São bem conhecidos os resultados do impacto que os estudos da sociologia do desvio, mais especificamente os pautados pelo interacionismo simbólico, tiveram sobre a criminologia. Eles operaram uma alteração de paradigma, uma mudança no objeto de pesquisa desta área do conhecimento. Permitiram que a criminologia passasse a se ocupar com os processos de criminalização primária e secundária.
São também bem estabelecidas as análises do impacto que a mídia exerce sobre esses processos de criminalização. Por exemplo, é fácil notar que a “imagem” do traficante é “fabricada”, não só pelo modo como são noticiadas as apreensões de substâncias criminalizadas, como também pela própria indústria do entretenimento, originando “meta-regras” que, por sua vez, formam o estereótipo daquele, com base na cor de pele, local de moradia, idade e outras características específicas, muitas vezes bastante distantes da realidade. Não se pretende aqui repassar todos estes conceitos, já bem assentados. O que pretendo é questionar se o estudo do impacto dos meios de comunicação na atualidade, numa sociedade cada dia mais estruturada sobre o produto destes meios, permite uma alteração metodológica, uma alteração na interpretação dada ao poder de construção social que esses possuem. A hipótese que desejo levantar é a de que a mídia funciona hoje com mecanismos aptos a serem percebidos como uma terceira via dos processos de criminalização. Ao exercer, concomitantemente, os dois processos (primária e secundária), ela pode ser compreendida como gênese de um processo de criminalização terciária. Se quisermos, uma concentração dos dois processos anteriores, criando um terceiro mais efetivo, mais veloz, mais insidioso e mais minucioso. Para tentar fundamentar o que está sendo proposto, trarei exemplos de como a mídia não apenas influencia os processos de criminalização primária e secundária, mas efetivamente dá origem a estes. Com fins didáticos, antes disso, cabe relembrar o que é entendido como processos de criminalização. Não se deve confundir os conceitos de “desvio primário” e “desvio secundário” com processos de criminalização primária e secundária. Quando se fala, dentro do espectro de estudos da sociologia do desvio, em desvio primário, reporta-se, conforme leciona Baratta,
Dito de outra forma, o desvio primário é estudado na tentativa de compreensão dos fatores biopsicofísicos e sociais, que conduzem um indivíduo ao cometimento de ações reprovadas em determinado contexto social. Estes estudos, que podem hoje ser considerados fonte de uma microcriminologia, foram o principal paradigma de pesquisa da criminologia etiológica. Os desvios secundários, de compreensão ainda mais complexa, precisam ser estudados com base no fato de que
Desvio secundário, portanto, se refere aos estudos dos efeitos que a repressão exerce e sua capacidade em proporcionar a “energia” específica e necessária para posteriores desvios. De algo diferente se está tratando quando são mencionados processos de criminalização primária e secundária. O objeto de estudo, nos processos de criminalização primária, são os meios, as influências, os interesses, os modos, os fundamentos, os fins propostos e ocultos, pelos quais determinadas condutas são eleitas para comporem o rol daquelas tipificadas pela legislação penal. De modo mais simples: pesquisasse aqui as determinações para seleção de condutas a serem consideradas crime. Já no processo de criminalização secundária, debruça-se o criminólogo (crítico) sobre os mecanismos pelos quais determinados indivíduos são selecionados pelas diversas agências de repressão para serem objeto da persecução penal e correspondente sanção. Estes mecanismos se estruturam, conforme os estudos mostraram, sobre um “código” não escrito, uma pauta definida por “meta-regras”, permitindo a todos os atores que atuam no papel punitivo selecionarem, de forma significativamente coesa, os mesmos “tipos” de indivíduos. Em alguns momentos históricos estes mecanismos funcionaram de modo abertamente declarado, como ocorreu sob o regime nazista, com a persecução de inimigos identificados de acordo com a etnia, cor de pele, etc. Esta, porém, é a exceção, sendo apenas possível em regimes não democráticos. Conforme já mencionado, muito se pesquisou e escreveu sobre a influência que a mídia exerce sobre estes processos. Em especial no tocante ao segundo momento, fartos são os estudos que demonstram o papel estigmatizante, criador de presunções de culpa e antecipador de sentenças criminais que a mídia á capaz de concretizar. Porém, seu poder parece hoje exacerbado. Observa-se hoje uma tendência crescente de virtualização da existência social, em que a simbiose entre indivíduo e máquina (progressivamente mais portátil) é uma realidade empírica[3]. A capacidade dos meios de comunicação em massa de criar estruturas estruturantes de percepção social, aponta a necessidade de enxergá-los como algo mais do que meros coadjuvantes nos processos de criminalização. Exemplificando o modo como a mídia dá origem ao processo de criminalização primária, pensemos em dois momentos de gênese legislativa recentes no Brasil. Em primeiro lugar destaque-se a criação da Lei 11.340/2016 (Maria da Penha). De pronto, é preciso salientar que não é objetivo deste texto valorar as leis mencionadas ou mesmo a maneira como foram originadas. Cumpre apenas destacar o papel da mídia como condição necessária para que elas surgissem. Não se questiona o fato de que a Lei 11.340/2016, que efetuou mudanças significativas no código penal, marcadamente no tocante ao agravamento da pena de violência doméstica, criação de medidas protetivas com fins preventivos, possibilidade da prisão em flagrante e preventiva, representou uma importante conquista, do ponto de vista da necessária