Desde a reforma de 2011 do Código de Processo Penal, com a entrada em vigor da lei 12.403, não se fala mais na máxima “prisão preventiva ou liberdade”. Hoje o que se tem é a discussão sobre restrição cautelar da liberdade e liberdade total, conforme previsto no Título IX do atual Código de Processo Penal.
Hoje, o título sobre o tema é “da prisão, das medidas cautelares e da liberdade provisória”. Ou seja, em razão da menciona reforma processual de 2011, hoje é possível restringir cautelarmente a liberdade do imputado, sem necessariamente jogá-lo atrás das grades, utilizando-se das chamadas medidas cautelares diversas da prisão, previstas no art. 319 do CPP, que, segundo a reforma de 2011, terão preferência quando necessário o cerceamento cautelar da liberdade. Mas quero neste texto tratar especificamente sobre a famosa prisão preventiva. A prisão preventiva é derivada do direito romano, da necessidade de assegurar a aplicação da pena. Por isso, para eles, somente se poderia aplicá-la caso houvesse possibilidade de se alcançar ao final do processo uma sentença condenatória. Esta finalidade foi por nós importada pelo nosso atual Código de Processo Penal, mas nele incluímos também outras três finalidades, previstas, então, no art. 312. O legislador brasileiro quis tratar a prisão preventiva como espécie do gênero prisão provisória, com o fim de diferenciá-la da prisão pena, que é aquela decorrente de sentença penal condenatória transitada em julgado. Porém, embora a intenção do legislador fosse as melhores, a distinção conceitual entre prisão preventiva e a pena de prisão não distancia os institutos, pois a forma como a prisão preventiva é utilizada no Brasil faz com que os institutos sejam equivalentes de um mesmo objetivo, castigar. Se isso não fosse verdade, não teríamos tantas prisões preventivas convertidas em pena de prisão. Qualquer pessoa, mesmo o leigo, consegue perceber que a prisão preventiva (que de preventiva não tem nada) é, em verdade, uma antecipação da pena de prisão. É como o professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho diz: “prende-se para saber se deve prender”. Não há como chamar uma prisão tão aflitiva, como a prisão preventiva o é no Brasil, de prisão provisória. Prisão é prisão. E por isso a tal prisão preventiva deve ser evitada! Se pensarmos um pouco, podemos perceber, inclusive, que a prisão preventiva é ainda mais gravosa e aflitiva ao imputado que a própria pena de prisão. Pois nesta última, o imputado sabe o porquê está sendo preso e sua prisão depende de provas da realização do crime. Há de certa forma uma segurança jurídica. Já naquela, prende-se ainda que não haja provas da existência do crime, mas apenas meros elementos de informação, e pior, normalmente o faz por qualquer motivo, como, por exemplo, pela invocação incompreensível da garantia da ordem pública, bastando que haja bela blindagem argumentativa “fundamentando” o decreto prisional. Infelizmente, hoje no Brasil (contrariamente à lei, obviamente), para se prender alguém preventivamente basta dizer alguma coisa sobre alguma coisa, ainda que não hajam provas para segregação cautelar, mas apenas elementos de informação, colhidos na fase pré-processual, que dizem respeito apenas à possibilidade da existência do crime. Desta forma, por meio da prisão preventiva se está punindo antecipadamente o imputado. Estamos punindo antecipadamente pessoas por supostos crimes, por aquilo que podemos chamar de crime eventual, aquilo que pode ser mas também pode não ser. Com a agravante de se poder castigar antecipadamente alguém por meio de meros elementos de informação (mera possibilidade da existência do fato criminoso, como já dito), colhidos exclusivamente na fase de investigação (procedimento administrativo e sigiloso). Neste caso, se estaria punindo antecipadamente alguém sem que existisse pelo menos probabilidade da ocorrência do crime, que se adquirirá somente após o início da fase processual. Não podemos ainda nos esquecer daqueles casos em que o Juiz deixa de absolver o réu, pois que este permaneceu preso durante todo o processo. Ou ainda porque já cumpriu cautelarmente sua pena e condená-lo ou absolvê-lo seriam resultados idênticos: a liberdade. E para não ficar tão feio, melhor condená-lo. Porém, o verdadeiro desejo do legislador brasileiro, quando da recente reforma do Código de Processo Penal, era de que esta modalidade de prisão provisória fosse a menos injusta possível. Por isso exigiu que a prisão preventiva fosse aplicada somente quando todas as demais formas de restrição cautelar da liberdade realmente não fossem suficientes para proteger aquilo que se busca. Mas para se chegar à essa maturidade, é necessário distinguir e conhecer a finalidade que historicamente se deu à prisão preventiva e a finalidade que deve possuir na contemporaneidade. A primeira e mais importante distinção é a exclusão dos motivos que podem parecer injustos à sua utilização, como por exemplo, a disposição do corpo para utilizá-lo como objeto, com o fim de obter a confissão, realizar um reconhecimento ou até mesmo colher um depoimento, como ocorria no período da chamada Santa Inquisição, em que o imputado era tido como mero objeto de investigação e, por isso, era perseguido, pois detentor da verdade sobre os fatos. Historicamente o imputado era considerado pecador, e, consequentemente, detentor de uma verdade a ser extraída. Ele, mais que uma pessoa, era o instrumento do qual se dispunha para fazer justiça.