O presente artigo pretende abordar a aplicação do princípio da insignificância no ordenamento jurídico brasileiro, bem como abordar alguns problemas práticos na aplicação do referido princípio, tendo em vista a ausência de quantificação certa do valor, o que acarreta algumas decisões demasiadamente injustas.
O princípio da insignificância é fundamental no Estado Democrático de Direito, e possui a função de estabelecer limites para a tipificação penal. No que tange a tipicidade, a conduta não pode ser analisada somente sob o ponto de vista formal, não deve analisar isoladamente a conduta e a descrição do crime no tipo penal, mas sim, devem observar a relevância do bem jurídico tutelado no caso concreto e a relevância da sanção penal. Nesse sentido, o princípio da insignificância reduz a incidência e a sanção penal, mesmo sendo formalmente típicas. Nas palavras de Fernando Capez:
Segundo tal preceito, não cabe ao Direito Penal preocupar-se com bagatelas, do mesmo modo que não podem ser admitidos tipos incriminadores que descrevam condutas totalmente inofensivas ou incapazes de lesar o bem jurídico. Nesse contexto, se a finalidade do tipo penal é assegurar a proteção de um bem jurídico, sempre que a lesão for insignificante, a ponto de se tornar incapaz de ofender o interesse tutelado, não haverá adequação típica[3]. Dessa forma, conforme o princípio da insignificância, a lesão sendo insignificante não deve ser sujeita a uma intervenção do Direito Penal, e posteriormente, das graves sanções e consequências relativas à aplicação da pena, pois o princípio excluiria então a tipicidade material do delito[4] Colhe-se de decisões recentes do Supremo Tribunal Federal, bem como de outros Tribunais no país, inúmeras dificuldades de aplicação do princípio nos casos práticos, decorrente de uma ausência de posicionamentos hermenêuticos claros por parte da Suprema Corte, refletindo em decisões arbitrárias, contrárias e conflitantes. Nesse diapasão, discorre Lênio Streck:
Para ilustrar, uma decisão recente do Supremo, oriunda de uma denúncia elaborada no Estado de Minas Gerais, referente ao HC 137290, uma mulher foi denunciada por prática de crime tentado, (artigo 155, c/c com artigo 14, do Código Penal), por tentar furtar em um comércio dois desodorantes e cinco gomas de mascar, totalizando o valor de R$ 42,00. O caso chegou ao Supremo Tribunal tendo em vista que tanto o Tribunal de Justiça de Minas Gerais quanto o STJ negaram a aplicação do princípio da insignificância ao caso. A votação foi bem acirrada, e acompanhando a divergência, o Ministro Celso de Mello enfatizou que em casos como o mencionado, e tendo em vista o baixo valor dos bens e a ausência de danos, os fatos devem ser considerados atípicos[6]. Outro caso que ganhou notoriedade e também chegou ao Supremo Tribunal Federal, é o processo que tange ao HC 92.316, no qual uma mulher no Rio Grande do Sul foi condenada por dois anos de reclusão no regime semi aberto pela tentativa de furto de dois botijões de gás que totalizavam R$ 85,00 reais. A mesma havia sido absolvida no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, e diante da repercussão social, o tribunal aplicou o princípio da insignificância. Contudo, o Ministério Público Estadual apresentou recurso para reformar a decisão do tribunal e o mesmo chegou ao Supremo Tribunal[7]. No entanto, há casos mais complexos, um exemplo foi a prisão do catador de sucata em São Paulo. O mesmo estava no Centro de Detenção Provisória de Osasco, há sete meses, por ter sido denunciado por tentativa de furtar uma garrafa de pinga totalizando um R$ 1,50 de um comércio. Na época, o Magistrado não aplicou o princípio da insignificância pois o mesmo possuía duas tentativas de furto, que na realidade nem poderiam ter sido valoradas pelo Magistrado como reincidente, tendo em vista a ausência de trânsito em julgado das outras duas tentativas de furto[8]. Nesse caso, bem como o primeiro referente aos desodorantes e chicletes que chegaram ao Supremo, o valor para arcar com as custas processuais foi bem mais elevado que os casos em tese[9]. Semelhantes a esses, inúmeros casos chegam ao Poder Judiciário diariamente, e em decorrência disso, foi produzido um documentário pela Secretaria Audiovisual e TV Cultura, um documentário disponível no Youtube denominado Bagatela. O documentário foi gravado na Penitenciária Feminina de Santana e no Centro de Atendimento médico e psicológico, no qual destacam-se a história de Maria Aparecida, por possuir transtornos psiquiátricos, foi presa e torturada na prisão, onde permaneceu por um ano por furtar potes de xampu e condicionador. A outra moça Sueli no documentário, permaneceu presa por dois anos, por furtar dois pacotes de bolacha e um queijo. Num país com inúmeros casos de furtos para a própria alimentação e subsistência dos indivíduos, a sanção penal torna-se ineficaz por não analisar o problema em sua totalidade: se há pessoas furtando para se alimentar, esse deveria ser o ponto crucial de análise, e atenção dos nossos representantes. Sendo assim, o princípio da insignificância, embora esteja presente na doutrina e jurisprudência brasileira, não possui um conceito específico no ordenamento jurídico. Segundo preceitua Maurício Lopes: “nenhum instrumento legislativo ordinário ou constitucional o define ou o acolhe formalmente, apenas podendo ser inferido na exata proporção em que permitem limites para a interpretação constitucional e das leis em geral”[10]. E isso é o que gera inúmeras decisões divergentes e dificulta a aplicação do referido princípio de forma justa em casos nos quais a sanção penal mostra-se totalmente ineficaz. Ainda, Martinelli aponta que “não existem parâmetros precisos que delimitem aquilo que é significativo para o direito penal, sendo praticamente impossível listar taxativamente o que merece e o que deve ficar de fora da tutela penal”[11]. Em contraposição a essas decisões, uma palestra de um Promotor de Justiça dos Estados Unidos, apresentada no TED ficou muito conhecida por um caso julgado pelo mesmo que gerou uma repercussão imensa e uma discussão sobre a efetividade do sistema penal. Adam Foss ilustra o caso de Christopher: um garoto que foi preso nos EUA pelo roubo de 30 notbooks em uma loja de departamentos. O mesmo pretendia vender os produtos na internet, quando foi preso. O que surpreende é a decisão que Adam tomou no decorrer do processo, ao invés de condenar mais um jovem, o mesmo conversa com Christopher, faz o mesmo vender todos os notbooks roubados, devolver os valores a loja de departamentos, e mais surpreendente ainda é o que ocorre no final da palestra ministrada pelo Promotor. Christopher acompanha na plateia a palestra atenciosamente, e Adam aduz em um determinado momento do evento: Vejam, hoje Christopher é empresário e ganha muito mais que eu como Promotor de Justiça, a plateia toda ri, e por fim ele conclui: E qual teria sido o destino dele se houvesse uma condenação na data daquele fato? Adam Foss conclui sua palestra enfatizando a responsabilidade dos Promotores e refletindo sobre o próprio sistema de justiça criminal, concluindo com a frase: - (...) Por que estamos gastando US$ 80 bilhões num sistema carcerário que sabemos ser ineficaz, (...)? ‘’[12]. Segundo os dados do Conselho Nacional de Justiça, o total de pessoas encarceradas hoje no país é de 654.372 até janeiro de 2017, sendo o total de provisórios 221.054. Os processos de competência do Tribunal do Júri totalizam 31.610, sendo que o percentual dos presos provisórios oscila de 27% a 69%.Os crimes de furtos totalizam 7%. Ou seja, do total de 654.372, aproximadamente 29.974 dos presos tratam-se de pessoas encarceradas por furtos, sendo inúmeros casos possíveis de aplicação do princípio da insignificância como os mencionados no presente artigo[13]. Por fim, diante da realidade do sistema carcerário brasileiro, a quantificação ou valoração precisa acerca do princípio da insignificância, o Promotor de Justiça, poderia, ao constatar ser caso de aplicação, não oferecer a denúncia e poupar gastos ao acionar a máquina judiciária para casos que custam menos que sua própria movimentação. Casos estes que acarretam uma falta de celeridade no Judiciário, bem como a necessidade de observar princípios basilares de um Estado Democrático de Direito para a efetivação dos Direitos e garantias dos indivíduos, o princípio da insignificância é fundamental no processo valorativo e na aplicação do Direito Penal. Não posicionar-se é compactuar com suas consequências e tornar facultativa a promoção de políticas públicas e ações dos outros Poderes, com objetivo de amenizar as desigualdades sociais, e alcance de itens básicos à vida e sustento de qualquer ser humano. Andressa Tomazini Graduanda de Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina Pós Graduanda em Direito Penal e Processo Penal Aplicado e Direito Tributário Aplicado pela Escola Brasileira de Direito Pesquisadora Científica do Grupo de Pesquisa ZEITGEIST Conselheira Científica das Revistas: Artigos Jurídicos e Direito em Debate e Direito, Cultura e Processo. Paula Yurie Abiko Acadêmica de Direito do Centro Universitário Franciscano FAE, 8º período Estagiária do Ministério Público Federal Membro do Grupo de Pesquisa Modernas Tendências do Sistema Criminal Referências: [3] CAPEZ, Fernando. Princípio da insignificância ou bagatela. Âmbito Jurídico, Rio Grande jul 2009. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6369>. Acesso em: 03 nov 2017. [4] PRESTES, Cássio Vinícius D.C.V. Lazzari. O princípio da insignificância como causa excludente da tipicidade no Direito Penal. São Paulo: Memória Jurídica, 2003, p.62. [5] STRECK, Lênio Luiz. Direito penal do fato ou do autor? A insignificância e a reincidência. Consultor Jurídico, 9 out 2014. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2014-out-09/senso-incomum-direito-penal-fato-ou-autor-insignificancia-reincidencia>. Acesso em: 03 nov 2017. [6] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=335447 [7] https://www.conjur.com.br/2007-ago-31/tentativa_furto_botijao_gas_chega_supremo [8] No julgamento do Recurso Extraordinário 591.054/SC, com repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal revisou o entendimento anterior, também por maioria de votos, visando afirmar que “Ante o princípio constitucional da não culpabilidade, inquéritos e processos criminais em curso são neutros na definição dos antecedentes criminais”. STF, RE 591.054/SC, rel. Min. Marco Aurélio, j. 17-12-2014, DJe n. 037, de 26-2-2015. [9] PROCESSO: 050.07.052176 REGINALDO PEREIRA DA SILVA foi denunciado por infração ao artigo 155, “caput”, c.c. artigo 14, inciso II, ambos do Código Penal, porque, no dia 08 de julho de 2007, por volta das 05h47min, na avenida Santo Amaro, nesta Comarca da Capital, tentou subtrair para si, uma garrafa de cachaça adoçada marca Rosa, de 490 ml, pertencente ao Supermercado Pão de Açúcar, somente não tendo consumado seu intento por circunstâncias alheias à sua vontade. [10] LOPES, Maurício Antonio Ribeiro, Princípio da Insignificância no Direito Penal. 2° edição, São Paulo: RT, 2000 , p.45. [11] MARTINELLI, João Paulo Orsini. Princípio da insignificância precisa de parâmetros. Consultor Jurídico, 9 abr 2011. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2011-abr-09/principio-insignificancia-parametros-aplicacao>. Acesso em: 3 nov 2017. [12] https://www.ted.com/talks/adam_foss_a_prosecutor_s_vision_for_a_better_justice_system?language=pt-br [13] http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/84371-levantamento-dos-presos-provisorios-do-pais-e-plano-de-acao-dos-tribunais, acessado em 29 de outubro de 2017, 15:19. Comments are closed.
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