proteção à mulher. O fato que se deseja destacar é que a criação da lei só parece ter sido possível devido à forte campanha midiática que orbitou os esforços de Maria da Penha Maia Fernandes na busca pela responsabilização penal de seu ex-marido, em relação às duas tentativas de homicídio cometidas contra ela. Em que pese o papel desempenhado pela condenação do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos, ocorrida em consequência do debate acerca do caso de Maria da Penha, seria possível citar inúmeros exemplos em que, mesmo havendo tal manifestação da Corte, alterações legislativas não ocorreram. Exemplificando: a mesma Corte condenou o Brasil em relação à situação observada no Complexo Penitenciário Pedrinhas, em São Luís, no Maranhão (constatada em 2013). A prova mais clara de que ações materialmente consideráveis (legislativas ou outras) para sanar o problema não foram tomadas é o fato de que, no início de 2017, o país assistiu mais uma vez a espetáculos de horror (tão ou mais grave do que ocorria em Pedrinhas) perpetrado no interior de unidades prisionais em condições absurdas, desta vez em Manaus e no Amazonas. O segundo exemplo, que apenas pontuo aqui para não me delongar, é o caso da criação da Lei 12.737/12 (mais uma lei “batizada”- Lei Carolina Dieckman). Neste caso, não só ficou claro o uso do poder midiático como condição sine qua non para criação da lei, como o próprio texto desta, na visão de muitos criminalistas, legislou um campo onde a necessidade de uma “nova” norma não ficou comprovada. Sem entrar no mérito deste argumento, resta claro que a alteração trazida pela Lei 12.727/12 não teria adentrado a pauta do Poder Legislativo nem pela via da pressão popular, nem pelos interesses de formação de “capital político”, não fosse o papel desempenhado pelos meios de comunicação em massa. Assim, a questão é: não seria a mídia que efetivamente coloca em marcha o processo de criminalização primária em muitos casos? Ainda: não seria importante enxergar os meios de comunicação em massa como uma terceira via dos processos de criminalização? Seguindo adiante, analisa-se o poder midiático na gênese de processos de criminalização secundária. Já foi assentado neste texto que a mídia contribui, influencia a formação de estereótipos. Porém, mais uma de vez se afirma que ela faz muito mais. Ela não apenas reforça estigmas. Ela cria. Ela opera a seleção dos indivíduos a serem criminalizados. Não se está aqui querendo atribuir aos meios de comunicação um plano conspiratório ou sua instrumentalização por uma organização superior “maligna”. Constata-se apenas o fato de que, devido a relevância de sua participação no social, ela não se restringe a incrementar os estigmas originados por outros meios, sendo capaz de efetivamente criar estes estigmas. Para provar este argumento, pensemos no momento atual em nossos país. A corrupção, se estudada com seriedade, se mostrará sistêmica em nossa história. Na realidade, conforme bem atestou em sua palestra o professor da Universidade de Harvard, Mark Tushnet[4], o problema da corrupção sistêmica parece ser a regra em quase todo Ocidente, não a exceção. Também não se sustentam os argumentos de que o montante ou o descaramento embasaram a recente “luta contra corrupção”. Sem adentrar ao debate político, pretende-se aqui afirmar que a eleição da figura de corrupto, da aplicação da etiqueta de corrupto, tem sido feita a partir do papel desempenhado pela mídia. Mais do que isso, os principais meios de comunicação em massa, à medida que as operações da polícia vão sendo desenroladas, escolhem os fatos e as personalidades que virão à tona, obedecendo a interesses que não se fazem claros e claramente não traduzem uma seleção “imparcial”. Desta forma, fabricam o “inimigo social”, permitindo, de uma forma ou de outra, mecanismos de estigmatização e criminalização específicos. Não desejo prolongar este segundo argumento, com o fim de não permitir que este ensaio fique ainda mais longo. Encerro com duas observações. A primeira no sentido de que compreendo que o proposto aqui não é algo absolutamente novo. Acredito ter deixado isso bem claro durante o texto. Porém, parece correto afirmar que a abordagem sugerida, ou a metodologia proposta, possa significar uma nova maneira de se estudar processos de criminalização cuja compreensão é fundamental para os esforços de modificação da política criminal vigente. Em segundo lugar, reconhece-se que os argumentos aqui propostos, como base para as afirmações feitas, não receberam o cuidadoso estudo empírico necessário para a proposta de uma metodologia científica no campo da criminologia. Isto se deu pelo fato de que estas ideias são apenas o esboço de algo a ser melhor trabalho no futuro. As críticas que sobrevierem a este texto poderão direcionar os estudos a serem realizados neste sentido. Paulo R Incott Jr Advogado Mestrando em Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Membro do IBCCRIM Membro do Abracrim Referências: BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 6ª ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2014 BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução Maia Luiza X. de Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008 [1] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 6ª ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2014. p. 90 [2] Idem [3] Basta uma breve “foto” de um aglomerado de pessoas para percebermos o número daquelas que estará, independentemente da relevância do que estiver acontecendo à sua volta, concentrada em seu smartphone ou semelhante. [4] Realizada na sede da AbdConst – Academia Brasileira de Direito constitucional, em Curitiba/PR, no dia 03/05/2017, às 19h. Comments are closed.
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