Missa Dominical. Sermão sobre a misericórdia. Olho para baixo e vejo se aproximando uma assustadora aranha marrom. Sempre tive pavor de aranha marrom, verdadeiro trauma de infância. Automaticamente me movimento para dar cabo da vida do aracnídeo e continuar rezando em paz, mas paro no meio do caminho. Algo me diz que não está certo. Dentro da igreja? Um ser vivo? Mau-agouro? Sei lá! Por via das dúvidas melhor deixar como está! O meu dilema religioso salvou temporariamente a vida da pobre aranha. Não por muito tempo. Após se deslocar mais alguns poucos centímetros, o pequeno ser venenoso teve o seu destino selado na sola do sapato de um “impiedoso” senhor de seus oitenta anos de idade. E não é para aumentar o trauma? A “maldita” aranha me pôs em dilema moral, tirou a minha atenção da missa e, para piorar, o seu abrupto assassínio me levou a refletir sobre o quão difícil deve ser a vida de um “ser” que é odiado por todos, perigoso, inútil, asqueroso e incômodo. Imediatamente eu me lembrei de Gregor Samsa, personagem de Franz Kafka que, em uma manhã, sem aparente justificativa, acordou transformado em um inseto gigante (tudo indica que uma barata), sendo demitido de seu emprego e passando a ser um peso e causa de vergonha para a sua família. O interessante na história de Gregor Samsa é que ele era um sujeito bem quisto pela família, trabalhador responsável e empenhado em contribuir com os que estavam à sua volta, mas, para o seu desespero, a transformação o impediu de realizar as atividades mais simples, mudando a sua posição de útil para inútil e, ao invés de cuidar dos seus familiares, passou a depender de pesarosos cuidados, tudo sob os olhos enojados dos que não compreendiam a sua nova condição. Através da metamorfose de Samsa, Kafka captou com perfeição o constante processo de rotulação social que passamos por toda a vida, sendo que: ou nos adequamos aos padrões e exigências sociais, recebendo uma “etiqueta” positiva (bom filho, aluno exemplar, trabalhador, honesto); ou contrariamos as expectativas e recebemos uma etiqueta negativa (filho desnaturado, adolescente rebelde, vagabundo, bandido). Relevante obtemperar que a etiqueta pode mudar instantaneamente. A ruptura com o padrão esperado, o que no caso de Gregor Samsa foi involuntário, gera incompreensão e revolta de quem segue à risca o comportamento padronizado. Quem não atende às exigências sociais, se torna um peso. As situações são as mais variadas possíveis e podem ser exemplificadas: familiares que não conseguem lidar com a dependência química do filho; filhos que abandonam os pais idosos e debilitados mentalmente em asilos; colégios que expulsam alunos rebeldes. Pessoalmente, quando leio a história de Gregor Samsa a associo imediatamente à condição de um presidiário. Eu sei que a novela de Kafka não traz nenhum indicativo neste sentido, nenhuma pista, mas se Kafka pode escrever textos delirantes, posso eu fazer interpretações delirantes também. Enfim, acredito que a figura de Gregor Samsa se aproxima muito da de um presidiário. Um presidiário muda a sua posição social de uma hora para a outra. Samsa dormiu de um jeito e acordou de outro. Os familiares que contam financeiramente com o preso, ficam desamparados. A família de Samsa dependia da sua ajuda financeira e a perdeu. O presidiário fica privado do convívio dos demais. Samsa ficava o tempo todo trancado em seu quarto. Na maioria dos casos, os familiares passam a ter vergonha do preso e até o próprio preso passa a ter vergonha de si. A família de Samsa tentava mantê-lo escondido das outras pessoas. Quando a pena é longa, no início a família acompanha e demonstra compaixão, mas a passagem do tempo e a perda de expectativa faz com que o preso vá ficando abandonado. Os pais e a irmã de Samsa passaram a ver a condição do irmão como um fardo absurdo e ficaram felizes com a sua morte. Não deveria ser assim! Nem para Samsa e nem para os presidiários! A ruptura com os padrões sociais não deveria ensejar reações tão extremadas. A incompreensão das atitudes do “outro” não deveria gerar, em resposta, uma atitude de exclusão ou de eliminação, pois ninguém está isento de uma metamorfose abrupta, muitas vezes involuntária, passando a depender da compreensão alheia. Ah, sim! Era disso que falava a missa: misericórdia, compreender e perdoar o outro! Kafka! Missa! Presidiários! Rotulação! Tudo culpa da maldita aranha marrom! André Pontarolli Advogado Criminal
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