo uma ditadura em seu tempo, mas, acredite, nós também estamos. Desejo sorte a você, nobre colega de 1968, para que ainda consiga alterar o futuro, porque não está sendo nada fácil viver no século XXI. Douglas Rodrigues da Silva Especialista em Direito Penal e Processo Penal Advogado Criminal Comments are closed.
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