[1] E a prisão preventiva (antecipada) era importante instrumento para alcançar este objetivo. Porém, a finalidade da prisão preventiva na contemporaneidade é outra. A segregação cautelar, prevista hoje no nosso Código de Processo Penal no art. 282 e seguintes, somente poderá ser aplicada quando realmente necessária, nos casos expressamente previstos em lei, quando realmente adequada ao caso concreto. Isto é, somente quando não for possível sua substituição por outra medida cautelar diversa da prisão (parágrafo 6º do art. 282 do CPP), e não com o fim de extrair alguma informação do imputado. Neste caso, ainda que o segregado tenha sua dignidade reduzida, pois toda e qualquer prisão a reduz, não perderá sua condição de sujeito de direitos, posto que evidenciado o caráter excepcional da medida no caso concreto, como a “conveniência da instrução criminal”, por exemplo. Obviamente que o art. 282 do CPP também apresenta várias falhas, mas não é sobre isso que se quer discutir. O que se quer aqui é demonstrar a errônea função que tem se dado à prisão preventiva. Afirmo então, que a barreira mais segura à decretação da prisão preventiva é considerá-la como instrumento importante e necessário (sempre levando em consideração sua excepcionalidade) para proteger a instrução processual, para proteger o bom andamento processual, quando de fato houver claro e aparente risco à instrução processual. Ou seja, exige-se uma clareza preliminar e bem fundamentada sobre a verdadeira função e motivo da segregação cautelar. Como diz o professor Jacinto Coutinho: “por que precisam antecipadamente do corpo do imputado?”. Não se pode querer o corpo do imputado antes do fim para torturá-lo, com o fim de obter uma confissão, uma delação, um reconhecimento etc. A segregação cautelar da pessoa não pode ser feita porque se quer seu corpo, mas sim e exclusivamente porque se quer proteger, como medida última, a instrução processual. A prisão preventiva não pode, então, ser destinada a satisfazer os interesses do magistrado (ou de quem quer que seja), pois, neste caso, o sofrimento que inevitavelmente dela advém constituiria sacrifício evidentemente desproporcional em ralação ao fim a qual a justificou. Para que a prisão preventiva possa ser legítima e tenha pelo menos aparência de justa, seu uso deve ser limitadíssimo, sob pena de se transformar (ou continuar sendo) um eficaz instrumento de castigo nas mãos de inquisidores de plantão. Por isso, deve-se considerar absurda a irracional automática equação entre gravidade da acusação e a necessidade de submeter o acusado a uma prisão preventiva. Nenhuma explicação poderá justificar o famigerado mandado automático de prisão cautelar. O verdadeiro objetivo da prisão preventiva (pós reforma 2011) é ser um instrumento excepcional à serviço do processo, não podendo ser utilizada quando for possível proteger o que se busca por meio de outras medidas cautelares diversas da prisão, previstas no art. 319 do Código de Processo Penal, respeitando-se, assim, sem embargos, o princípio da proporcionalidade (necessidade e adequação). Se utilizar da medida mais adequada é escolher a medida necessária para proteger aquilo que se busca, utilizando-se daquela que menor dano causará ao segregado, isto é, a que menos reduzirá sua dignidade e liberdade. Temos, neste caso, como exemplo, a fiança (que hoje é considerada medida cautelar). Acontece que infelizmente, em razão do intuito de captura do corpo e de castigo antecipado que ainda impera no desejo de muitos juízes brasileiros (inquisidores), a prisão preventiva perdeu seu caráter excepcional e, em harmonia com a estrutura inquisitória que ainda impera em nosso atual sistema processual, assumiu a verdadeira função de punição, e pior do que isso, punição antecipada. Foucault já dizia que “o inquisidor era o responsável pela busca da verdade, e sobre o imputado (herege) recaiam todos os seus esforços e atenção, uma vez que saberia dos fatos como ninguém”.[2] Mas quero apenas abrir um breve parênteses para dizer que não estou afirmando que a prisão preventiva é instrumento exclusivo do sistema inquisitório, não é isso! Este instrumento obviamente pode também coexistir com o sistema acusatório, de extrema importância, em alguns casos. Acontece que o que o define como abusivo/arbitrário ou como instrumento necessário à serviço da justiça, é o modo e a forma como é utilizado. E é no sistema inquisitório que a prisão (independentemente de processo) é a regra e sua finalidade é a busca da verdade. Por isso estamos fazendo comparação entre a atual prisão preventiva e a prisão existente no sistema inquisitório. E infelizmente juízes tem arbitrariamente se utilizado da prisão preventiva como instrumento necessário e indisponível de obtenção da verdade e do arrependimento do réu, visando que, por meio dela, o acusado se arrependa e confesse o crime supostamente praticado. Surge a partir dessa perspectiva a ambígua figura do imputado/réu, que acaba também (e principalmente) decorrendo do medo da futura condenação ou manutenção da tortuosa prisão. A tempos a doutrina tem denunciado a inadequação do conteúdo aflitivo da prisão preventiva, seja aquele entendido como imediata reação ao cometimento do crime ou como cumprimento antecipado da pena como resposta imediata à “sociedade”. Registra-se, porém, que infelizmente ainda existem inquisidores que sustentam sua utilização mesmo nos casos acima mencionados, ou seja, ainda que desnecessária ou inadequada. E qual o problema? O grande problema é que além de se estar torturando, neste caso, o custodiado, se está também, de forma muito gravosa, impedindo que exerça de forma eficaz seu direito de defesa. Isto é, a prisão, além de todos os outros prejuízos dela decorrentes, verdadeiramente impede o custodiado de um válido exercício do direito constitucional defensivo. E sabemos, a defesa no Estado Democrático é direito inviolável e indisponível. Mas de qualquer forma, é absurdo utilizarmos no Brasil, em pleno século XXI, pós Constituição da República de 1988, a prisão preventiva com finalidades medievais, de imediata aflitividade do custodiado, deixando prevalecer nos executores sentimentos irracionais, que vão além do ódio. A prisão preventiva - como o próprio nome já diz - também não pode ser utilizada como exemplo para a sociedade, posto que isso é função própria e exclusiva da pena. Seria um verdadeiro absurdo admitir que prisão provisória tivesse função educativa ou exemplar, como querem alguns, posto que é submetida ao ainda - e somente a ele - imputado (pessoa não definitivamente culpada). Posto tudo isso, podemos concluir que estamos vivendo um aparente legado religioso e inquisitório do processo penal. E isso é sem dúvidas um grande retrocesso social. Voltamos aos Tribunais do Santo Ofício. Mas hoje as ordálias foram atualizadas, e o perdão não depende mais de milagres, mas sim da eficácia da confissão ou delação, decorrente da imediata, automática e tortuosa prisão preventiva. Comparo a prisão preventiva brasileira à tortura, pois, segundo Pietro Verri, “por tortura não entendo uma pena atribuía a um réu condenado por sentença, mas a pretensa busca da verdade por meio dos tormentos”.[3] Ou seja, não sendo tratada como uma medida cautelar restritiva da liberdade necessária a proteger o processo (proteger o bom andamento processual), a prisão preventiva é forma de tortura à busca da obtenção da verdade. Assim como no sistema inquisitório - por isso afirmo estarmos retrocedendo em muito nas conquistas sociais - a lógica que estamos utilizando para prender preventivamente é a mesma que se utilizava àquela época para, por meio da tortura, se obter a confissão (que era a Rainha das provas). A lógica era baseada na intolerância e no discurso totalitário, tendo como propósito principal a intimidação da sociedade por meio da instalação de um clima de medo, de terror. O que se buscava era, em verdade, a manutenção do poder através do controle dos corpos, na tentativa de torná-los obedientes e úteis ao sistema na busca da verdade.[4] [5] Evidentemente, então, a prisão preventiva brasileira contaminou a distinção que existia (ou deveria) entre imputado e culpado. Essa contaminação está influenciando em muito a injustificada utilização da prisão preventiva como pena antecipada, ou melhor, castigo antecipado, porque no Brasil a prisão é verdadeiro castigo. Precisamos entender com urgência que a liberdade é a regra, é primado da própria existência do homem como sujeito de direitos e é mandamento constitucional. Então não basta querer relativizar este direito, pois este poder emana da lei e a ela está vinculado e merece respeito. Sua autorização está estritamente vinculada aos limites legais. Este é um dos legados da conquista do Estado Democrático de Direito. Mas, infelizmente, estamos muito longe de alcançar maturidade suficiente para saber utilizar as medidas cautelares restritivas da liberdade de forma a não violar este Estado Democrático de Direito. Jeffrey Chiquini Advogado Especialista em Direito Penal e Processo Penal Professor de Direito Penal da Faculdade OPET e de cursos preparatórios para concursos Referências: [1] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. In: Revista de informaões legislativas. 2009. [2] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. trad. Raquel Ramalhete. 19. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. [3] VERRI, Pietro. Observações sobre a tortura. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 77. [4] KHALED JUNIOR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013. [5] “Nas cerimônias do suplício, o personagem principal é o povo, cuja presença real e imediata é requerida para a sua realização. Um suplício que tivesse sido conhecido, mas cujo desenrolar houvesse sido secreto, não teria sentido. Procurava-se dar o exemplo não só suscitando a consciência de que a menor infração corria sério risco de punição: mas provocando um efeito de terror pelo espetáculo do poder tripudiando sobre o culpado”. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. trad. Raquel Ramalhete. 19. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. Comments are closed.
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