Artigo de Débora Góes no sala de aula criminal, vale a leitura! ''O direito penal tornou-se um instrumento de segregação nas mãos das classes dominantes, gerando consequências que serão exploradas no decorrer do presente trabalho, entre elas a seletividade penal, a formação de facções, o alto índice de reincidência e a manutenção do abismo social existente entre as classes, fatos estes que atingem não somente a esfera íntima dos presos, mas sim toda a coletividade''. Por Débora Góes Se antes de cada ato nosso nos puséssemos a prever todas as consequências dele a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar
Ensaio sobre a Cegueira - José Saramago
Consoante com o mestre Saramago, se talvez pudéssemos vislumbrar, ainda que como um lampejo, as consequências de nossos atos, porventura, muitas coisas seriam diferentes. Prova disso, é a falibilidade do sistema penal proveniente da ilusão disseminada ao longo das décadas acerca das funções e finalidades da pena e do modo de punir do Estado. Nesse cenário, o documentário intitulado “Sem Pena” busca despertar questionamentos no que tange a atual situação carcerária brasileira e os problemas da justiça criminal em nosso país. Para tanto, nos leva em uma viagem por dentro de penitenciárias, expondo a desumanidade a qual os detentos são rotineiramente submetidos, bem como as dificuldades na obtenção de direitos pelos encarcerados, inclusive no que tange o devido processo legal. Tal documentário foi produzido por Eugenio Puppo, durante o período de cinco anos, sendo premiado na categoria de melhor filme pelo júri popular do Festival de Cinema de Brasília no ano de 2014. Diante do exposto, o presente trabalho visa debater algumas das problemáticas apontadas pelo documentário no que diz respeito à morosidade do sistema de justiça criminal, a seletividade penal no processo de criminalização, o caos do encarceramento em massa e os altos índices de reincidência. Fatos estes analisados sob um viés crítico do direito penal e da criminologia.
Primeiramente, antes de analisar as falhas do sistema penal e as consequências negativas dele advindas, se faz necessário entender qual foi o caminho percorrido até chegar ao colapso no qual se encontra atualmente. Desse modo, será discorrido brevemente sobre o papel da pena privativa de liberdade ao longo da história e como as teorias positivistas da pena contribuíram para o caos atual. Segundo Durkheim[1] “as relações humanas são contaminadas pela violência, necessitando de normas que as regulam", para Durkheim o delito é visto como um fenômeno normal de todas as sociedades, algo que sempre existiu e sempre existirá. Sob essa perspectiva, desde as primeiras civilizações o delito se faz presente, o que mudou ao longo dos séculos foi o modo de concebê-lo e, posteriormente sancioná-lo visando a manutenção da paz social, da ordem e do bom convívio entre cidadãos. A prisão remota suas origens à Idade Média, quando era utilizada como um meio de custódia dos acusados à espera de julgamento, bem como destinada aos clérigos rebeldes. Eram chamadas de prisões eclesiásticas as destinadas aos clérigos, cujo objetivo era propiciar a meditação e posterior redenção. Neste momento já pode-se visualizar algumas das funções conferidas às prisões que continuam até os dias atuais, inclusive o vocábulo penitenciária tem sua origem no direito canônico e na ideia de penitência. A utilização de prisões como forma de cumprimento de penas restritivas de liberdade tem início na segunda metade do século XVI na Inglaterra, quando houve a criação de instituições de correção, cujo objetivo era proporcionar a recuperação do infrator através do trabalho e da disciplina, bem como servir como forma de prevenção geral para os membros da sociedade. Com o liberalismo, ao longo do século XVIII, as penas corporais e capitais começam a ser colocadas em cheque devido a sua imprestabilidade para a sociedade e para a economia. Nesse cenário, a sanção penal na forma de pena privativa de liberdade assume o papel de protagonista como meio de controle social. Essa modalidade de pena teve seu apogeu a partir do século XIX, como meio de reabilitar o ser desviante para ressocializá-lo e posteriormente inseri-lo na sociedade, tais objetivos foram avigorados pelas teorias positivas da pena, criando os mitos acerca da pena que perduram até os dias atuais. Exemplo disso, é o artigo 59, caput, do Código Penal, bem como o artigo 1º da Lei de Execução Penal que ratificam a adoção da ideologia da defesa social e finalidade ressocializadora da pena aplicada ao criminoso[2]. Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime O artigo 1º da Lei n.º 7.210/84 dispõe: Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado. Entretanto, ao observar a atual situação do sistema penal brasileiro é possível perceber as consequências de se ter acreditado, quase que cegamente, na pena como sendo a melhor forma de controle social para a redução da criminalidade e recuperação do ser delinquente, maximizando a aplicação do direito penal. O direito penal tornou-se um instrumento de segregação nas mãos das classes dominantes, gerando consequências que serão exploradas no decorrer do presente trabalho, entre elas a seletividade penal, a formação de facções, o alto índice de reincidência e a manutenção do abismo social existente entre as classes, fatos estes que atingem não somente a esfera íntima dos presos, mas sim toda a coletividade.
3.1. PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO Atualmente existem cerca de 15 milhões de pessoas presas no mundo, o Brasil ocupa a terceira posição global de maior população carcerária, com cerca de 773.151 detentos segundo dados do Infopen de 2019 [3]. Ademais, possui a taxa de crescimento mais veloz do mundo. Os indivíduos que compõem tais estatísticas são em sua maioria jovens negros, pobres, de baixa escolaridade, pegos em flagrante sem o uso de armas e sem vínculo com organizações criminosas. Um artista plástico preso por um crime que não cometeu, uma ex-detenta que permaneceu presa à espera de julgamento devido a morosidade da justiça, ou um PM preso que vislumbra dentro da cadeia a verdadeira crueldade existente no cárcere. Estas são algumas das histórias apresentadas ao longo do documentário, histórias estas de indivíduos tão diferentes entre si, porém intimamente ligados pelo fio condutor da falibilidade do sistema penal e da justiça criminal brasileira. Os erros começam no processo de criminalização, no momento em que condutas são escolhidas pelos indivíduos ocupantes do poder para serem alvo das normas penais, seguindo-se a escolha das pessoas que sofreram tais sanções e posteriormente quais delas serão submetidas ao cárcere, esse processo de criminalização pode ser analisado através da teoria do labeling approach. A teoria do etiquetamento, como também é conhecida, demonstra que o tratamento dispensado aos indivíduos, dependendo de sua classe social, é diferente e a lei aplicada de modo dessemelhante, visto que não analisa o fato, mas sim o agente que o praticou. De acordo com Fritz Sacks[4] A criminalidade como realidade social, não é uma entidade pré-constituída em relação à atividade dos juízes, mas uma qualidade atribuída por estes últimos a determinados indivíduos. E isto não somente conforme o comportamento destes últimos se deixe ou não subsumir dentro de uma figura abstrata do direito penal, mas também, e principalmente, conforme as meta-regras tomadas no seu sentido objetivo Exemplo disso, são os critérios subjetivos utilizados para diferenciar quem será taxado como traficante e quem será tido como mero usuário no caso das drogas. Para tanto, utiliza-se de meta regras como o local em que o indivíduo se encontra, qual foi sua conduta durante a abordagem, quais são seus antecedentes e aspectos socioeconômicos, de modo que o estereótipo tem papel preponderante na aplicação da norma penal. Após a definição das condutas que serão criminalizadas, escolha seletiva dos indivíduos que serão alvo da norma, tem-se a última etapa que é a condenação e o encarceramento dos mesmos, fixando a etiqueta de delinquente, de modo que é nessa última etapa que reside os maiores problemas do sistema penal. 3.2. VIDA NO CÁRCERE – UNIVERSO PARALELO Carlos Dias, artista plástico, preso por um crime que não cometeu, descreve em seu depoimento o cárcere como um “universo paralelo”. O universo paralelo descrito por Carlos está relacionado com a vida cotidiana no cárcere; as voltas infinitas em torno de um mesmo lugar durante o período de “intervalo”, a superlotação dos presídios, a ociosidade em virtude da falta de trabalho, o tratamento desumano dispensado aos presos violando seus direitos humanos, a formação de subculturas dentro das penitenciárias, entre tantos outros aspectos relatados ao longo do documentário. A Constituição Federal de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, inspirada pelo neoconstitucionalismo, prescreve em seu artigo 1º como um dos elementos constituintes de um Estado Democrático de Direito a proteção a dignidade da pessoa humana: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana; Ademais, no rol de cláusulas pétreas previstas no art. 5º prescreve: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; Tais princípios visam garantir o tratamento humano, digno e igualitário a todas as pessoas que compõem a República Federativa do Brasil, entretanto, ao observar as cenas retratadas no documentário, os dados do sistema carcerário brasileiro e os depoimentos de quem lá viveu anos de suas vidas, chegar-se-á a conclusão de os princípios constitucionais caracterizadores de um Estado Democrático de Direito estão sendo violados. Prova disso é a superlotação dos presídios, a falta de estrutura dos estabelecimentos prisionais, péssimas condições de higiene a qual os presos são submetidos. O sistema carcerário é caro, um preso custa em média R $1.500,00 reais para o Estado mensalmente, de modo que quanto menor o número de presos, maior o custo. Sendo assim, a superlotação diminui o custo por pessoa. A falta de respeito do Estado para com os encarcerados e as péssimas condições a qual são cotidianamente submetidos contribuem para o surgimento de facções criminosas que tem seu início no cárcere e estendem-se para fora dele, retroalimentando o sistema. Outro fator que se encontra umbilicalmente ligado ao aumento das facções dentro dos sistemas penitenciários é a violação da do artigo 5º da Lei de Execução Penal, que dispõe acerca da necessidade de classificar os criminosos em regimes diferenciados de acordo com a gravidade do delito, antecedentes e personalidade visando a individualização da pena. Sendo assim, criminosos são colocados no mesmo patamar, independente de sua classificação individual, fato este que enseja o aprendizado de comportamentos no cárcere. Outrossim, o sistema penal é falho no que tange a possibilidade de progressão no regime de pena, fato este que se deve em grande parte a morosidade no sistema de justiça criminal, de modo que pessoas cumprem a pena integralmente no regime fechado devido à demora nas Varas de Execução, violando a própria lei e contribuindo para a superlotação penitenciária. Antônio García - Pablos de Molina [5], preleciona; A pena não ressocializa, mas estigmatiza, não limpa, mas macula, como tantas veze se tem lembrado aos expiacionistas; que é mais difícil ressocializar a uma pessoa que sofreu do que outra que não teve essa amarga experiência; que a sociedade não pergunta por que uma pessoa esteve em um estabelecimento penitenciário, mas tão somente se lá esteve ou não Diante todo o exposto, pode-se concluir que ao colocar a pena no centro da sociabilidade e reabilitação, como ocorreu ao longo dos anos, foi um dos fatores responsáveis pelo colapso vivenciado pelo sistema prisional brasileiro, bem como para a manutenção das desigualdades existentes entre as classes sociais. 3.3. OBSTÁCULOS APÓS O PERÍODO DE ENCARCERAMENTO Após o período vivenciado no cárcere, o estigma de ex-presidiário continua a estigmatizar e rotular os indivíduos, que na maioria dos casos encontram nos antecedentes criminais um obstáculo para a reconstrução de uma vida. Ou ainda, em decorrência da integração a grupos de facções criminosas, o indivíduo entra para a vida do crime, gerando um ciclo vicioso. O indivíduo que passa pelo cárcere não está pronto para ser reinserido na vida social, e nem mesmo a sociedade está preparada para recebê-lo, ou nas palavras de Bitencourt, entre os delinquentes e a sociedade levanta-se um muro que impede a concreta solidariedade com aqueles ou inclusive entre eles mesmos[6] contribuindo para o processo de marginalização e exclusão social. O problema não reside somente no sistema penal e nas instituições penitenciárias, mas também na sociedade através de ideologias por ela disseminadas, seja pela mídia ou instituições de ensino. A mídia tem papel preponderante na construção do estereótipo criminoso a ser perseguido, conforme mencionado em uma das entrevistas do documentário, o crime passou a ser entretenimento dos programas policiais televisivos. Segundo Lênio Streck (2009): A mídia contribui para que o sistema punitivo desempenhe, a contento, a sua principal função que, na contemporaneidade, não é diversa daquela que sempre desempenhou na sociedade brasileira: servir como instrumento de controle e de disciplina das classes subalternas, infundindo-lhes terror, de forma a preservar a segurança e os interesses das classes hegemônicas. A mídia, desta forma, ratifica uma confissão “de que, historicamente, criminalizam a pobreza e mantemos um Direito Penal de ‘classes’’ Além do papel desempenhado pela mídia na manutenção dos estigmas sociais, as ideologias disseminadas pelas universidades de direito por meio da grade curricular também merecem destaque, isto se deve ao fato da mesma contemplar disciplinas comerciais que tem como objetivo servir ao mercado ao invés de disciplinas voltadas aos direitos humanos e sociais, formando o que foi chamado “senso comum de toga”.
Há que ter o máximo de cuidado com aquilo que se julga saber, porque por detrás se encontra escondida uma cadeia indeterminável de incógnitas, a última das quais não terá solução - Ensaio sobre a Lucidez - Saramago. Diante dos fatos exposto, pode-se concluir que as falhas do sistema penal se iniciam com processo de criminalização, sendo posteriormente materializadas com a vida no cárcere e deixando marcas na vida dos indivíduos após o cumprimento da pena, onde são enfrentadas as dificuldades de reinserção em virtude do estigma que carrega. Desse modo, as funções conferidas a pena e a confiança exacerbada falharam e continuam a falhar. Sendo assim, se faz necessário lançar um olhar histórico, sociológico e crítico para que seja possível compreender o abismo existente entre as classes sociais, abismo este que fica evidente ao contemplar o sistema carcerário brasileiro e a aplicação das normas penais. O erro não está na lei, mas sim em problemas intrínsecos a sociedade, que remotam suas origens aos mais de 500 anos de preconceito, discriminação e privilégios na história brasileira. Sendo assim, ao contrário do que muito é disseminado acerca do direito penal e de sua função, uma maximização, como vem ocorrendo, serve apenas para manter a estrutura débil e ineficaz do sistema punitivo estatal. Em uma das cenas mais emblemáticas do documentário é possível vislumbrar tamanho contraste existente entre as classes mais e menos desfavorecidas socialmente. A cena se passa em frente a Faculdade de Direito de São Paulo, nela estão reunidos na calçada, próximo ao meio fio, um grupo de sem teto quando para no semáforo uma Ferrari laranja. Ao observar tal contraste, é possível questionar: em termos materiais, qual é o valor do abismo social arraigado na sociedade brasileira? R $3.500.000,00.
BARBOSA, Adrian. Teoria Agnóstica da Pena: Fundamentos Criminológicos para uma Teoria Redutora desde a margem. Disponível em: http://periodicos.cesupa.br/index.php/RJCESUPA/article/view/24. Acesso em: 29 de abril de 2021. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 29 de abril de 2021. BRASIL. Código Penal. Decreto Lei nº 2. 848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 29 de abril de 2021. BRASIL. Lei de Execução Penal. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em: 29 de abril de 2021. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal - Volume 1 - Parte Geral. 26ª ed. 2020. SEM PENA. Direção: Eugenio Puppo. Produção: Heco Produções. Espaço Filmes. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yL55exM-DQg. Acesso em: 21 de abril de 2021. Débora Góes Acadêmica do Curso de Direito Universidade do Contestado (UnC) - 3ª fase, Campus Canoinhas, email: [email protected] NOTAS: [1] DURKHEIN, 1978, p. 83 apud BITENCOURT, 2020, p. 43 [2] BARBOSA, Adrian, Teoria Agnóstica da Pena: Fundamentos Criminológicos para uma Teoria Redutora desde a Margem. Artigo (Mestrando em Direitos Humanos) - Universidade Federal do Pará [3] Disponível em: < https://www.gov.br/pt-br/noticias/justica-e-seguranca/2020/02/dados-sobre-populacao-carceraria-do-brasil-sao-atualizados> Acesso em: 28, abril, 2021. [4] SACKS, Fritz, apud BARATTA, Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal: introdução à Sociologia do Direito Penal. Tradução: Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro,1997. [5] MOLINA, Antônio Garcia - Pablos, Régimen abierto, cit., p. 41 apud BITTENCOURT, 2020, p. 616 [6] BITENCOURT, 2020, p. 620.
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