Artigo do colunista Iuri Machado no sala de aula criminal, vale a leitura! "O livro O bolsonarismo e a repetição do mesmo: atualizações de um fascismo em verde e amarelo, de Domingos Barroso da Costa, é uma obra que não apenas descreve o bolsonarismo, mas o interroga em sua gênese, estrutura e permanência, desvelando seus laços com a tradição autoritária brasileira e suas expressões contemporâneas. Ao realizar uma leitura psicanalítica, o autor nos convida a um tipo de enfrentamento que não se contenta com um diagnóstico superficial. Trata-se de entender como os afetos — medo, ressentimento, ódio, sentimento de perda — são organizados como sintomas sociais de uma subjetividade marcada pelo desamparo, pela violência não elaborada e por um imaginário religioso que promete ordem e sentido onde o caos já é regra". Por Iuri Victor Romero Machado Como é possível que, após um governo marcado por destruição institucional, necropolíticas e escândalos de corrupção, uma parte significativa da sociedade brasileira continue a sustentar, repetir e gozar o bolsonarismo? Que desejo é esse que, apesar do fracasso evidente, insiste — e, ainda por cima, goza — da repetição do mesmo?
O livro O bolsonarismo e a repetição do mesmo: atualizações de um fascismo em verde e amarelo, de Domingos Barroso da Costa, recém-lançado pela Editora Dialética, é uma convocação à escuta dos sintomas do nosso tempo. Fruto de pesquisa de doutorado, o texto propõe uma leitura psicanalítica do bolsonarismo, mobilizando categorias como “repetição”, “massa”, “gozo” e “estranhamento” para compreender o modo como esse fenômeno político-social capturou afetos, corroeu vínculos e organizou uma gramática autoritária sob verniz religioso. A tese é reveladora: o bolsonarismo não é um desvio nem um acidente de percurso, mas uma atualização brasileira do fascismo estrutural que persiste na modernidade. O autor sustenta que, no Brasil, essa repetição se ancora em uma sociabilidade fundada na escravidão, cuja permanência atravessa instituições, subjetividades e ideologias. Ao articular psicanálise, teoria política e crítica cultural, Domingos Barroso oferece uma chave de leitura essencial para os juristas que se inquietam com o papel do Direito em tempos de colapso democrático. Conforme proposto por Domingos Barroso, o bolsonarismo não se compreende apenas por categorias clássicas da ciência política. O autor adentra o terreno da psicanálise para descrever a emergência de uma massa afetiva e religiosa, orientada por uma lógica de repetição e gozo, cujo enraizamento no imaginário social brasileiro remonta à própria fundação do país. A repetição, no campo psicanalítico (em Freud e Lacan), não se refere a uma simples recorrência. Ela aponta para o retorno de uma cena traumática que nunca se resolve, isto é, uma atualização do mesmo sob novas formas. Assim, o fascismo bolsonarista não se trata de uma ruptura, mas uma reencenação de velhos modos de dominação, entre eles o autoritarismo, a negação do outro e a idealização de um Pai forte, agora reeditado como “mito”. A articulação entre religião e política é central. O autor demostra que o bolsonarismo se valeu de elementos das teologias da prosperidade, da dominação e mesmo de uma teologia militar. As crenças não são apenas discurso, mas produzem efeitos psíquicos e estruturam identificações. O sujeito desamparado encontra sentido em uma fé que o vincula a uma comunidade imaginária e a uma cruzada moral. O ódio e o ressentimento que emergem dessa vinculação não são acidentais, mas sim alicerces. O autor recorre à literatura, especialmente ao clássico Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski, para explicitar os dilemas dessa fé política. A figura do Grande Inquisidor serve como alegoria de líderes que manipulam a crença popular para manter o controle, ainda que ao custo de colocar o próprio Deus na fogueira. Mas manipulação não é cega, ela é sabida e é gozada. Como escreve o autor, não se trata apenas de uma massa de crentes alienados, mas também de uma cúpula de sujeitos de má-fé, plenamente conscientes do poder destrutivo que operam. Nesse sentido, o livro rompe com leituras que reduzem o bolsonarismo à ignorância (essa é apenas a superfície). No subterrâneo, há estruturas de gozo, identificação e fantasia que explicam por que a racionalidade democrática fracassa diante da velocidade afetiva da mentira. As fake news, como mostra o autor, não precisam ser críveis, mas apenas contagiosas. Domingos Barroso demonstra que os afetos bolsonaristas são organizados em torno de fantasias de pureza, perseguição e revanche. A racionalidade, nesse jogo, aparece como elemento desagregador: ela introduz a dúvida onde a convicção exige unanimidade. De tal modo, a racionalidade não penetra nas bolhas afetivas; elas estão blindadas à escuta, tal qual o próprio Freud descobriu ao abandonar a teoria da sedução e admitir a força da realidade psíquica. Ao aprofundar-se nos alicerces da subjetividade brasileira, Domingos não hesita em apontar o bolsonarismo como um desdobramento de longa duração da sociabilidade nacional. O fenômeno não é um desvio recente, mas expressão de um modelo histórico de dominação que se ancora no paradigma escravocrata. Como afirma o autor: “temos que o bolsonarismo encontra suas origens nos mitos constitutivos da própria sociabilidade brasileira, o que nos remete aos modos de dominação escravocrata que conferem brasilidade ao Brasil.” (2024, p. 176) O bolsonarismo está menos interessado em destruir a democracia do que em reafirmar o pacto fundacional excludente do Brasil: um pacto onde a hierarquia, o privilégio e a impunidade do opressor sempre foram normalizados. Nesse sentido, os discursos de ódio, a hostilidade ao pluralismo e a recusa da alteridade são atualizações de um modo histórico de ser. Ao explorar esse campo de forças, Barroso recorre a conceitos psicanalíticos para interpretar o inconsciente político nacional. O bolsonarista típico não é apenas alguém convencido, mas sim alguém atravessado por afetos que conferem sentido à sua existência. Como pontua o autor: “as características que singularizam o bolsonarismo [...] podem ser encontradas no âmago da brasilidade que habita o recôndito de nossas subjetividades.” (2024, p. 176) Essa brasilidade, marcada pela negação da escuta, pela desconfiança do outro e pela obediência a lideranças carismáticas e violentas, aparece como um terreno fértil para a formação de massas autoritárias. A “massa bolsonarista” é apresentada não como aglomeração passiva, mas como corpo pulsante, organizado por identificação afetiva com um líder idealizado, ao qual se atribui o lugar do Pai que pune, salva e restitui sentidos perdidos. No Brasil, o apelo bolsonarista não está apenas nas promessas de ordem, família e propriedade, mas em sua capacidade de ressoar com um inconsciente social que naturaliza a violência contra os pobres, a subalternização de grupos racializados, o desprezo pela educação e a repulsa ao pensamento crítico. Por isso, segundo DOMINGOS, o enfrentamento do bolsonarismo exige mais do que a defesa institucional da democracia. É preciso disputar as estruturas de sentido que o sustentam, reconhecendo que a razão democrática, sozinha, não se impõe sobre afetos estruturados por séculos de desigualdade legitimada. Como alerta o autor, “a razão nada pode contra os afetos se deles não se faz acompanhada.” (2024, p.180) Essa proposição convoca o campo jurídico, a psicanálise e a crítica cultural a pensar estratégias que não se limitem à informação e à denúncia, mas que toquem o sujeito em suas dores, fantasmas e esperanças. A política, afinal, é também um trabalho de escuta do inconsciente coletivo. Considerações finais: escutar o Brasil, atravessar o bolsonarismo O livro O bolsonarismo e a repetição do mesmo: atualizações de um fascismo em verde e amarelo, de Domingos Barroso da Costa, é uma obra que não apenas descreve o bolsonarismo, mas o interroga em sua gênese, estrutura e permanência, desvelando seus laços com a tradição autoritária brasileira e suas expressões contemporâneas. Ao realizar uma leitura psicanalítica, o autor nos convida a um tipo de enfrentamento que não se contenta com um diagnóstico superficial. Trata-se de entender como os afetos — medo, ressentimento, ódio, sentimento de perda — são organizados como sintomas sociais de uma subjetividade marcada pelo desamparo, pela violência não elaborada e por um imaginário religioso que promete ordem e sentido onde o caos já é regra. Mais do que um alerta, o livro é um chamado social: não há saída democrática sem escuta, sem disputar o terreno simbólico e afetivo onde o bolsonarismo se construiu. Reconhecer que o fascismo não é apenas um regime político, mas uma possibilidade subjetiva, exige da comunidade jurídica e intelectual mais do que repulsa. Demanda coragem para olhar para dentro. A crítica de Domingos Barroso da Costa não é desesperançada. É precisa, profunda e, acima de tudo, necessária. Porque, como ele mesmo aponta, “a razão nada pode contra os afetos se deles não se faz acompanhada.” E se queremos construir uma democracia que sobreviva ao fascismo, precisaremos, antes, aprender a escutar o Brasil. Iuri Victor Romero Machado Advogado criminalista. Especialista em Direito Penal e Processual Penal; especialista em Direitos Humanos. Membro Relator da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da OAB/PR. Instagram: @prof.iurimachado Referências Bibliográficas BARROSO DA COSTA, Domingos. O bolsonarismo e a repetição do mesmo: atualizações de um fascismo em verde e amarelo. Tese (Doutorado em Psicologia) — Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, 2024.
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