Cenário hipotético: acusado é condenado em processo no qual determinada prova figurou como elemento cabal para o desfecho do feito. Mesmo pugnando por sua inocência durante toda a instrução processual, a prova em questão ganhou relevância no contexto probatório, resultando no reconhecimento da culpa do acusado. A sentença, portanto, é condenatória.
Intimadas as partes do conteúdo decisório, a defesa manifesta interesse em recorrer tempestivamente. O Ministério Público se dá por ciente da decisão, optando por não recorrer. Na sequência, a defesa é intimada a fim de que apresente suas razões de apelação. É nesse momento que uma reviravolta fática acontece: aquela prova contundente, que serviu como principal (se não único) elemento justificante da condenação do acusado, apresenta sua verdadeira faceta – na realidade, ela comprova a inocência do réu. O que caberia fazer a defesa numa situação dessas? De que modo poderia pleitear para “revalorar” a prova considerando que a fase instrutória já encerrou? O juiz de primeiro grau já exarou sua decisão, condenando o acusado. Poderia cassar a própria decisão ao considerar o novo quadro ali instaurado? De que modo esse novo panorama pode vir a ser conhecido no processo? É possível reabrir a instrução, mesmo já finda com sentença prolatada? Caberia ao Tribunal conhecer e se manifestar sobre a prova nova? De que modo deve se dar a juntada dessa prova no processo? Como se observa, diversas são as dúvidas que permeiam essa situação hipotética – mas não distante da realidade, uma vez que perfeitamente possível sua ocorrência. A ideia do presente texto é refletir sobre a(s) possibilidade(s) de como a defesa deveria agir em uma situação como a ora apresentada. Para melhor ilustrar a situação, suponha que a prova em questão seja o depoimento de alguém. A vítima, por exemplo. A jurisprudência dos tribunais confere uma força especial a esse tipo de prova em determinados crimes, como nos delitos sexuais e nos cometido contra o patrimônio quando há violência empregada contra a pessoa, mesmo quando essa prova figure como a única que aponte para a autoria recaindo contra o acusado. Veja alguns exemplos:
Dentre as situações possíveis, poderia se apontar para uma em que a vítima teria relatado uma violência sofrida, imputando ao réu a prática do delito. Com base nesse depoimento é que a sentença condenatória teria se pautado. Ou ainda outro caso: “A” foi acusado da prática do crime de roubo qualificado ocorrido no dia 10/01/2018, às 13h45, na cidade de Curitiba/PR, e, após a instrução, sobrevém sentença condenatória. Em grau de recurso, “A” consegue, então, o cartão ponto da empresa onde trabalhava à época, comprovando que estava na escala de serviço no mesmo dia, das 8h às 18h, na cidade de Guarapuava/PR. Entretanto, por alguma razão, constata-se que o depoimento da vítima, referente ao primeiro caso hipotético, foi mentiroso. Por qualquer que tenha sido a motivação, o fato é que a vítima relatou inverdades em seu depoimento judicial, uma vez que nem mesmo a violência ocorrera, resultando assim numa injusta e indevida condenação. O acusado é procurado pela irmã da vítima, esta que, arrependida, propõe-se a reparar a injustiça cometida. O advogado então é informado pelo seu cliente sobre a nova situação, inclusive sobre o desejo da vítima em comparecer ao seu escritório para lhe reportar o ocorrido e buscar orientações sobre como agir. Pergunta-se: o que fazer e de que modo operar? O recurso de apelação criminal está interposto. Como proceder nesta situação e que há a possibilidade de se ter contato com a “suposta vítima”? Qual seria a reação eventual do agente ministerial? Até que ponto se pode confiar em alguém que diz já ter mentido sob o crivo do contraditório e da ampla defesa? Enquanto isso, o prazo para apresentação das razões recursais está fluindo... Antes de discorrer sobre às possíveis formas de instrumentalização, indispensável mencionar a preocupação que o advogado deve ter em recepcionar a nova prova e a “testemunha”. Você não sabe se esta pessoa está sendo coagida, se de fato diz agora a verdade ou se possui algum problema de ordem psicológica. É indispensável que se tenha em mente, antes de realizar qualquer diligência, que se está quase diante de uma pessoa que não aspira confiança – mentirosa, por assim dizer. O termo é pesado, mas o que se espera de alguém que diz ter mentido sobre fatos complexos (em um ato formal - audiência de instrução criminal), manteve o embuste durante toda a instrução processual e não percebeu a dimensão e amplitude dos fatos (existência de processo penal e demais desdobramentos) decorrentes de seu ato? No mais, na hipótese de que esta pessoa esteja imbuída em boa-fé, querendo reparar os detrimentos causados (sentença condenatória), também é pouco plausível que o Ministério Público, ou até mesmo o magistrado que presidiu o feito, aceitarão os fatos “novos” sem qualquer formalidade ou resistência. É aqui que reside o perigo e, portanto, o advogado deve se blindar (não existem honorários que paguem o sossego ético-profissional). A chance de ser acusado pelo crime de coação de testemunha (artigo 344 do Código Penal) é grande, principalmente se o promotor for combativo e estranhar o proceder defensivo. Embora o escritório de advocacia seja inviolável (artigo 7º, II, da Lei n.º 8.906/94), entender que este conceito pode ser relativizado - a qualquer momento - é indispensável. Dependendo da situação em que as coisas ocorreram, pouco importa como os fatos se deram, você terá muita dor de cabeça até provar a verdade. Evitar receber qualquer testemunha em seu escritório (o ideal é que não se faça) é uma sugestão sempre válida. Se fizer, por qualquer que seja o motivo ou situação, o ideal é de que esta pessoa lhe procure, sem qualquer indução ou circunstância que possa lhe causar um constrangimento futuro e deixe as coisas às claras. Sobre a questão principal - superveniência de prova nova em sede de recurso -, poder-se-ia afirmar que o Tribunal poderia conhecer da nova prova e julgar de acordo com a sua superveniência aos autos, posto que o Estatuto Adjetivo Penal assim o faculta. Dispõe o artigo 616 do Código de Processo Penal que “no julgamento das apelações poderá o tribunal, câmara ou turma proceder a novo interrogatório do acusado, reinquirir testemunhas ou determinar outras diligências”. É a faculdade que o Tribunal tem de fazer ou não fazer, diante do quadro probatório produzido nos autos. Não é o caso dos exemplos ditos aqui. Veja-se um exemplo disso:
Assim, quando se fala sobre o tema “provas” no processo penal, não se pode olvidar a relação que ela detém com o malsinado princípio da busca da verdade real. É nesse sentido a permissão prescrita no código. NUCCI alerta, porém, que as diligências facultadas ao Tribunal no art. 616 do CPP “devem ser meramente supletivas, voltadas ao esclarecimento de dúvidas dos julgadores de segunda instância, não podendo extrapolar o âmbito das provas já produzidas, alargando o campo da matéria em debate, pois isso configuraria nítida supressão de instância e causa de nulidade”[1]. Portanto, em se tratando de prova nova, da qual não teve conhecimento o juiz de primeiro grau, não pode o tribunal simplesmente: i) admiti-la; ii) produzi-la; iii) valorá-la, sob pena de se não ter um duplo grau de jurisdição, garantia do acusado. Mesmo porque o efeito devolutivo da apelação criminal importa em transferir ao Tribunal ad quem o conhecimento da matéria já submetida ao julgamento em instância inferior. Pelo exposto, entendemos, em ambas as situações, dada a amplitude que a prova nova pode alcançar para o deslinde do processo, que o Tribunal deve converter o feito em diligência, desconstituindo a sentença condenatória, reabrindo a instrução processual em primeiro grau para que a prova possa ser, agora sim, admitida, produzida e valorada[2], posto que direito da parte. Não seria caso de revisão criminal, pois o trânsito em julgado ainda não se estabeleceu. A nova prova, apresentada isoladamente, mesmo que atendida determinada formalidade (relato feito em cartório, por exemplo, a fim de se constar o depoimento em ata notarial), não teria força probante suficiente, uma vez que para tanto deveria ser judicializada – até mesmo em respeito ao contraditório, uma vez que a acusação possuiria interesse em (re)inquirir tal testemunha. Assim sendo, não se vislumbra alternativa eficaz o suficiente que não aquela apontada como a solução possível, de modo que competiria à defesa pugnar para que assim fosse procedido em sua manifestação naquele prazo recursal. Ygor Nasser Salah Salmen Advogado Especialista em Direito Penal e Processual Penal Membro da Comissão de Defesa das Prerrogativas da OAB/PR Membro da Comissão de Advocacia Criminal da OAB/PR Associado da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas (ABRACRIM) Associado da Associação Paranaense de Advogados Criminalistas (APACRIMI) Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) E-mail: [email protected] Edson Luiz Facchi Junior Advogado Especialista em Ciências Criminais Membro da Comissão de Advogados Iniciantes da OAB/PR E-mail: [email protected] Paulo Silas Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Mestrando em Direito - UNINTER Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Membro da Comissão de Defesa das Prerrogativas da OAB/PR E-mail: [email protected] [1] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado – 16. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2017, p.1345. [2] O direito à prova tem, segundo Gustavo Badaró, cinco momentos distintos: i) investigação; ii) propositura; iii) admissão; iv) produção; e v) valoração. BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal – 3. ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 396. Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |