QUANDO A ORDEM DOS FATORES ALTERA O PRODUTO OU DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 483, §5º, DO CPP3/24/2017
Tribunal do Júri. Acusação: tentativa de homicídio qualificado. A Defesa tem duas teses: legítima defesa e desclassificação para lesões corporais. São teses sucessivas. Note-se: sucessivas. Não alternativas! Há uma diferença sensível entre teses “sucessivas” e teses “alternativas”. As teses sucessivas não se excluem entre si. Sobrepõem-se. Tese principal: o réu agiu em legítima defesa (plano da antijuridicidade). Tese sucessiva: em legítima defesa, praticou, não uma tentativa de homicídio, mas sim lesões corporais (plano da tipicidade). Não havia animus neccandi, não houve uma circunstância alheia à vontade do agente que impedisse o resultado. Ao contrário, em legítima defesa, o réu se refreou, usando dos meios necessários para neutralizar a agressão, sem excesso. Como devem ser elaborados os quesitos? O primeiro quesito é fácil: o art. 483 do CPP deixa claro que se deve quesitar, à partida, acerca da materialidade delitiva do fato. Até aí, sem problemas. O segundo quesito também não tem mistério: o inciso II do já referido artigo indica que a quesitação deve indagar sobre a autoria. Perfeito. A controvérsia se encerra no terceiro quesito. Uma vez afirmadas a materialidade e a autoria do fato, qual deverá ser o terceiro quesito? Eis aqui um problema que a doutrina e a jurisprudência vêm resolvendo de forma absolutamente equivocada. Com base no §5º do art. 483, tem-se dito que o terceiro quesito deve indagar acerca da tentativa: “assim agindo, o réu, FULANO DE TAL, deu início a um homicídio que não se consumou por circunstância alheia à sua vontade, qual seja...?” Se os jurados responderem “não”, restam prejudicados os demais quesitos, na medida em que o Conselho de Sentença reconheceu não haver crime doloso contra a vida, escapando, pois, ao Júri a competência para prosseguir julgando o caso. É um absurdo, por várias razões! (1) EM PRIMEIRO LUGAR: a julgar pelo sequenciamento dos incisos do art. 483 do CPP, o terceiro quesito (inciso III) deve ser o quesito genérico e obrigatório de absolvição: o jurado absolve o réu? O §2º do art. 483 deixa clara a obrigatoriedade do quesito absolutório. (2) EM SEGUNDO LUGAR: desde que o mundo é mundo, é cediço que as teses defensivas, sejam elas alternativas, sejam sucessivas, devem ser quesitadas na ordem da mais benéfica ao réu (no caso, a absolvição), para a menos favorável ao acusado (no caso, a desclassificação para lesões corporais). É óbvio: acolhida a tese absolutória, ficam prejudicados os demais quesitos sobre outras teses defensivas. A relação de prejudicialidade deve ser da tese mais benéfica para a menos favorável. Jamais o contrário! Quando esta lógica é invertida e a tese sucessiva é quesitada antes da tese principal, a desclassificação subtrai do Conselho de Sentença a chance de absolver o réu, pela tese principal da defesa. (3) EM TERCEIRO LUGAR: o argumento utilizado pelos que sustentam este disparate é que o Conselho de Sentença deve, primeiro, afirmar sua competência, para, depois, julgar a absolvição. Nada mais equivocado! O que fixa a competência do júri é a pronúncia. Uma vez pronunciado o réu, cabe ao Conselho de Sentença decidir se absolve ou condena o acusado. Não se pode privar o Conselho de Sentença da possibilidade de absolver o réu pronunciado, ainda mais quando a defesa sustenta a absolvição como tese principal. Não faltarão os que queiram se levantar argumentando o seguinte: “ah, mas se o jurado não absolver o réu no quesito absolutório e desclassificar o tipo, ele terá condenado o acusado por um crime de natureza diversa da de doloso contra a vida, extrapolando os limites de sua competência”. Não é assim. Bem por isso, sabiamente, o quesito indaga: “o jurado ABSOLVE o réu?” e não “o jurado CONDENA o réu?”. Isto significa que, não absolvendo, a eventual desclassificação sucessiva devolve o caso ao juiz singular, sem um édito condenatório, porque o quesito não indagou sobre a CONDENAÇÃO, mas sim sobre a ABSOLVIÇÃO. Desde Pontes de Miranda, pela teoria da eficácia preponderante, a jurisdição não tem uma lógica binária e dicotômica, mas quinaria. Em resumo, neste momento, “não absolver” não significa “condenar”. O réu JÁ NÃO SERÁ MAIS absolvido; mas AINDA não está condenado. Entre uma coisa e outra, há que se definir a competência pela natureza da infração. Precisamente aí, entra a quesitação sobre o tipo penal. (4) EM QUARTO LUGAR: é consabido que, sustentada uma tese no plenário, é obrigatório que haja a respectiva quesitação, sob pena de nulidade. Se a defesa sustenta legítima defesa, o Conselho de Sentença deve, necessariamente, ser indagado acerca do acolhimento ou não da tese sustentada. E isso deve ocorrer, obrigatoriamente, ANTES da votação acerca da tese sucessiva. Nada mais absurdo do que inverter a ordem e quesitar a tese sucessiva antes da principal. Nem se alegue que a verificação da tipicidade antecede à antijuridicidade, porque aqui não se trata de analisar o direito material da estrutura analítica do crime, mas sim o plano formal e constitucional da garantia à plenitude da defesa. (5) EM QUINTO LUGAR: outro forte argumento é que, havendo a desclassificação, sem ser indagado ao júri sobre a absolvição, o juiz presidente do júri sentencia, de pronto, sem abrir prazo para que as partes elaborem alegações finais, o que macula a plenitude da defesa, constitucionalmente assegurada no art. 5º, XXXVIII, alínea “a”. Neste momento, o juiz togado pode, em tese, absolver o réu, mas a defesa não terá feito um arrazoado técnico dirigido ao juiz monocrático, e isto é ofensivo à plenitude da defesa. (6) EM SEXTO LUGAR: por fim, essa inversão que quesita a tese sucessiva antes da principal acaba, por assim dizer, obrigando a defesa a ter que concordar, goela abaixo, com o enquadramento típico de tentativa de homicídio, para que a votação consiga atingir a etapa do quesito da absolvição. Ora, não se pode impor à defesa o ônus de ter que abrir mão de uma tese sucessiva, para tentar emplacar a tese principal. Aliás, pelo princípio da eventualidade, bem se sabe que a defesa pode, inclusive, sustentar teses incompatíveis entre si, como a negativa de autoria e a legítima defesa. Assim, não se pode impor à defesa que renuncie a uma tese sucessiva para que sua tese principal seja submetida ao escrutínio dos jurados. Adriano Bretas Advogado Criminal Professor de Direito Processual Penal da PUC-PR
0 Comments
Leave a Reply. |
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |